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Estava eu no Viaduto de Gonçalo Cristóvão, a ver cair máquinas de escrever dum quinto andar do CDS, quando ouvimos uma voz: “Camaradas, há uma sede do PDC na Praça Velasquez!” “Embora lá!” E lá fomos por ali acima, talvez uns trezentos putos, com dois megafones que nasceram não sei donde. Pelo caminho, fomos enchendo os bolsos de pedras e engrossando a voz com palavras de ordem. Ao chegar à Praça Velasquez, ouviram- se tiros. Três, quatro, talvez cinco.
Gritei para a minha irmã: “Aqui, atrás da árvore!”
E enquanto nos abrigávamos, fomos percebendo que os tiros vinham todos do mesmo sítio; surgiu na nossa direcção, vindo do lado dos tiros, um miúdo, para aí duns treze anos, com um chapéu de polícia na mão, como se fosse um troféu, excitadíssimo, a gritar:
“Foi a ‘bófia’! Eu sei quem eles são, são da esquadra das Antas!”
E logo a seguir, outro puto, atrás dele, abria o casaco: “Olha, olha! Olha aqui!”. E mostrava um buraco de bala. Um redondíssimo buraco de bala, perfeitinho e queimadinho a toda a volta do buraco. Quer dizer, enquanto nós fugíamos para trás das árvores da Praça Velasquez, estes dois putos, em vez de fugirem, correram contra os polícias que disparavam contra nós.
Tornámo-nos a juntar e a voz colectiva que saiu agora foi de revolta legítima:
“Polícia, fascista, a-ssa-ssina!” “Vamos assaltar a Esquadra das Antas!” “Vamos!”
Parece que foi milagre: logo a seguir, aparece uma Berliet a correr, salta lá de dentro um tenente do exército, vem cá para trás, onde acaba a Berliet e começa o toldo, põe um pé em cima da “varanda” do camião, pega no megafone e atira:
“O povo istá cuémiéfiá! O povo istá cuémiéfiá!” Reacção do pessoal :
“Ó,ó,ó,ó, olha-meste, vai mas é p’ra casa! Ó muoço, vai p’á tua terra! Mas o que é que ele quer?”
Reacção do tenente, perante a reacção do pessoal:
“Então, (ao megafone) se o Povo está com o MFA, o MFA está com o Povo. Se o Povo quer ir assaltar a esquadra das Antas, o MFA também vai! O MFA vai evacuar a esquadra das Antas!”
E o Éméfiá foi à frente.
A Esquadra das Antas funcionava numa moradia, estilo anos sessenta, com um jardinzeco e um portão de grades a dar para uma rua paralela à avenida do Estádio do “Glorioso”. Uma rua estreita de um só sentido.
Quando lá chegámos, já havia um cordão de soldados sempre, sempre ao lado do povo, defronte do jardim da esquadra.
E ficámos à espera. E esperámos. E tornámos a esperar.
Só que, em vez de desesperar, o povo foi engrossando, ia chegando gente e a perguntar: “O que é que há aqui? Ai, sim? Ai dispararam? Então deixa-me ficar.”
E os talvez trezentos putos do princípio eram agora com certeza uns seiscentos.
Passaram-se duas horas. Lá dentro, nada. Cá fora, íamos nuns setecentos.
De repente, sem avisar, abre-se o portão e sai, a romper o cordão de soldados, uma Berliet carregadinha de polícias.
Só deu tempo de perceber o que se estava a passar e de atirar meia-dúzia de calhaus ao toldo de lona que já ia a drapejar no fundo da rua.
Tenho a impressão que houve um polícia que chegou a levar com uma pedrada na cabeça, mas mais nada.
Apupos, assobios e frustração.
Mas o dia, afinal, ainda não tinha acabado. Novamente sem avisar, sai um Austin Cambridge com seis graduados da PSP, três à frente e três atrás, a tentar furar por entre a massa. O condutor hesitou por um só segundo. Foi o suficiente. Quando um carro pára, é curioso, por mais potente que seja o motor, não tem mais força que setecentas pessoas. O fulano meteu a segunda, tornou a meter a primeira, o carro pareceu plissar, mas praticamente já não saiu do sítio.
Primeiro, foi o pára-brisas da frente que ficou em migalhas, depois foram os vidros do lado.
E a malta — eu vi — encavalitada em cima do capot, a meter varapaus lá para dentro, com murros à mistura, descarregava um ódio de séculos.
Os polícias conseguiram sair do carro e foram fugindo, às cegas, dos sopapos e dos pontapés. Eu fiquei entre o arrepio e a comoção, a vê-los desaparecer à esquina da rua. Sangravam um bocadinho.
Mas o que mais me marcou nesse fim de tarde foi talvez, já no caminho de regresso, em frente à Igreja das Antas, a confissão daquele miúdo:
“É pá, eu estava parado no passeio e ouvi ‘Olha o bófia, olha o bófia! Agarra o gaijo!’ Só tive tempo de olhar e ver o polícia a fugir. Meti-lhe a biqueira, o gaijo espalhou-se ao comprido e pôs-se a gemer, de joelhos p’ra mim: ‘Misericórdia! Misericórdia!’ É pá, até fiquei cheio de peninha do polícia! Peguei no pau e pus-me a bater. Eu a bater, eu a bater e o bófia a chorar: ‘ Misericórdia!’... Aquilo até metia nojo!”
Era um relato sincero, sem cinismo nem ironia. Ele tinha de facto pena do homem. Mas o ódio que tinha ao polícia era muito maior.
Ainda hoje estou para saber se existia alguma sede do PDC na Praça Velasquez.
★★★
“A prevista e não concretizada intervenção das forças militares nos CTT não se destinava a ‘reprimir uma luta dirigida por trabalhadores’, como tendenciosamente tem sido propalado, mas precisamente a defender esses trabalhadores, e o povo em geral, contra manobras dissimuladas de agentes perturbadores que estão a actuar em flagrante oposição aos objectivos do programa do MFA.” (De um comunicado do Estado-Maior do Exército)
Inclusão | 23/11/2018 |