O Futuro Era Agora
O movimento popular do 25 de Abril
Os 580 dias - Depoimentos orais e citações

Edições Dinossauro


Toda a gente empenhada em mudar a vida
Jorge Falcato Simões, arquitecto, 40 anos


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Tinha vinte anos e estava em Arquitectura. O primeiro episódio de que me lembro foi na Vítor Cordon. A malta da escola estava toda na rua e havia um cordão de fuzileiros a aguentar a multidão, num dos acessos à Pide. Foi quando¨o capitão Maltês aparece a pôr-se à disposição do MFA, com duas carrinhas de choques. Quando vimos as carrinhas, começa tudo a gritar “Assassinos”. O que me surpreendeu foi que, quando o Maltês sai da carrinha para ir conferenciar com o MFA, pensava eu que só era conhecido no meio estudantil. Mas os populares começam a gritar: “Olha o capitão Maltês, aquele cabrão, aquele assassino!”

Viu-se logo ali que havia dois poderes: o povo queria chegar a roupa ao pêlo ao capitão Maltês, e os fuzileiros protegiam-no. No Largo Camões ainda houve pedrada contra as carrinhas de choque, de onde saíram uns tiros, mas as coisas ficaram por ali, porque eles viram que o ambiente não era propício para andarem na rua e foram-se embora.

Estive na manifestação do 1º de Maio que andou às voltas por Lisboa toda. A recordação que tenho desses tempos é de que as pessoas tinham qualquer coisa a dizer sobre o seu destino, intervir e modificar o futuro. Ias a um bairro de lata e havia pessoas organizadas, comissão de moradores, grupo de teatro, toda a gente estava empenhada em construir qualquer coisa, o seu próprio futuro. As pessoas convenceram-se que conseguiam mudar a vida. Agora é esta apatia!

Para mim, uma das cenas mais bonitas por essa altura foi a ocupação do Bairro 2 de Maio. Foi uma grande manifestação de pessoal das barracas, que sobe a calçada da Ajuda em direcção ao bairro da Fundação Oliveira Salazar, onde havia uma série de prédios acabados e desocupados. Foi inesquecível ver a manifestação entrar no bairro e cinco minutos depois as janelas todas abertas, com toda a gente à janela a gritar: “Já tenho uma casa! Já tenho uma casa!” Era uma coisa indescritível, o poder daqueie pessoal a entrar por ali dentro, a ocupar, e depois a felicidade que sentiram, ao apropriarem-se de uma casa.

O pior é que nos primeiros cinco minutos foi “Eu tenho uma casa”, mas nos cinco minutos seguintes foi “Não queremos cá os ciganos”. Eu que pensava que o povo fazia sempre as coisas bem feitas, vi ali o reverso da medalha. Também havia ali contradições para resolver. E lá passámos não sei quanto tempo a convencer o pessoal que os ciganos não iam fazer mal a ninguém e tinham tanto direito à casa como eles.

Naquela altura nós íamos a todas. Eu estava organizado em termos associativos na escola, mas era bastante independente em relação aos grupos políticos. Havia um grupo de esquerda com quem eu me dava e andávamos, num estilo de franco-atiradores, a colar recortes da Voz do Povo em jornais murais. Íamos para os bairros de lata colar aquilo, fazer pichagens, comunicados, etc. No fundo, éramos um grupo de agitação e propaganda a trabalhar por conta própria. Era a característica daqueles tempos: quem sentia a época que se vivia, avançava, nem que fosse com um grupo de amigos.

Viemos a integrar-nos todos na UDP quando ela se formou. Surgiu naturalmente: um de nós anunciou que ia formar-se um partido assim e assado e que íamos todos alinhar. E assim foi. Montámos o NIC (Núcleo de Iniciativas Centrais), que produzia cartazes, painéis, etc. Era um núcleo com piada, que foi agregando cada vez mais gente, formou brigadas de agitprop que iam para sítios onde a UDP não tinha organização nenhuma. Passavam lá o dia, afixavam um jornal mural e apareciam logo pessoas que paravam, queriam discutir, dar opiniões; iam para a tasca com o pessoal, e muitas vezes formavam núcleos.

Depois fui trabalhar para o SAAL, que projectava e acompanhava a construção de bairros sociais, mas com uma equipa técnica que ia para o local, com o próprio atelier a funcionar na zona, para se ir elaborando o projecto com a participação das populações. Os arquitectos eram confrontados com os problemas que as pessoas levantavam a respeito da habitação e procuravam as melhores soluções.

Com o 25 de Novembro, chegou uma altura em que o poder disse: já chega, já brincaram o suficiente, vamos pôr ordem na bagunça. Se houvesse outro 25 de Abril agora, com o nível de consciência que eu tinha então, fazia exactamente o que fiz. Hoje, com outra consciência, continuo a prezar valores que defendi. Só que a maneira de os atingir se me apresenta confusa. Uma coisa é certa: não cairíamos nas mesmas armadilhas.

★★★

Jorge Falcato foi gravemente ferido a tiro pela PSP em 10 de Junho de 1978, quando protestava contra uma manifestação de extrema-direita, tendo ficado paraplégico. Em consequência dos disparos da policia, morreu na mesma ocasião o estudante José Jorge Morais.

★★★

Nós ocupámos as casas. Agora temos que organizar a sua ocupação e ver o que há a fazer. São os mais necessitados que precisam de maior ajuda. Devemos ajudar-nos uns aos outros e trabalhar para a unidade. Organizaremos uma lista dos que vão para as casas já acabadas e, uma vez aprovada por nós, tem que ser levada à prática, haja o que houver. O povo é que tem que fazer isto com as suas próprias mãos.

Em relação às casas ainda não acabadas nós devemos ocupá-las também e exigir que o empreiteiro as acabe. Ele já recebeu dinheiro e por isso tem que as acabar. Enquanto as não acabar ninguém lhe paga renda! As casas são do povo! O povo vencerá! Em frente na luta pela pão!”

(Comunicado dos moradores do bairro do Casalinho sobre a ocupação das casas da Fundação Salazar, Maio de 74)

continua>>>


Inclusão 23/11/2018