Amílcar Cabral
A arma da teoria

Carlos Comitini


Capítulo II - O testamento político de Amílcar Cabral


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A situação estabelecida na Guiné (Bissau) depois de 1968 e os resultados da luta de libertação nacional encabeçada pelo povo deste pais — sob a direção do PAIGC — são comparáveis às de um Estado independente onde uma parte do território nacional, notadamente os centros urbanos, é ocupada por forças militares estrangeiras.

As dezenas de observadores insuspeitos, de várias nacionalidades e diversas profissões puderam visitar nosso país por vontade própria ou convidados por nós e fizeram relatos irrefutáveis (verbais, escritos, fotografados e filmados) sobre a situação prevalecente; vastas regiões libertadas do jugo colonial e uma nova experiência político-administrativa, econômica, social e cultural em desenvolvimento nessas áreas, uma vez que as forças patrióticas, apoiadas pela população, lutam com sucesso contra os colonialistas para alcançar a libertação do país.

Mais recentemente, em Abril de 1972, uma Missão Especial das Nações Unidas, composta de representantes de três Estados membros da organização e cumprindo o mandado da Assembleia Geral desta entidade, visitou as regiões libertadas do nosso país, onde permaneceram por uma semana. Pelas conclusões que a Missão Especial pôde tirar desta visita de importância histórica foi possível constatar o seguinte: "Que a luta pela libertação do território continua a progredir e que Portugal não exerce mais nenhum controle administrativo sobre as vastas zonas da Guiné (Bissau) é um fato incontestável... Sendo evidente também que as populações das zonas libertadas sustentam, sem reservas, a política e as atividades do movimento de libertação, PAIGC, o qual.' após nove anos de luta armada, exerce nessas regiões um controle administrativo livre e de fato e protege efetivamente os interesses dos habitantes apesar da presença portuguesa".

Tal situação comporta uma contradição que, face à atitude criminal do governo de Lisboa, o qual intensificou essa guerra colonial de genocídio contra os direitos legítimos do nosso povo à autodeterminação, à independência e ao progresso, dificultando a marcha da luta, representa um entrave à plena manifestação da personalidade de nossa nação Africana, forjada na luta.

DECISÃO HISTÓRICA

Para resolver esta contradição e para responder à exigência de uma mais ampla e efetiva participação do povo, a direção nacional do partido depois de vários debates, optou pela criação, mediante eleições gerais livres e democráticas, de uma Assembleia Nacional Popular — a primeira da nossa história — a qual, em sua qualidade de órgão supremo da soberania do povo será chamada a proclamar a existência de um Estado Nacional em Guiné (Bissau), a adotar um executivo e a promulgar uma Constituição para nossa nação Africana.

É desta maneira que a reunião do Comitê Superior da Luta (CSL), realizada de 9 a 17 de Agosto de 1971(1) decide, por aclamação, que o partido deveria imediatamente tomar todas as medidas necessárias para efetuar em 1972, nas regiões libertadas, as eleições gerais, em sufrágio universal e secreto, pela constituição da primeira Assembleia Nacional Popular (ANP) em Guiné (Bissau). Com base nesta decisão histórica foi definido o processo e o método a seguir para a escolha dos candidatos à ANP – normas publicadas num documento intitulado "Base para criação da Primeira Assembleia Nacional Popular da Guiné", o qual foi aprovado pela reunião do Comitê Executivo da Luta (CEL), em Dezembro de 1971.

Oito meses depois (Janeiro a Agosto) de uma intensa campanha de informação, debates e discussões tanto nos organismos de base do partido como em comícios, as eleições foram levadas a.cabo do fim de Agosto a 14 de Outubro, em todas as regiões libertadas.

Isto foi, certamente, um acontecimento novo, se não uma nova experiência dentro do quadro da luta dos povos por sua libertação da dominação imperialista... Acontecimento realizado de acordo com a moral internacional de nossos dias, com a Carta e as Resoluções das Nações Unidas.

A Assembleia Nacional do nosso povo em Guiné (Bissau) terá sua primeira sessão em 1973(2) no nosso país, assim que os preparativos para esse evento forem finalizados.

Ela desenvolverá logo a primeira missão histórica que lhe é destinada, a proclamação do nosso Estado Nacional, a promulgação da Constituição e a criação dos órgãos executivos correspondentes.

Far-se-ão públicos os resultados das eleições gerais e nosso objetivo será informar a opinião pública mundial e todas as instâncias nacionais e internacionais a respeito desse importante acontecimento histórico da luta do nosso povo.

Teremos nesse momento reafirmada a certeza da vitória de nosso povo contra os retrógrados colonialistas portugueses. Reafirmamos, igualmente, nossa confiança no apoio, sem reservas morais e políticas, dos Estados independentes da África e de todas as outras forças anticolonialistas e antirracistas dos diversos continentes, às decisões que serão tomadas em nossa Assembleia Nacional Popular, à justa causa da independência e ao progresso de nosso Povo.

8 de Janeiro de 1973
Por um Conselho Superior da Luta
Amílcar Cabral.


Notas de rodapé:

(1) Reunião do Conselho Superior da luta que adota a decisão de proclamar o novo Estado Independente da Guiné-Bissau. (retornar ao texto)

(2) 23-24 de Setembro: reunião de Primeira Assembleia Nacional Popular de Guiné-Bissau, em Madina Boé. 24 de Setembro, 8h 55 TMG: proclamação do Estado da Guiné-Bissau. Luiz Cabral é eleito presidente do Conselho de Estado. (retornar ao texto)

Inclusão: 08/05/2020