O Partido Comunista Português e a esquerda militar
Contributo para o estudo da crise político-militar na Revolução dos Cravos

Raquel Varela

1 de setembro de 2012


Fonte: Ler História - A transição democrática portuguesa - N.º 63, 2012, pp. 49-73 https://journals.openedition.org/lerhistoria/352

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.

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Introdução

Portugal viveu no VI Governo Provisório, durante o período da revolução dos cravos, uma crise político-militar, cujo epicentro foi a ampliação da duplicidade de poderes dentro dos quartéis, depois da estrutura que tinha dado o golpe contra a ditadura, a 25 de abril de 1974, o Movimento das Forças Armadas (MFA), se ter desmoronado perante a radicalização da situação social.

O momento político, entre setembro de 1974 e novembro de 1975, tem como eixo central, diferenciador dos momentos do período revolucionário que lhe antecederam, uma crise pautada pela emergência da duplicidade de poderes (que já existia de modo desigual nas fábricas e empresas, bairros e terras do sul), nas Forças Armadas. A hipótese que propomos neste estudo, a partir de um trabalho em curso sobre a relação entre o PCP, o MFA e a chamada esquerda militar, é que a rutura da coligação entre o PCP e o PS, depois de 11 de março de 1975, vai pautar a progressiva crise dentro do MFA gerando a implosão deste organismo que tinha sido em grande medida um fator de estabilização do Estado ao sustentar as Forças Armadas, cuja hierarquia tinha entrado em crise com o golpe de 25 de abril de 1974.

Vários autores analisaram a política do Partido Comunista Português (PCP), concluindo que a contrário do Partido Comunista de Espanha (PCE), o PCP procurou em 1974-1975 fazer um ‘golpe de Praga’, com setores do MFA, ao estilo de 1948, tentando uma via putschista para alcançar o poder do Estado e impor um regime satélite da URSS, ligado ao Pacto de Varsóvia. Destacam-se, nesta análise, entre outros, Boaventura Sousa Santos, que defende que o PCP teve aquilo que designa como uma «vertigem insurrecional durante a crise revolucionária»(1); Carlos Cunha, que defende que o PCP minimizou o parlamentarismo, depois de abril de 1975, como forma de chegar ao poder e enfatizou outras «táticas leninistas»(2); e Carlos Gaspar, que argumenta que o PCP quis tomar o poder mas foi obrigado a recuar pela relação de forças desfavorável(3). Medeiros Ferreira salienta também aquilo que considera ser a tentativa de controlo do aparelho de Estado e tomada de poder via extra-eleitoral, depois de abril de 1975.(4) Leonardo Morlino identifica um processo de «moderação» política dos partidos socialistas e comunistas do Sul da Europa, moderação esta a que teria escapado o PCP, que manteve uma «postura semileal face ao regime democrático»(5). Kenneth Maxwell escreve que «durante o verão de 1975, [os comunistas] realizaram a última tentativa séria para tomar o poder na Europa Ocidental»(6).

A documentação recente, que tem vindo a ser sucessivamente desclassificada, sobretudo a nível internacional(7) (como as fontes dos National Archives britânicos ou a documentação norte-americana referente à política externa dos EUA), abriu portas a uma nova onda de investigações sobre a revolução portuguesa que trouxe a este respeito novas e importantes novidades. Destacam-se a este propósito duas teses de doutoramento, uma sobre a influência norte-americana em Portugal no biénio 1974-75, de Tiago Moreira de Sá(8), e uma tese sobre a história da política do PCP, de Raquel Varela(9). O redobrado interesse sobre a Revolução dos Cravos trouxe também na área da história da revolução dois estudos indispensáveis, que precederam aliás os anteriores. São eles a obra sobre o Conselho da Revolução de Maria Inácia Rezola(10) e a história da reforma agrária durante a revolução no maior distrito do país, Beja, de Constantino Piçarra(11).

Alguns autores(12) tinham acentuado, dentro da complexidade que foi a história política do PCP no período revolucionário, o compromisso desta organização com o regime democrático, almejando porém uma forma de capitalismo com forte pendor regulacionista e um setor importante da economia nacionalizado. Num trabalho de investigação já publicado concluímos que esta é a hipótese mais correta de análise, a partir do estudo da história da política do PCP nas suas diversas vertentes: a relação do Partido com os outros partidos, o seu papel nos governos provisórios, a sua relação com a Intersindical e as comissões de trabalhadores, a sua posição face às nacionalizações e ao controle operário, a sua política face às ocupações de empresas/fábricas e a reforma agrária, a sua política face às colónias, sobretudo Angola, a sua relação internacional, e, finalmente, a sua relação com o MFA e a base das forças aramadas. Foram estes os eixos que analisámos, com vista a tentar compor um quadro analítico que contribuísse para compreender o papel daquele que foi, com o PS, o mais importante partido durante a revolução dos cravos.

A implosão do MFA, no final de agosto de 1975, por cissiparidade, implicou, provavelmente, a divisão entre setores cujos contornos não são hoje totalmente claros, embora haja vários estudos indicativos: um setor próximo do PS, dos liberais e da Igreja Católica; um setor próximo do PCP; e um setor amplo da «esquerda militar», que, sustentaremos neste artigo, vai progressivamente ficando menos fora da influência da direção do Partido Comunista. Na verdade, a crise revolucionária, de que são sintomas e rastilho, a crise da coligação e do MFA, fazem emergir diferenças sérias entre o PCP e a esquerda militar, dentro da esquerda militar, e entre a extrema-esquerda e o PCP. Este artigo pretende contribuir para aprofundar o estudo do papel destes sujeitos representativos (direções políticas e militares) neste período complexo.

«Um, dois, três MFA»

Até março e abril de 1975, pese embora as diferenças substanciais que se revelaram entre o Partido Comunista Português (PCP) e o Partido Socialista (PS), quando da discussão em janeiro de 1975 sobre a institucionalização de uma central sindical única, a Intersindical — que o PCP defendia argumentando que esta asseguraria a unidade dos trabalhadores e a que o PS se opunha defendo o pluralismo sindical como condição da consolidação do regime democrático-representativo no país —, a coligação governamental, com a participação crescente do Movimento das Forças Armadas (MFA), consegue assegurar a governabilidade do país. Porém, a partir do segundo semestre de 1975 a coligação desmembra-se, em resultado de vários fatores.

Uma tentativa de golpe falhado, a 11 de março de 1975, liderado pelo general António de Spínola é a consequência política, e ao mesmo tempo a mecha, de um processo de radicalização da revolução, processo que muitos autores(13) colocam a montante de 11 de março, sensivelmente em fevereiro de 1975, marcado pelo aumento das greves no setor produtivo, dos serviços, na educação e pelas primeiras ocupações de terras com impacto importante(14). Há greves, ameaças de greve, e outros conflitos laborais, entre fevereiro e junho de 1975, nos setores metalúrgico, indústria química, na hotelaria, têxteis, educação, nas câmaras municipais, na construção civil, setor mineiro, eletricistas, padeiros, gráficos, TAP, entre outros(15). As ocupações alastram pelo Ribatejo e Alentejo. As nacionalizações são levadas a cabo nas grandes empresas. Despontam as ocupações de casas, a um ritmo invulgar, logo a partir da segunda metade de mês de fevereiro de 1975, em Lisboa, Porto e Setúbal, sobretudo(16). As comissões de moradores passam a ser, em muitos casos, a base organizativa do movimento social urbano transformam-se, na análise de Chip Dows, num «verdadeiro duplo poder ao nível da cidade»(17).

Em resposta a esta tensão social, o Governo vê-se obrigado a atualizar o salário mínimo e a aprovar medidas de contenção de preços dos bens alimentares, isto depois da realização de manifestações ao longo do mês de março contra a «carestia de vida»(18). Em muitas empresas obtêm-se aumentos salariais, generalização do contrato coletivo, subsídio de férias, subsídio de Natal. Também foram conseguidas melhorias generalizadas ao nível da generalização da previdência, assistência na maternidade, doença e invalidez. É neste período que os trabalhadores conseguem o subsídio de desemprego.

Estes factos, combinados com a derrota do golpe de 11 de março de 1975, vão provocar a transformação de uma crise de regime numa crise geral do Estado, traduzindo-se na maior crise governativa da revolução, com a saída do PS e mais tarde do PPD (liberais) do IV Governo, o que leva à sua queda em julho de 1975 e à Constituição do frágil V Governo a 8 de agosto de 1975. O PS desloca-se da aliança instável que tinha mantido com o PCP nos Governos até aí, em direção a um amplo bloco social que reúne setores da direita e da Igreja — e o PCP fica sozinho, restando-lhe como aliados setores em que o partido não confiava ou não controlava totalmente, a «esquerda militar» — um setor que manteve uma autonomia relativa face aos partidos mais próximos, sobretudo em relação ao PCP e à extrema-esquerda. A par da crise política surgem deste modo as divisões, que se vieram a revelar insanáveis, no seio do próprio MFA, as quais vão contribuir decisivamente para agravar a crise política.

Em junho de 1975, a diplomacia inglesa, em documentos confidenciais, descreve desta forma a situação política em Portugal: «A situação em Portugal para os investidores continua a deteriorar-se (...) As principais dificuldades continuam a ser os aumentos sucessivos de salários, drásticos problemas laborais e uma queda acentuada na produtividade. Em muitos casos os gestores e empresários sofrem intimidação física por parte das comissões de trabalhadores — ou foram fechados nas suas instalações ou receberam ameaças por telefone. A atitude das autoridades portuguesas tem sido frequentemente vaga e muito ineficiente. Na verdade, até houve um caso em que discussões confidenciais entre as empresas britânicas e as autoridades portuguesas foram parar à comissão de trabalhadores»(19).

No dia 10 de julho de 1975, o PS decide abandonar formalmente o IV Governo Provisório(20). Oficialmente a razão apresentada é o diferendo em torno do conflito do caso República que vai opor a extrema-esquerda, o PCP e o PS, que acusa o PCP de querer ter um domínio ditatorial sobre os meios de comunicação. O peso crescente do PCP em inúmeras estruturas do Estado e o controle, direto ou a influência política nesta altura, sobre a maioria dos jornais diários, era evidente. Porém, o caso do República, não era o caso mais óbvio de domínio comunista da comunicação social.

Melo Antunes, em conversa com o primeiro-ministro britânico, defende que «Os comunistas foram de facto ultrapassados pelos trabalhadores que foram mais para a esquerda», segundo Melo Antunes porque os maoístas, apesar de oriundos da «burguesia e com educação universitária, conseguiram penetrar profundamente entre os trabalhadores»(21).

Mas o pretexto sustentava-se numa situação real — evitar a escalada revolucionária, assumindo o PS que a estratégia de suportar um governo de frente popular com os comunistas tinha que ser reequacionada(22). A Comissão Política do PCP considera a decisão do PS de abandonar o Governo de «grande gravidade»; e apela ao PS para reconsiderar e recusa «energicamente as calúnias que o acusam de “assaltar o poder”», reivindicando a trajetória democrática do partido(23).

No dia 25 de julho de 1975, a Assembleia do MFA reúne-se e da reunião sai a proposta de constituição de um triunvirato, constituído por Costa Gomes, Vasco Gonçalves e Otelo Saraiva de Carvalho, para tentar pôr fim à crise. O PCP apoia esta decisão e caracteriza que o «inimigo principal» continua a ser a «reação», pelo que são precisas soluções que façam «respeitar a ordem democrática»(24).

Nas negociações para a formação do V Governo, Vasco Gonçalves procurará fazer um governo plural, dentro da órbita da esquerda, mas sem sucesso. A 29 de julho de 1975, Melo Antunes abandona a pasta dos Negócios Estrangeiros; no dia imediato, é seguido por Jorge Sampaio e João Cravinho. A 4 de agosto de 1975 é a vez de Otelo Saraiva de Carvalho, próximo da extrema-esquerda, recusar o apoio do COPCON a um Governo «forte» liderado por Vasco Gonçalves(25).

8 de agosto é o dia da tomada de posse do V Governo. Nesse mesmo dia, um grupo de militares próximos do PS — Melo Antunes, Vasco Lourenço, Sousa e Castro, Vítor Alves, Pezarat Correia, Franco Charais, Canto e Castro, Costa Neves e Vítor Crespo — tornam público um documento que dizia recusar «o modelo de sociedade socialista de tipo Europa Oriental» e rejeitar o modelo «de sociedade social-democrata em vigor na Europa Ocidental», publicado na véspera, tarde, numa edição especial do Jornal Novo(26). Fica conhecido como Documento dos Nove. O mesmo jornal publica nesse dia uma nota de Mário Soares exigindo a demissão de Vasco Gonçalves(27).

Quando finalmente o V Governo toma posse, nesse mesmo dia 8 de agosto de 1975, já não tem condições sociais para governar.

O V Governo, chefiado por Vasco Gonçalves, é composto por militares, independentes e membros do MDP/CDE, mas politicamente só tem o apoio formal do PCP e do MDP/CDE. Não é claro qual a relação do PCP com os militares ligados ao V Governo, uma vez que a única fonte disponível, por enquanto, são entrevistas, cuja veracidade não podemos atestar noutro tipo de fontes, e porque muitas vezes a relação política dos militares com o Partido Comunista não se traduzia numa relação orgânica. Sabemos que o IV Governo cairá sem grande resistência dos membros do próprio Governo — desde logo de Vasco Gonçalves, que apoia a política do PCP — e também sabemos que a queda do V Governo provoca o agravamento da tensão entre a esquerda militar e o PCP.

Quando toma posse, Vasco Gonçalves faz um apelo à reconciliação e à unidade das Forças Armadas(28), mas Costa Gomes fala explicitamente numa solução «transitória». É um Governo apoiado, antes de mais, pela esquerda militar, e por uma parte importante da extrema-esquerda. O apoio do PCP é, desde o dia da tomada de posse, esquivo e o Partido iniciará a partir deste período um processo de crescente rutura com a esquerda militar, que não controla na totalidade e de quem desconfia(29).

O comunicado(30) sobre a formação do V Governo da comissão política do comité central do PCP, feito a 8 de agosto de 1975, ressalta a urgência de preencher o vazio político como a principal causa da formação do V Governo («não deixar paralisar a máquina do Estado»); responsabiliza o PS por ter abandonado a coligação governamental; deixa em aberto a recomposição do Governo para «alargar a base de apoio social e político do poder», defende a rápida resolução das divisões no MFA e a complementaridade entre MFA e Governo, reafirma que o PCP está pronto a lutar «pelo socialismo» e «as liberdades». Em contraste com os comunicados de início de julho(31), em que se ameaçava com a possível marginalização do PS, o comunicado termina dizendo que o PCP está pronto para rever a composição do Governo: «Pela sua parte, o PCP está pronto a proceder a um tal exame com todas as forças interessadas no processo revolucionário, sem quaisquer discriminações ou exclusões»(32).

O Avante!, jornal oficial do PCP, nunca teve uma capa de explícito apoio ao V Governo ou a Vasco Gonçalves, mas sai um Avante! especial de questionamento desse mesmo Governo. O jornal, semanal, que sai no dia 7 de agosto de 1975, tem como eixo a defesa do PCP face aos ataques de que está a ser alvo nas suas sedes(33); volta a sair uma semana mais tarde centrado no mesmo assunto(34).

No meio, a 11 de agosto, é publicado um número especial do jornal(35) do partido onde vem parte do relatório de Álvaro Cunhal ao comité central extraordinário de 10 de agosto, em que o líder comunista questiona a viabilidade do V Governo. Nesse relatório Cunhal explica, numa passagem só mais tarde publicada integralmente, que «pensámos já nesse momento (antes da constituição do Governo) guardar um campo de manobra política para o nosso partido que não nos atrelasse necessariamente a uma previsível queda do Governo de Vasco Gonçalves»(36).

No informe de Álvaro Cunhal ao Comité Central pode ler-se que o partido considera que a crise atual está em risco de terminar numa guerra civil, num confronto armado, que o PCP não quer. Cunhal afirma que a crise atinge todos os níveis da sociedade: é uma crise política, económica, militar, social e no processo de descolonização (refere-se à guerra civil em Angola). O líder do PCP define como prioritária a constituição de uma solução política que reponha no essencial a forma de coligação governamental anterior e a estreita coordenação desta com o MFA. Pede aos militantes que ponham fim ao «sectarismo» e «distingam o inimigo principal», as «forças fascistas e fascizantes», das «forças hesitantes acerca do processo revolucionário e do caminho para o socialismo». A condição para um novo Governo deverá ser em primeiro lugar a disposição para «cooperar com os comunistas», ou seja, a manutenção do PCP no Governo de coligação, e o fim da violência sobre o PCP.

O informe assevera que não pode haver um regime democrático sem o PCP, mas admite que o PCP, «confiante na sua força, não a sobrestima entretanto». Exige-se o saneamento no aparelho de Estado (nos setores dos tribunais, diplomacia, etc.) e a formação de um governo que seja eficiente e operativo (estas são definidas como «as tarefas prioritárias e urgentes»). As «outras tarefas urgentes» incluem uma política de austeridade, controle do défice, solução dos problemas dos setores industriais em crise, desenvolvimento da batalha da produção, restrição das importações e aumento das exportações; defende ainda o processo de nacionalizações e de reforma agrária; no campo internacional, propõe-se a manutenção de boas relações com os países do Mercado Comum, a Espanha, e o respeito pelos tratados internacionais de que Portugal é signatário, bem como boas relações com os países de «terceiro mundo»; quanto à descolonização, o PCP defende um governo que contribua para resolver a situação em Angola, apoiando o MPLA. Finalmente, no domínio social, Cunhal defende que, dentro de uma política de «reivindicações comportáveis», é urgente atender os setores laborais onde há mais crise.

Embora sem hostilizar publicamente, na parte do informe que é publicada no Avante!, são evidentes os recados para a esquerda militar não tentar 57 uma via golpista de tomada do poder, por um lado, e repor a governação com os socialistas por outro: «Sob pretexto do respeito pela vontade das massas, o basismo e o democratismo, a submissão das decisões da vanguarda a votações manipuladas, procuram enfraquecer, desorganizar e finalmente liquidar a vanguarda. Trata-se também de uma situação geral, válida tanto para a vanguarda operária e popular como para a vanguarda militar. (...)

Todas as revoluções têm um processo irregular e acidentado. A maleabilidade, a capacidade para reexaminar e retificar, a coragem autocrítica (...) são condições essenciais duma política verdadeiramente revolucionária»(37).

No informe o líder comunista admite ainda que sem estar resolvida a questão militar, o V Governo era um Governo falhado à partida, que iria fragilizar o PCP: «Todo o esquema das forças conservadoras e reacionárias era mostrar este Governo como o Governo dos comunistas, sem apoio militar e deixá-lo cair depois. O fracasso deste Governo seria o fracasso do Partido Comunista, que seria arrastado nesta derrota com todas as suas consequências»(38).

Como referimos, este informe, que mais tarde será publicado na íntegra, omite as passagens em que Álvaro Cunhal afirma já esperar a queda do Governo(39) e reconhece a debilidade do MFA: «A Constituição do Diretório significa neste momento que o MFA está a decapitar-se, que não tem uma direção homogénea (...)»(40).

Cunhal esforça-se por isso em convencer o partido de que o Grupo dos Nove é uma força que «pode ser recuperada para o processo revolucionário»(41), e que não vai apoiar a esquerda militar e ainda que há o risco de este setor se voltar contra o partido: «A esquerda militar ficou bastante animada (a nosso ver sem razão) com a decisão que foi tomada pelo Diretório no sentido de que os conselheiros signatários do Documento Melo Antunes fossem afastados do Conselho da Revolução. (. ) Se o problema já era grave ao nível político, dada a posição contra o processo revolucionário do Partido Socialista e do PPD, se já era grave por isso, a gravidade ainda é maior pela situação interna do MFA onde estão em conflito a esquerda militar e o grupo dos Nove e onde existe um setor esquerdista e anarquizante que dificulta a unidade das forças progressistas. Isto significa a hipótese, cuja necessidade pode não se confirmar, mas uma hipótese de lançamento de certas pontes com forças ou elementos que estão colocados hoje num setor que contraria o processo. Isto ao nível civil e ao nível militar. E acontece mesmo que certa parte militar, que podemos ter como progressista, se volte contra o partido ou deixe o partido isolado»(42).

O primeiro-ministro Vasco Gonçalves acredita que chefia um governo frágil quando na tomada de posse dos secretários de Estado do V Governo afirma que não está «agarrado ao lugar» e que, «nem que fosse por um minuto apenas que este Governo tomasse posse, nem por isso os seus membros deixariam de o fazer»(43). Mas o seu balanço posterior ombreia com a versão da história oficial do PCP. Vasco Gonçalves não é um homem amargurado com o PCP, que se sinta abandonado pelo Partido Comunista, mas alguém que acredita que um projeto a la Nasser era viável para Portugal e que a correlação de forças não o permitiu naquele verão de 1975. Um militar que acredita, como salienta Cruzeiro, ter cumprido o dever de ter encabeçado um Governo para o País não ficar paralisado(44).

Nem tão pouco o PCP se vai enfrentar com a esquerda militar, sem tentar atenuar todos os danos do afastamento deste setor. Apesar de não poder continuar a apoiar-se na esquerda militar, ou pelo menos em parte dela, para a sua política, o PCP quer manter uma margem de manobra nas negociações para a formação do VI Governo e, dentro do possível, no desenho político e institucional do futuro regime. Nos comícios públicos das duas semanas seguintes à constituição do V Governo, o PCP, afirmando-se determinado a recompor o Governo, não deixa de dizer que «apoiou e continuará a apoiar o V Governo» (Lisboa, 14 de agosto de 1975) e que «o Governo vai continuar a governar» (Évora, 24 de agosto de 1975)(45). O partido participa nas manifestações de apoio ao V Governo e a Vasco Gonçalves, cujos maiores entusiastas são também alguns setores da extrema-esquerda.

Mas o desenlace estava já determinado a 10 de agosto. Cunhal pede ao comité central que deixe aos órgãos executivos espaço para decidir e «conservar margem de iniciativa, inclusivamente de negociações» num eventual golpe militar vindo de setores moderados do MFA e do PS ou de uma situação em que este setor ganhe a iniciativa política(46).

No dia 20 de agosto, Cunhal em conferência de imprensa declara que um governo de coligação do MFA e principais partidos políticos foi justamente considerado o sistema de alianças mais adaptado à correlação e arrumação das forças de classe»(47). E irá mais longe ao afirmar que se podem combinar os documentos das várias frações militares. Na conferência de imprensa de dia 29 de agosto, às 11 da noite, Álvaro Cunhal diz que está disposto a reunir-se com o PS, o Grupo dos 9 e o COPCON, para encontrar uma solução governativa.

«Sovietização» das Forças Armadas?

No dia 5 de setembro de 1975, o Grupo dos 9 consegue afastar Vasco Gonçalves e isolar a esquerda militar na Assembleia do MFA — que vai ficar conhecida como a Assembleia de Tancos — e no Conselho da Revolução, invertendo nessas estruturas — mas não nos quartéis — a correlação de forças a favor do Grupo dos 9. Na Assembleia determina-se a reestruturação do Conselho da Revolução: os gonçalvistas e a esquerda militar, até aí maioritários, ficam com 3 elementos; o Grupo dos 9, com 7. Fazem parte ainda Pinheiro de Azevedo e Morais da Silva, cada vez mais do lado do Grupo dos 9(48), e Otelo e Costa Gomes, o primeiro com uma posição titubeante, e o segundo, um árbitro das várias frações que politicamente acabará tomando posição ao lado dos Nove também. É o início de um processo de recomposição da hierarquia das Forças Armadas.

O pilar de sustentação do Estado na revolução, o MFA, cai, em agosto de 1975, arrastando consigo a estabilidade — que com crises tinha sido apesar de tudo mantida — das Forças Armadas, abrindo espaço à intensificação da indisciplina militar. A revolução eclode definitivamente nos quartéis, com a progressiva organização dos soldados nas comissões de soldados, pela mão dos Soldados Unidos Vencerão (SUV), da Polícia Militar, das Assembleias Populares, das manifestações contra os saneamentos levados a cabo pelo Grupo dos Nove.

Saramago escreverá em outubro de 1975 sobre a rutura desta política: «Vejamos, por exemplo, o nosso caso: incondicionais sustentáculos do MFA (e não poucas vezes insultados por isso), viemos, com o tempo, a dar-nos conta de que o mesmo MFA entrara numa espécie de reprodução por cissiparidade, de tal modo que, onde antes houvera um, começámos a ver dois, três se não quatro...»(49).

É consensual entre a historiografia portuguesa que Portugal estava, durante o VI Governo, a viver uma crise político-militar e que o desfecho da revolução se aproximava(50). Reservadas quanto à estruturação de modelos teóricos explicativos, muitas obras focam-se nos dados empíricos do processo, que todos consideram indiscutíveis: crise no MFA, indisciplina militar, VI Governo com forte contestação social, multiplicação de acontecimentos que previam um desfecho rápido da revolução (manifestações de soldados, generalização da ocupação de terras, atentado ao primeiro-ministro, ocupação dos emissores de rádio e televisão pelo Governo, cerco à Assembleia da República, paralisação do Governo), acontecimentos que ficaram delimitados por aquilo que se convencionou chamar de «psicose golpista», ou seja, a existência de rumores e ameaças permanentes de um golpe de estado.

No fim de agosto, depois de aceitar a substituição do V Governo e participar no VI Governo, liderado por Pinheiro de Azevedo, o PCP está no seu momento de maior fragilidade desde o início da revolução, porque o desmembramento do MFA arrasta consigo a «aliança Povo-MFA», deixando os trabalhadores «órfãos» da direção que o próprio PCP tinha construído. Mesmo autores que não coincidem com a tese que aqui defendemos partilham a análise da fragilidade do PCP neste momento, devido ao desmoronamento do MFA(51).

A crise das Forças Armadas e da governação terá três tipos de resposta: uma aliança do PS, do Grupo dos 9 e de toda a direita que procura criar uma direção sólida (o Conselho da Revolução depois de Tancos) que, ao não conseguir eliminar «homem a homem» a dualidade de poderes — por centenas de saneamentos e transferências/substituições no Exército — organiza e prepara um golpe militar que se vai dar a 25 de novembro de 1975, iniciando a consolidação do regime democrático-liberal em Portugal; uma fórmula mais ou menos espontânea de dualidade de poderes nas Forças Armadas, que resulta da crise do MFA e do próprio deslocamento da esquerda militar do PCP, depois da queda de Vasco Gonçalves; e ainda a resposta do PCP, que procura reconstruir o MFA com a relação de forças antes de Tancos e repor a coligação governamental PS-PCP-MFA, conseguindo garantir, quando se apercebe de que a revolução está perto do desfecho, a consolidação da reforma agrária (sua reserva estratégica de influência) e a independência de Angola sob direção do MPLA.

Examinaremos agora cada um destes momentos em pormenor, a começar pela política do PCP face ao fortalecimento do processo de dualidade de poderes nas Forças Armadas e ao VI Governo, em setembro de 1975.

Como assinalámos, no dia 5 de setembro de 1975, o Grupo dos 9 61 consegue isolar a esquerda militar na Assembleia do MFA e no Conselho da Revolução (CR). A 7, apenas dois dias depois, um grupo de soldado encapuçados (que se mantinham clandestinos) dá uma conferência de imprensa onde anuncia a criação dos Soldados Unidos Vencerão (SUV), uma organização de soldados que propõe a generalização da criação de comissões de soldados no Exército e que se afirma contra o MFA e pela «destruição do Exército burguês»(52). Nesse mesmo dia, a Companhia 8246 do Regimento de Polícia Militar (RPM) recusa-se a embarcar para Angola.

No dia 8, o Conselho da Revolução reúne-se e decide atuar com medidas disciplinares contra o Regimento de Polícia Militar, por este ter tomado parte numa manifestação. Nesse dia, uma manifestação da FUR reúne 1000 pessoas em Setúbal pelo «poder popular». No dia 9 de setembro, reagindo ao “minar da disciplina e obediência militar”, o CR faz publicar a Lei 11/75 em que proíbe aos órgãos de comunicação social «a divulgação de relatos e notícias, etc., sobre acontecimentos ou tomadas de posição nas unidades militares»(53). Conhecida como “Lei da Censura Militar”, nunca foi posta em prática, porque os jornais, a rádio e a televisão se recusaram a cumpri-la.

Quinze dias depois é revogada.

No dia 10 de setembro dá-se um desvio de 1000 espingardas automáticas G3 do DGMG de Beirolas para o PRP/BR. No dia 13 de setembro de 1975 Eurico Corvacho, um militar gonçalvista, é substituído definitivamente (já tinha havido diligências nesse sentido em agosto) por Pires Veloso no comando da Região Militar do Norte (RMN). Isto vai criar uma reação generalizada por parte da extrema-esquerda e do PCP, que começam uma mobilização de rua pela reintegração de Corvacho. No Norte prosseguem os atentados terroristas, feitos pelo ELP e o MDLP, aos centros de trabalho do PCP e uma bomba explode na EFACEC de Matosinhos.

No dia 21 de setembro, 1500 soldados fardados, sob direção dos SUV, junto a 10 mil civis, desfilam numa manifestação no Porto contra o Governo e os generais Fabião e Charais, que acusam de tentarem pôr fim à revolução. Nesse dia também rebentam engenhos explosivos na messe do Estado-maior da Armada, onde dormia Pinheiro de Azevedo. Nessa noite, de 21 para 22, os deficientes das Forças Armadas, que não viam as suas reivindicações satisfeitas, ocupam a Ponte 25 de abril, e no dia 25 os mesmos ocupam os estúdios da Emissora Nacional. Nesse dia 25, em Lisboa, uma manifestação dos SUV a que se juntam a FUR e várias comissões de moradores e trabalhadores da região, é considerada a maior manifestação de soldados desde sempre realizada em Portugal. O Jornal Novo, citado por Inácia Rezola, descreve assim a manifestação: «Apoiados pela FUR e muitas comissões de Moradores e Trabalhadores da região de Lisboa, milhares de soldados desfilaram pela cidade. Os manifestantes tomam 30 autocarros, passam pelo rio, e libertam militares detidos na Trafaria»(54).

No dia 24 de setembro o Estado-Maior do Exército reúne-se para enfrentar a crise: «as questões disciplinares em geral e em particular os SUV e ainda a falta de pessoal de enquadramento com suficiente competência para neutralizar os grupúsculos que se têm vindo a formar no interior das FA»(55). Nessa reunião decide-se a revitalização dos órgãos do MFA ao nível da unidade e regiões militares para evitar a «criação de organizações paralelas dentro dos quartéis» (Idem).

No dia 27 dá-se o assalto e destruição, por manifestantes de extrema-esquerda, da embaixada e consulados de Espanha, contra o regime franquista, em repúdio pela condenação à morte de 6 nacionalistas bascos. As ordens dadas pelo COPCON para proteger as instalações diplomáticas de Espanha não são acatadas.

Quando decide suspender o Governo de funções, a 20 de novembro de 1975, Pinheiro de Azevedo, no seu estilo frontal e indiscreto, responde a uma jornalista que o tinha questionado sobre a situação militar: «A situação, tanto quanto eu sei, continua na mesma: primeiro fazem-se plenários e depois é que se cumprem as ordens!»(56)

Os SUV são de particular importância nesta crise porque, como já referimos, se apresentam contra o MFA, defendem a criação de comissões de soldados — uma vez que caracterizam que as ADUs (Assembleias Democráticas de Unidade) não são democráticas e estão sob controlo do MFA — e a sua dinâmica é de crescimento. Embora não existam estudos sobre as ADUs, tudo indica que estas, mais do que órgãos institucionalizados de controlo estrito do MFA, eram espaços de disputa dentro das Forças Armadas. Em novembro de 1975, há SUV organizados no Porto, Lisboa, Coimbra, Évora, Portalegre e Beja. Em breve surgem ou ressurgem organizações semelhantes dirigidas por outras organizações: a ARPE dirigida pelo PCP; a RPAC pelo MRPP e as Organizações de Soldados e Marinheiros sob liderança da UDP.

Os SUV manter-se-ão como a maior e mais importante. Soares dirá mais tarde a Maria João Avilez que: «É exato, nessa época o poder estava em plena desagregação e era influenciado pelas manifestações de rua (...). Os SUV foram mais um degrau na escalada revolucionária, uma óbvia tentativa 63 de sovietização do Exército, que precederia naturalmente a destruição da instituição militar, para sobre ela edificar um outro poder»(57).

O Expresso, descrevendo uma reunião do Conselho da Revolução de 25 de setembro de 1975 onde se discute a situação militar, escreve: «(...) tendo-se chegado a propor um teste político muito simples: saber quantas personalidades significativas do MFA se sentem capazes de passear calmamente no Rossio»(58).

Perante a conflitualidade dentro das Forças Armadas o Conselho da Revolução conclui por uma série de medidas repressivas, que passavam sobretudo por saneamentos de militares afetos aos vários setores de esquerda, numa tentativa de reconstruir a hierarquia militar. Decide-se atender parte das reivindicações dos deficientes das Forças Armadas, dissolver o Regimento de Polícia Militar, e a criação de um Agrupamento Militar de Intervenção (AMI), que seria uma força disciplinada composta por forças operacionais dos três ramos das Forças Armadas, capaz de responder àquilo que consideravam ser uma ameaça à «tranquilidade nacional». Era, segundo Inácia Rezola, uma «tentativa de solucionar a questão da autoridade»(59). A 30 de setembro, Pinheiro de Azevedo ordena a ocupação dos emissores de televisão e rádio, argumentando que «era para evitar declarar o estado de sítio», que, na sua opinião, «era o que a situação de facto exigia»(60). Mas nem assim o conflito vai ser controlado. No dia 1 de outubro oficiais do Exército selam os emissores da Buraca, em Lisboa, e a PSP fica a vigiar o local. Seguem-se protestos contra a decisão do Governo e a 21 uma manifestação, seguida de acampamento em frente dos emissores, organizada por comissões de soldados, moradores e trabalhadores, consegue a desselagem das instalações. A 7 de novembro o Governo assume a sua falta de autoridade quando manda destruir à bomba os emissores. Como refere Paula Borges Santos, o caso Rádio Renascença é um espelho da falta de autoridade dos sucessivos governos que não conseguiram controlar o conflito nem com a criação de comissões administrativas, nem com os planos de nacionalização, nem com a ocupação militar da Emissora(61).

No fim, um único método: a destruição física, à bomba.

Qual é a política do PCP face a estes acontecimentos? O PCP manterá uma posição sui generis em relação ao VI Governo, chefiado por Pinheiro de Azevedo: os comunistas participam no Governo mas não em representação oficial do partido. E a sua política é centralmente a luta contra os saneamentos, pela reorganização do MFA e pela reestruturação do Conselho da Revolução, dando mais peso aos militares gonçalvistas, e finalmente, a recomposição do Governo, exigindo a devolução ao PCP de ministérios que este considerava fulcrais, entre eles o Ministério do Trabalho e o da Comunicação Social. No início de setembro, e enquanto decorriam as negociações de formação do VI Governo, a posição do PCP é a de reivindicar uma ampla participação comunista no elenco governamental; exigir o afastamento do PPD do Governo, considerado um partido que atenta contra a «liberdade e a democracia»(62). As negociações fazem-se com críticas do PCP à esquerda e lançando recados ao PS e Grupo dos 9 de que a participação comunista no VI Governo dependia do grau de compromisso que estes estivessem dispostos a assumir com o PCP.

Assim, o partido lembra aos críticos à sua esquerda que a vitória do fascismo no Chile se deu, entre outras razões, pelo «sectarismo que impediu muitos de se aproximarem das forças progressistas»(63), mas avisa os membros da futura coligação de que o PCP não aceitará no Governo uma fórmula que ponha em causa a sua independência política. Sem questionar a sua presença no Governo, uma vez que o PCP considera Pinheiro de Azevedo um oficial prestigiado, um «dos revolucionários de 25 de abril»(64).

O VI Governo toma posse no dia 19 de setembro de 1975, com uma representação diminuta do PCP. O partido ficará apenas representado com um único ministro, Veiga de Oliveira, ministro das Obras Públicas. O PS fica com 5 ministérios (Comunicação Social, Finanças, Transportes e Comunicações, Agricultura e Pescas e Comércio Externo), áreas que controlavam diretamente o financiamento dos setores políticos que o PCP dirigia, nomeadamente o setor da reforma agrária, as empresas nacionalizadas e intervencionadas e a política laboral.

Por isso, quando o Governo toma posse, o grau de compromisso do PCP é diretamente proporcional à sua composição. E o partido não o vai esconder. O PCP considera que é um governo que «está longe de corresponder às forças políticas interessadas em assegurar o processo revolucionário»(65)— sobretudo, para o partido, porque tem dois ministros do PPD, mas o partido afirma, em nota da Comissão Política, no dia da tomada de posse, que mesmo assim, decidiu apoiar este Governo porque «a alternativa seria a formação de um governo de direita ou o prolongamento do vazio do poder»(66). Temendo já a posição diminuída que ia ter no Governo, no dia 18 de setembro, o partido convoca uma manifestação em que afirma terem estado dezenas de milhares de trabalhadores e onde está presente uma delegação de soldados e marinheiros, e que é assumida pelo partido como uma manifestação «nas vésperas de tomada de posse do VI Governo», para reivindicar: «Não a um Governo de direita», «Apoio às Assembleias Populares»(67). Ao mesmo tempo que justifica à base do partido que a participação no Governo foi uma «difícil decisão» e que o Governo é um «posto de combate» como qualquer outro(68).

É evidente, tendo por base as declarações do Comité Central e as mobilizações, que o PCP tem com este Governo um grau de compromisso inferior aos governos anteriores. Mas há diferenças claras entre o PCP e a extrema-esquerda na mobilização que é levada a cabo durante o VI Governo e na política face à crise militar. Diferenças qualitativas, que surgem no contexto já da tensão interna no partido com a esquerda militar.

O PCP não apoia os SUV quando estes se formam e não apoia as manifestações do Porto e Lisboa de setembro de 1975. Forma inclusive a ARPE (Associação Revolucionária de Praças do Exército) a 24 de setembro de 1975 como tentativa de esvaziar a influência dos SUV. A política do partido é a reconstituição da relação de forças no MFA, encontrando um equilíbrio entre as 3 facões e de oposição à política dos setores da extrema-esquerda que lutavam contra o Governo e o Conselho da Revolução. Cunhal, mesmo nas vésperas da independência de Angola, não deixará de afirmar publicamente: «(...) Certos radicalistas consideram que o MFA já nada conta na Revolução portuguesa, seja porque o consideram praticamente dissolvido, seja porque o consideram direitista. Em correspondência com esta atitude, formam um juízo completamente negativo em relação ao Conselho da Revolução, que alguns chamam “Conselho da Contrarrevolução”.

Tais atitudes, profundamente erradas, têm uma influência desorientadora (. ) Por muito que estas palavras desagradem aos radicalistas, o MFA e o Conselho da Revolução continuam a ser necessários. A luta das forças progressistas não deve ser para liquidar o MFA e para liquidar o Conselho da Revolução, mas, pelo contrário, para que seja reforçado o MFA como movimento progressista e vanguarda revolucionária das Forças Armadas e para que seja reforçado o Conselho da Revolução com uma participação mais significativa das tendências revolucionárias»(69).

Os SUV distanciam-se da política do PCP desde o início: «O SUV nada tem a ver com o MFA, com as suas estruturas e as suas lutas intestinas. O SUV não pretende operar uma ‘viragem à esquerda’ do MFA, nem tão pouco ‘colocar militares revolucionários no Conselho da Revolução’. O SUV luta, sim, lado a lado com todos os trabalhadores, pela ‘preparação das condições que permitam a destruição do Exército burguês e a criação do braço armado do poder dos trabalhadores: o Exército Popular Revolucionário’. Já o mesmo não se passa com a CDAP e, designadamente, com a ARPE. De facto, no ‘Manifesto da ARPE’, esta organização coloca-se declaradamente no terreno dos conflitos burocráticos e golpistas, internos ao MFA, pedindo ‘uma representação condigna de soldados na Assembleia do Exército e na Assembleia do MFA’. Não é nem será esse o terreno de luta dos SUV»(70).

Os SUV afirmam-se ainda sem ilusões nas ADUs, que são para a organização de soldados, «órgãos de colaboração de soldados (trabalhadores fardados) com a hierarquia militar (burguesia fardada)»(71). As ADUs, considera a organização, ao serem constituídas por 50% de soldados são «uma pedra na bota dos oficiais»(72) e por isso os SUV atuam dentro das ADUs. Mas a posição é romper com as ADUs e construir comissões de soldados, «eleitas e revogáveis a todo o momento»(73) e a sua junção com as comissões de trabalhadores e moradores.

O Partido Comunista fará parte da campanha, nacional e internacional, para a comutação da pena de morte dos nacionalistas bascos mas rejeitará, pela voz de Álvaro Cunhal, o ataque à embaixada de Espanha: «Condenamos firmemente, sem qualquer hesitação, a provocação levada a cabo esta madrugada contra a Embaixada de Espanha»(74).

A mobilização para a reposição de Eurico Corvacho no comando da Região Militar Norte terá o apoio do PCP, que pugnava pelo «fim dos saneamentos feitos à esquerda»(75). O PCP considera a «ocupação e encerramento do CICAP» uma «tentativa de extinção de uma unidade que se destacou pelas suas posições ao lado do povo»(76). É também no Porto que o partido vai apoiar, junto com algumas organizações de extrema-esquerda, o Conselho Municipal do Porto (do qual faziam parte comissões de moradores SAAL, cooperativas, sindicatos, etc.), que a direita procurava destituir(77). Em outubro, no dia 6, o PCP promove uma manifestação, com trabalhadores rurais alentejanos, de apoio ao Ralis.

Nesta fase PS e PPD realizam manifestações de apoio ao Regimento de Comandos da Amadora (manifestação do PS a 3 de outubro); a Franco Charais em Coimbra (manifestação do PS a 8 de outubro) e de apoio a Pires Veloso (manifestação do PPD a 8 de outubro). Esta última termina em confrontos com feridos.

As medidas repressivas de tentativa de reposição da hierarquia militar, sem encontrar consensos à esquerda, têm a oposição do PCP. O partido está contra a constituição do AMI(78) e contra a ocupação da RTP e das emissoras de rádio e «estranha que medidas de tanta gravidade e repercussão na complexa e perigosa situação política que se atravessa tenham sido tomadas sem qualquer consulta ao PCP»(79).

Em síntese, o partido opõe-se a medidas de repressão e saneamento que aumentem o peso da direita nas instituições civis e militares e apoia medidas de reforço da autoridade e disciplina militar, desde que executadas por um MFA que represente os setores de esquerda(80).

O 25 de novembro de 1975 e o «cerco à esquerda militar»

A 12 de novembro de 1975, uma grande manifestação de operários da construção civil, algumas dezenas de milhares, cerca o Palácio de São Bento, em Lisboa, onde se reunia a Assembleia Constituinte. O cerco dura dois dias. A manifestação, que começa por centrar-se nas reivindicações laborais do setor da construção civil e que se radicaliza pela recusa do Ministério do Trabalho em receber os trabalhadores, converte-se rapidamente numa mobilização contra o VI Governo(81). O PCP exige que as reivindicações dos trabalhadores da construção civil sejam satisfeitas. Mas opõe-se firmemente ao cerco, num comunicado distribuído ainda no próprio dia 13: «Apoiando a manifestação e a concentração de S. Bento, o PCP discorda, porém, do sequestro dos deputados da Assembleia Constituinte e do primeiro-ministro. (...) o sequestro não é forma de luta que favoreça os trabalhadores»(82).

Era cada vez mais evidente que a situação social, marcada por um nível de permanente conflito, fugia também ao controle do PCP, que num comunicado a 12 de novembro insta o Governo a restabelecer uma política de alianças e as «massas trabalhadoras a vencerem os divisionismos e desentendimentos»(83). A Comissão Política afirma que «o pseudo-revolucionarismo esquerdista encontra terreno fértil para atrair certas camadas da população e conduzi-las à aventura»(84).

Também o VI Governo fica perplexo com a radicalização do processo e, quando suspende funções uma semana mais tarde, a 20 de novembro, já em contagem decrescente para o golpe de 25 de novembro, alega que o cerco foi inadmissível. Pinheiro de Azevedo, no seu tom característico, dá uma famosa entrevista, já aqui em parte citada, onde diz estar «cansado de ser sequestrado», e que suspende o Governo, entre outras razões, por causa das manifestações, que são «tantas que já nem se lembra bem quais»(85).

Cinco dias depois da resposta surpreende do primeiro-ministro, um governo em greve, um país suspenso, dá-se o golpe contrarrevolucionário de 25 de novembro de 1975, que marcar o início da estabilização da democracia representativa em Portugal.

Muitas obras advogaram que o 25 de novembro tinha sido uma tentativa de golpe por parte do PCP e da esquerda militar e que a direção do PCP, em cima do golpe, teria recuado perante a capacidade de organização militar do Grupo dos 9 e dos setores mais à direita das Forças Armadas. Mário Soares, em entrevista a Maria João Avilez, já nos anos 90, defendeu que: «Houve uma tentativa de golpe, animado pela esquerda militar e pelo PCP (...) Algures na madrugada de 25 para 26 de novembro, Álvaro Cunhal deu ordem para que o PCP se retirasse de qualquer das movimentações que corriam desde a tarde da véspera»(86).

A documentação por nós consultada coloca em causa esta tese, quer o papel do PCP no 25 de novembro quer a sua relação com a esquerda militar.

Maria Manuela Cruzeiro investigou o 25 de novembro e chegou às seguintes conclusões: o 25 de novembro culminou um processo de disputa pelo poder, iniciado no verão Quente; o golpe foi espoletado por tropas paraquedistas que ocupam diversas bases aéreas na tentativa de receber apoio do COPCON. A saída dos paraquedistas é uma reação a sucessivas provocações feitas ao longo do mês de novembro por ordens de militares afetos ao Grupo dos 9, que primeiro determinaram a desativação da unidade, depois congelaram os seus vencimentos, e, finalmente, mandaram cortar o 69 fornecimento de alimentos e eletricidade à base aérea de Tancos; em resposta, um golpe, chefiado por Ramalho Eanes, com o comando operacional em Jaime Neves e Pires Veloso, com uma «força militar muito diminuta», põe em marcha um plano que visava pôr fim ao processo revolucionário em curso, e, nas palavras de Manuela Cruzeiro, substituí-lo por um «processo constitucional em curso»(87). O pretexto — para concretizar o golpe e a mudança que o Grupo dos 9, chefiado por Costa Gomes, pretendia — «caiu-lhe de bandeja pela ação dos páras»(88).

A tese do golpe da «esquerda» não tem suporte histórico porque a esquerda militar, que eventualmente teria um plano que passaria pelas unidades da Região Militar de Lisboa, amparada nas organizações de trabalhadores em apoio aos quartéis, não tinha qualquer comando operacional, nem da parte da esquerda afeta ao COPCON (Otelo aliás desaparece no dia 25 de novembro e fica incontactável) nem da parte do setor da esquerda militar mais próxima do PCP. Como refere Cruzeiro: «Uma enorme dose de putschismo quer no seio dos militares envolvidos, quer nos partidos e organizações de extrema-esquerda mantém o plano inicial embora em constante expectativa. Faltou-lhes sempre um chefe(89). Inácia Rezola, cuja análise sobre a atuação do PCP no golpe é inconclusiva, mas aponta para a tese do «recuo do PCP» escreve também que no fim da tarde de 25 de novembro «começava a tornar-se óbvia a ausência de uma liderança consensual, de um plano e de uma coordenação das ações dos sublevados»(90).

Em segundo lugar, é hoje aceite por toda a historiografia que o Grupo dos 9 tinha, desde o verão de 1975, um plano elaborado para fazer um golpe militar que repusesse a hierarquia das Forças Armadas(91).

O PCP, no dia 25 de novembro, assim que o golpe se põe em marcha, mobiliza as células operárias de várias empresas dirigidas por si, incluindo na Emissora Nacional e na RTP, e põe em alerta os Comités de Defesa da Revolução (CDR) da Região de Lisboa. Mas isso não significa, como alerta Manuela Cruzeiro, que «tivesse em mente um levantamento ou um golpe militar clássico»(92). Isto porque, como lembra a investigadora, a maioria dos seus quadros e dirigentes assistem mas não participam no 25 de novembro; dão ordens de desmobilização das ações civis conduzidas pela Intersindical, o que foi, nas palavras de Manuela Cruzeiro, «o verdadeiro golpe de rins». E, finalmente, não permitem a saída dos fuzileiros, dirigidos pelo partido. O PCP recusa a distribuição de armas a centenas ou milhares de militantes e simpatizantes que, junto das sedes do PCP e das unidades militares, as pediam. E quer as movimentações no Ralis, como na EPAM, como na PM, dirigidas por setores de esquerda, nas duas primeiras afetos ao PCP, não são ações provocadas pela esquerda mas em resposta às ações da direita: «E se bem que o argumento chave baseado na cronologia dos factos (os páras foram os primeiros) sirva como legitimidade formal, na realidade, excluindo a ação dos páras, que não constava de nenhum plano consistente, a esquerda acaba por se limitar a responder às ações da direita: o Ralis monta o seu dispositivo de alerta em resposta às barricadas de Rio Maior; a EPAM e a PM montam o seu em resposta às ameaças vindas dos comandos»(93).

A estes factos deve-se acrescentar que o PCP tinha rejeitado as ações da esquerda militar desde a queda do V Governo e assim permaneceu durante toda a vigência do VI Governo. A esquerda militar era um problema para o PCP, não era a solução. E a direção do PCP tinha-o deixado claro durante todo este período, fazendo declarações públicas, na capa do seu jornal e nas páginas do boletim de organização, onde se opunha à dualidade de poderes nas forças armadas — elegendo como alternativa a reestruturação do MFA — e à coordenação nacional das comissões de trabalhadores. Foi, ainda e sempre, contra qualquer tentativa insurrecional, apelando aos militantes, durante toda a revolução e em particular desde o verão Quente, para que não apoiassem qualquer tipo de golpe militar ou dirigissem a insurreição dos trabalhadores e seus aliados. O que não quer dizer que os militantes não estivessem preparados para reagir a um golpe militar de direita e que junto da esquerda militar a direção do PCP não tivesse combatido os saneamentos e que em unidade de ação com ela não tivesse apoiado uma mobilização, que o PCP procurou que fosse não contra o VI Governo, mas de negociação para a recomposição do VI Governo a seu favor.

A ser verdade a tese do «recuo», teríamos de concluir por uma direção inoperante e estrategicamente desnorteada, que durante quatro meses mobiliza os militantes para uma solução política e opõe-se a uma solução militar — ainda nos jornais das vésperas de 25 de novembro — e, de repente, põe em execução essa solução militar. A tese do «recuo» não tem fundamento porque pressupõe que o PCP preparou um golpe sem o preparar, ou seja, que o PCP apoiou um golpe de estado sem um comando militar operacional para o mesmo. E que, em pleno golpe, ainda no dia 25, sem nunca ter chegado a mandar a base militante avançar, recua, desmobilizando 71 a Intersindical, porque teria temido o peso militar da direita, quando este era francamente, e segundo todos os estudos, muito inferior à força militar da esquerda. Finalmente, esta tese não procura sequer explicar por que teria o PCP tentado dar um golpe, sem preparação militar e política, para fazer aquilo que poderia ter feito com o V Governo, com muito menos resistência.

O comunicado da Comissão Política do PCP, ainda no dia 25 de novembro de 1975(94), não é uma declaração de uma organização na expectativa de observar o desenlace, medir a relação de forças para tomar uma decisão, mas de um partido que dava como certa a vitória da reposição da hierarquia nos quartéis. O comunicado assume como um dado adquirido que «as unidades progressistas perderam posições, apesar de apoiadas corajosamente pelas massas trabalhadoras» e exorta a esquerda a recuar: «As forças de esquerda cometeriam também grave erro se sobrestimassem as próprias forças e tentassem qualquer ato desesperado»; o PCP procura nesse comunicado uma solução política para a crise e desvincula-se da acusação de golpe que o PS já tinha posto a circular. O comunicado rejeita também um desfecho que seja a «imposição da hegemonia da aliança PS-PPD». O PCP não só desmobiliza a Intersindical — e, portanto, ao contrário do que dizia o comunicado desse mesmo dia 25 de novembro, «as massas» não apoiaram «corajosamente» a saída dos paraquedistas e a reação das unidades como o Ralis e ou a PM —, como impede as unidades militares dirigidas pelo PCP, como os fuzileiros, de reagirem. Finalmente, o texto da declaração apela aos militantes para que se mantenham vigilantes e insistam na defesa das conquistas da revolução, mas respeitando o estado de sítio, o que significava ordem geral de desmobilização(95).

No dia 26 de novembro, Ernesto Melo Antunes, um dos líderes do Grupo dos 9, vai à televisão dizer que o PCP é indispensável para construir a democracia portuguesa e, contra o PS e setores mais à direita, recusa a ilegalização do partido, que permanece na composição do VI Governo Provisório. No campo de quem dirigiu o golpe havia, tudo indica, uma ala política que queria isolar o PCP e uma ala militar que, talvez porque reconhecesse o peso político e militar do PCP, achou por bem negociar com ele e encontrar uma saída política que o enquadrasse.

No Campo Pequeno, grande praça central em Lisboa, a 7 de dezembro de 1975, Cunhal vai mais longe e acusa a esquerda militar de ser «sectária, aventureira», e de ter «deixado de ter um papel na revolução»(96). O discurso do Campo Pequeno, que já antecede as conclusões do programa do partido para o novo período democrático, e que será apresentado no Comité Central de 13 de dezembro, é um discurso que assume a rutura com a esquerda militar e abre caminho ao apoio do PCP à reposição da hierarquia nas Forças Armadas e ao fim do MFA.

Álvaro Cunhal começa o discurso por deixar transparecer que a posição do PCP no 25 de novembro tinha tido contestação interna — as primeiras palavras são direcionadas para aqueles que «estiveram e continuam estando com o partido, seguindo a sua orientação»(97). Depois fala sobre o 25 de novembro, que classifica como «sublevações militares» das quais a direita tem responsabilidades pela política de saneamentos iniciada em Tancos. Recusa que o PCP tenha tido qualquer papel na preparação de um golpe — lembra Cunhal que, «salvo o caso dos paraquedistas na fase inicial, cada unidade sublevada remeteu-se a uma posição defensiva»(98), e insiste que o movimento operário não teve nenhum tipo de responsabilidade nos acontecimentos. O líder comunista confirma que trabalhadores e membros do PCP, «exclusivamente a título individual», mostraram apoio às unidades sublevadas. Cunhal argumenta que, para o PCP, a tragédia do 25 de novembro foi o facto de se enfrentaram militares que «deveriam ter-se entendido para uma solução política». Nesse sentido, Cunhal apela à unidade dos militares que se confrontaram: «Cremos que seria um erro fatal se hoje se estabelecesse uma divisão efetiva e irremediável entre os militares sublevados e os que dominaram a sublevação»(99).

O discurso prossegue com o balanço de que a crise ter-se-á iniciado, em agosto, com a «acentuação do sectarismo e a formação do Grupo dos 9», que abriu um brecha no MFA permitindo que a «reação» «tivesse caminhado na esteira do Grupo dos 9 e do PS»(100). Faz-se aqui um apelo ao PS para que não se deixe orientar pela política de direita que levaria à instauração de uma ditadura e apela-se ao apoio ao Grupo dos 9, com cuja aliança o PCP teria impedido a instauração de uma nova ditadura. É no contexto desta análise política — a de que o 25 de novembro resultou numa aliança de facto entre Grupo dos 9 e PCP — que o partido avança para a tentativa de descrédito político da esquerda militar, e a necessidade de isolá-la do movimento operário, depois de esta ter sido derrotada nos quartéis: «Com a esquerda militar, e com certos setores políticos da esquerda sucedeu, em sentido inverso, coisa parecida. Esses setores, na luta contra a direita, aliaram-se com setores esquerdistas pseudo-revolucionários, cujo radicalismo, divisionismo, exaltação verbal voltada para uma solução de força de tipo putshista, contribuíram para dificultar e de certa forma impedir uma solução política da crise (tal como o PCP defendia) através da negociação e da reunificação das várias tendências do MFA e de uma remodelação dos órgãos de poder. Nesses setores esquerdistas há sem dúvida gente sincera, homens e mulheres que anseiam, tal como nós, a liberdade, o progresso social, o socialismo. Mas a sua orientação fechada, sectária, divisionista e aventureirista foi uma pesada hipoteca para toda a esquerda, que veio a pagar caro tal aliança. Esses setores não se mostram inclinados para aprenderam com a experiência. Aprendam eles ou não aprendam, o movimento operário e popular tem necessariamente de aprender»(101).

Cunhal prossegue dizendo que «os elementos esquerdistas» chegaram a ter alguma influência em certas unidades, mas provocaram a rutura ao insistirem em ser «contra o Conselho da Revolução», ao se recusarem a negociar com «os Nove e com setores moderados»(102). Pela primeira vez, desde o início da Revolução, Cunhal refere-se ao Quadro Permanente e acusa a esquerda de ter conduzido uma «contestação global do Quadro Permanente, o que facilitou a deslocação para a direita de militares»(103) .

Recusa depois que a esquerda militar continue a ter qualquer tipo de papel na direção do País: «Numa perspetiva mais longa, aquilo a que se chamou a esquerda militar poderá readquirir importante papel no País. No momento presente deixou de ser para a revolução portuguesa, de forma concreta e prática, e em termos de força, aquilo que foi desde o 25 de abril até ao 25 de novembro: um setor dinamizador e revolucionário do MFA e uma das principais forças motoras da revolução portuguesa»(104).

O líder comunista reconhece modificações profundas no após 25 de novembro e defende a oportunidade de repor a estratégia de aliança com o Grupo dos 9 e o PS. Confirma que, aniquilada a esquerda militar, essa política de alianças se tornou muito mais fácil: «Por paradoxal que pareça, a derrota da esquerda militar, pelos trágicos ensinamentos que traz e pelos perigos imediatos que levanta, cria condições novas para a unidade das forças interessadas na salvaguarda das liberdades, da democracia, da revolução»(105).


Notas de rodapé:

(1) Santos, Boaventura Sousa, «A Crise e a Reconstituição do Estado em Portugal. 1974-1984», Revista Crítica de Ciências Sociais, 14, 1984, p. 24. (retornar ao texto)

(2) Cunha, Carlos A., The Portuguese Communist Party´s Strategy for Power 1921-1986, Garland Publishing, Inc. New York & London, 1992, p. 4. (retornar ao texto)

(3) Gaspar, Carlos, e Rato, Vasco, Rumo à memória. Crónicas da Crise Comunista, Lisboa, Quetzal Editores, 1992, p. 33. (retornar ao texto)

(4) Ferreira, António Medeiros, Portugal em Transe (1974-1985), vol. 8 da História de Portugal, dir. José Mattoso, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, p. 256. (retornar ao texto)

(5) Morlino, Leonardo, «Political Parties and Democratic Consolidation in Southern Europe», in Gunther, R., Diamendouros P. N. (eds), Southern Europe in Comparative Perspetive, Baltimore and London, Johns Hopkings University Press, 1995, p. 369. (retornar ao texto)

(6) Maxwell, Kenneth, A Construção da Democracia em Portugal, Lisboa, Editorial Presença, 1999, p. 202 (retornar ao texto)

(7) O arquivo do PCP permanece encerrado aos investigadores. Também o arquivo da URSS face a este período a Portugal está incessável. (retornar ao texto)

(8) Sá, Tiago Moreira de, Os Estados Unidos da América e a Democracia Portuguesa (1974-1976), Lisboa, MNE, Instituto Diplomático, 2009. (retornar ao texto)

(9) Varela, Raquel, História da Política do Partido Comunista Português durante a Revolução dos Cravos (1974-1975), Tese de Doutoramento em História Política e Institucional do Período Contemporâneo, ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa, junho 2010. (retornar ao texto)

(10) Rezola, Maria Inácia, Os Militares na Revolução de abril: o Conselho da Revolução e a Transição para a Democracia em Portugal, Lisboa, Campo da Comunicação, 2006. (retornar ao texto)

(11) Piçarra, Constantino, As Ocupações de Terras no Distrito de Beja. 1974-1975, Coimbra, Almedina, 2008 . (retornar ao texto)

(12) Lisi, Marco, «O PCP e o Processo de Mobilização (1974-1975)», Análise Social, n.º 182, 2007, pp. 181-203. Louçã, Francisco, «A ‘Vertigem Insurrecional’: Teoria e Política do PCP na Viragem de agosto de 1975», Revista Crítica de Ciências Sociais, n.º 15/16/17, 1985, pp.149-162. Arcary, Valério, «Uma nota histórica sobre o PCP e a revolução portuguesa: a defesa de um projeto autárquico de capitalismo regulada», Atas do I Colóquio Os Comunistas em Portugal, Lisboa, Política Operária, 2010, no prelo.
(retornar ao texto)

(13) Hammond, John. «Worker Control in Portugal: The Revolution and Today», in Economic and Industrial Democracy, London, Sage Publications, 1981, pp. 413-453. (retornar ao texto)

(14) Dows, Chip, Os Moradores à Conquista da Cidade, Lisboa, Armazém das Letras, 1978; Arcary, Valério, «Quando o Futuro era Agora. Trinta Anos da Revolução Portuguesa», outubro, n.° 11, 2004, pp. 71-92. (retornar ao texto)

(15) Piçarra, Constantino, As Ocupações de Terras no Distrito de Beja. 1974-1975, Coimbra, Almedina, 2008. «Surto Grevista», Diário de Lisboa, 5 de maio de 1975, p. 1, «A TAP disse não à greve», Diário de Lisboa, 6 de maio de 1975, p. 1. (retornar ao texto)

(16) Treffault, Sérgio, Um Outro País, Lisboa, Público, 2004. (retornar ao texto)

(17) Dows, Os Moradores à Conquista da Cidade, p. 59. (retornar ao texto)

(18) «Medidas Revolucionárias. Avanço da revolução», Avante!, Série VII, 24 de abril de 1975, p. 8. (retornar ao texto)

(19) Records of the Prime Ministers Office: Correspondence and Papers PREM 16/602.
Visit to UK by Portuguese Foreign Minister, Major Melo Antunes: meeting with Prime Minister on 27 June 1975
PORTUGAL Records of the Prime MinistersDate: 1975.Source: The Catalogue of The National Archives. (retornar ao texto)

(20) «O caso do jornal Republica», Avante!, Série VII, 22 de maio de 1975, p. 5. (retornar ao texto)

(21) Records of the Prime Ministers Office: Correspondence and Papers PREM 16/602
Visit to UK by Portuguese Foreign Minister, Major Melo Antunes: meeting with Prime Minister on 27 June 1975
PORTUGAL Records of the Prime MinistersDate: 1975.Source: The Catalogue of The National Archives. (retornar ao texto)

(22) Varela, Raquel, História do PCP na Revolução dos Cravos, Lisboa, Betrand, 2011. (retornar ao texto)

(23) «Nota sobre o momento político», Comissão Política do CC do PCP 11 de julho de 1975, in Documentos do CC do PCP. 3.° Volume, julho/dezembro de 1975, Lisboa, Edições Avante!, 1976, pp. 31-34. (retornar ao texto)

(24) «Nota da Comissão Política», de 27 de julho de 1975, Avante!, Série VII, 31 de julho de 1975, p. 4. (retornar ao texto)

(25) Cronologia Pulsar da Revolução, julho de 1975, Centro de Documentação 25 de abril. http://www1.ci.uc.pt/cd25a/ wikka.php?wakka=PulsarJulho75, consultado a 12 de novembro de 2009. (retornar ao texto)

(26) Rezola, Os Militares na Revolução de abril., p. 352-353. (retornar ao texto)

(27) Rezola, Os Militares na Revolução de abril., p. 347.(retornar ao texto)

(28) «Discurso na tomada de posse do V Governo Provisório», in Gonçalves, Vasco, Discursos. Conferências. Entrevistas, Lisboa, Seara Nova, 1977, pp. 357-359. (retornar ao texto)

(29) Cunhal, Álvaro, Do 25 de novembro às Eleições para a Assembleia Constituinte. Discursos Políticos 6, Lisboa, Edições Avante!, 1976, pp. 9-35. (retornar ao texto)

(30) «Comunicado sobre a formação do V Governo Provisório», Comissão Política do CC do PCP, 8 de agosto de 1975, in Documentos Políticos do CC do PCP. 3.° Volume, julho/dezembro de 1975, Lisboa, Avante, 1976, pp. 70-74. (retornar ao texto)

(31) «Discurso no comício do PCP na Praça do Campo Pequeno», 28 de junho de 1975, in Cunhal, Álvaro, A Crise Político Militar. Discursos Políticos 5, Lisboa, Edições Avante!, 1976, pp. 94-95. (retornar ao texto)

(32) «Comunicado sobre a formação do V Governo Provisório», Comissão Política do CC do PCP, 8 de agosto de 1975, in Documentos Políticos do CC do PCP. 3.° Volume..., pp. 70-74. (retornar ao texto)

(33) Avante!, Série VII, 7 de agosto de 1975, p. 1. (retornar ao texto)

(34) Avante!, Série VII, 14 de agosto de 1975, p. 1. (retornar ao texto)

(35) Avante!, Série VII, 11 de agosto de 1975, número especial, p. 1. (retornar ao texto)

(36) «Intervenção na reunião plenária do CC do PCP», 10 de agosto de 1975, in Cunhal, A Crise Político Militar..., p. 139. (retornar ao texto)

(37) «Intervenção na reunião plenária do CC do PCP», 10 de agosto de 1975, in Cunhal, A Crise Político Militar., p. 139. (retornar ao texto)

(38) Ibidem. (retornar ao texto)

(39) Idem, pp. 127-166. (retornar ao texto)

(40) Ibidem. (retornar ao texto)

(41) Idem, p. 162. (retornar ao texto)

(42) Idem, pp. 127-166. (retornar ao texto)

(43) Gonçalves, Discursos..., p. 377. (retornar ao texto)

(44) Cruzeiro, Maria Manuel, Vasco Gonçalves. Um General na Revolução, Lisboa, Editorial Notícias, 2002. (retornar ao texto)

(45) «Discurso no comício do PCP em Évora», 24 de agosto de 1975, in Cunhal, A Crise Político Militar., p. 189. (retornar ao texto)

(46) «Intervenção na reunião plenária do Comité Central do PCP», 10 de agosto de 1975, in Cunhal, A Crise Político Militar…, pp. 156-157. (retornar ao texto)

(47) «Declaração sobre a crise política atual», 20 de agosto de 1975, in Documentos Políticos do Comité Central do PCP, 3.° Volume., pp. 87-98. (retornar ao texto)

(48) Rezola, Os Militares na Revolução de abril…, p. 399. (retornar ao texto)

(49) «A Distância como Política», 8 de outubro de 1975, in Saramago, José, Os Apontamentos, Lisboa, Caminho, 1990, p. 314. (retornar ao texto)

(50) Rezola, Os Militares na Revolução de abril...; Maxwell, Kenneth, A Construção da Democracia em Portugal, Lisboa, Editorial Presença, 1999; Ferreira, Portugal em Transe (1974-1985).... (retornar ao texto)

(51) Cunha, Carlos, A., The Portuguese Communist Party's Strategy for Power 1921-1986, Garland Publishing, Inc. New York & London, 1992, p. 259. (retornar ao texto)

(52) Os SUV em Luta, Lisboa, 1975. (retornar ao texto)

(53) Cronologia Pulsar da Revolução. In http://www1.ci.uc.pt/cd25a/wikka.php?wakka=PulsarSetembro75. Consultado a 16 de fevereiro de 1975. (retornar ao texto)

(54) Rezola, Os Militares na Revolução de abril., p. 419. (retornar ao texto)

(55) Rezola, Os Militares na Revolução de abril., p. 418. (retornar ao texto)

(56) Arquivo da RTP. http://www.youtube.com/watch?v=6DB42QUJYSM. Consultado a 19 de janeiro de 1975. (retornar ao texto)

(57) Avilez, Maria João, Soares. Ditadura e Revolução, Lisboa, Público, 1996, p. 483. (retornar ao texto)

(58) Rezola, Os Militares na Revolução de abril., p. 420. (retornar ao texto)

(59) Idem, p. 421. (retornar ao texto)

(60) Idem, p. 423. (retornar ao texto)

(61) Santos, Paula Borges, «O Caso da Rádio Renascença», História, n.° 27, julho/agosto 2000, p. 57. (retornar ao texto)

(62) A solução da crise passa pela negociação», Avante!, Série VII, 11 de setembro de 1975, p. 2. (retornar ao texto)

(63) «O Chile vencerá», Avante!, Série VII, 11 de setembro de 1975, p. 3. (retornar ao texto)

(64) A solução da crise passa pela negociação», Avante!, Série VII, 11 de setembro de 1975, p. 2. (retornar ao texto)

(65) «Nota sobre a formação do VI Governo Provisório». In Documentos Políticos do Comité Central o PCP 3.° Volume.., pp. 117-121. (retornar ao texto)

(66) «Nota sobre a formação do VI Governo Provisório»... p. 119. (retornar ao texto)

(67) «Grandiosa manifestação em Lisboa», Avante!, Série VII, 25 de setembro de 1975, p. 8. (retornar ao texto)

(68) «Editorial», Avante!, Série VII, 18 de setembro de 1975, p. 2. (retornar ao texto)

(69) «Discurso no Pavilhão dos Desportos», 7 de novembro de 1975, in Cunhal, A Crise Político-militar..., pp. 352-353. (retornar ao texto)

(70) «Os Pontos nos ii...nada de Confusões!», in Os SUV em Luta, Lisboa, 1975, p. 31. (retornar ao texto)

(71) «Não há legalização dos SUV», in Os SUV em Luta, p. 40. (retornar ao texto)

(72) «Entrevista com um soldado SUV-Norte», in Os SUV em Luta, pp. 20-30. (retornar ao texto)

(73) «Entrevista com um soldado SUV-Norte», in Os SUV em Luta, pp. 20-30. (retornar ao texto)

(74) Idem. (retornar ao texto)

(75) «Nota sobre os últimos acontecimentos políticos», in Documentos Políticos do Comité Central o PCP. 3.° Volume..., pp. 143-148. (retornar ao texto)

(76) «Nota sobre os últimos acontecimentos políticos», in Documentos Políticos do Comité Central o PCP 3° Volume., pp. 143-148. (retornar ao texto)

(77) «O futuro da comissão administrativa da Câmara Municipal do Porto», Avante!, Série VII, 9 de outubro de 1975, p. 6. (retornar ao texto)

(78) «Comunicado sobre a situação política», in Documentos Políticos do Comité Central o PCP 3.° Volume, pp. 137-143. (retornar ao texto)

(79) «Nota sobre a ocupação militar da RTP e emissores de rádio», in Documentos Políticos do Comité Central o PCP 3.° Volume, pp. 127-131. (retornar ao texto)

(80) «A situação atual analisada por Álvaro Cunhal», Avante!, Série VII, 2 de outubro de 1975, p. 6. (retornar ao texto)

(81) «Trabalhadores da Construção civil em Luta», Avante!, Série VII, 13 de novembro de 1975, p. 2. (retornar ao texto)

(82) «Nota do PCP sobre a greve e a manifestação da construção civil», 13 de novembro de 1975. Nota da Comissão Política do CC do PCP In Documentos do PCP. Centro de Documentação 25 de abril. Coimbra. (retornar ao texto)

(83) «Nota sobre a atual situação política», in Documentos Políticos do Comité Central o PCP. 3.º Volume, pp. 195-200. (retornar ao texto)

(84) Idem. (retornar ao texto)

(85) Arquivo da RTP http://www.youtube.com/watch?v=6DB42QUJYSM. Consultado a 19 de janeiro de 2010. (retornar ao texto)

(86) Avilez, Soares. Ditadura e Revolução., p. 487. (retornar ao texto)

(87) Cruzeiro, Maria Manuela. «25 de novembro: Quantos Golpes Afinal?». Comunicação apresentada no Colóquio sobre o 25 de novembro, realizado no Museu República e Resistência, 2005. In http://www1.ci.uc.pt/cd25a/wikka. php?wakka=th10 Consultado a 28 de novembro de 2010, p. 1. (retornar ao texto)

(88) Idem, p. 9. (retornar ao texto)

(89) Idem, p. 2. (retornar ao texto)

(90) Rezola, Os Militares na Revolução de abril…, p. 483. (retornar ao texto)

(91) Rezola, Os Militares na Revolução de abril…, p. 485. (retornar ao texto)

(92) Cruzeira, «25 de novembro: Quantos Golpes Afinal?»..., p. 3. (retornar ao texto)

(93) Idem, p. 7. (retornar ao texto)

(94) «Nota sobre a situação política», 25 de novembro de 1975, in Documentos Políticos do Comité Central o PCP 3.° Volume., pp. 225-228. (retornar ao texto)

(95) Idem. (retornar ao texto)

(96) Cunhal, Álvaro, Do 25 de novembro às Eleições para a Assembleia Constituinte. Discursos Políticos 6, Lisboa, Edições Avante!, 1976, pp. 9-35. (retornar ao texto)

(97) Idem (retornar ao texto)

(98) Idem (retornar ao texto)

(99) Idem (retornar ao texto)

(100) Idem (retornar ao texto)

(101) Idem (retornar ao texto)

(102) Idem (retornar ao texto)

(103) Idem (retornar ao texto)

(104) Idem (retornar ao texto)

(105) Idem (retornar ao texto)

Inclusão: 26/04/2020
Última alteração: 17/10/2023