O Futuro Era Agora
O movimento popular do 25 de Abril
Os 580 dias - Depoimentos orais e citações

Edições Dinossauro


A “revolução” no Estado Maior
António S., professor do ensino secundário, 48 anos


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No dia 19 ou 20 de Abril, era eu alferes miliciano da 2ª Repartição de Informação e Contra-Informação, em Santa Apolónia, fui encarregado pelo meu chefe, um coronel, de preparar uma reunião de chefes militares no anfiteatro, com a recomendação de que não poderia haver microfones nem gravadores.

Entretanto, sou chamado à 4ª Repartição do Estado- Maior (de estratégia) por uns senhores capitães que me disseram que a reunião era de generais da “brigada do reumático” que se preparavam para organizar uma revolta militar de resposta à tentativa do golpe das Caldas. Portanto pediam-me que me infiltrasse na reunião para saber o que lá se passasse. Ainda tentei convencer o coronel a deixar-me estar presente, nem que fosse para servir chá, mas ele não consentiu.

Então lembrei-me de comprar blocos de papel muito fino, com lápis muito duros, para o que eles escrevessem ficar gravado por baixo. Pus à frente de cada lugar o nome do oficial que devia aí sentar-se. Ao fim da tarde, quando eles saíram, fui a correr buscar os blocos e tirar as folhas de baixo para mandar para a 4ª Repartição. Fiquei alarmado, na convicção de que estava iminente um golpe de extrema-direita.

Na noite de 24, ao passar perto do parque Eduardo VII, fui cair numa barragem de militares que não me deixaram passar. Identifiquei-me e pedi para falar com o capitão. Explicou-me que algo se estava a passar mas que não me preocupasse, porque era coisa interessante. Relacionei logo com a reunião dos generais e concluí que eram eles a tomar posições em Lisboa. Fui dar uma volta e ao chegar ao Campo Pequeno vejo a parada dos tanques que vinham de Santarém. Fiquei assustadíssimo, pensei que era mesmo o golpe fascista. Achei que o melhor era ir para o Estado-Maior, porque aí estaria em segurança e não me acusariam de estar a avisar inimigos.

Entrei e vi uma grande agitação, um pelotão de 30 homens a fazer a segurança à porta, armados, os coronéis a correr para baixo e para cima. Então ocorreu-me que, sendo apanhado ali de madrugada, desfardado, sem me mandarem chamar, podiam pensar que estava a dar a minha solidariedade àquele golpe fascista e o melhor era pôr-me a andar. Insisti com o coronel (“isto é uma coisa entre os senhores coronéis, eu não tenho nada a ver com isto, quero ir dormir que ainda não me deitei”). Tanto o xinguei que o homem deixou-me sair. Já deviam ser seis e meia da manhã. Mandou-me apresentar ao meiodia, fardado.

Assim fiz. Quando cheguei, o coronel manda-me chamar para saber o que tinha visto nas ruas. Apercebi-me então que eles não estavam a controlar a situação. Dei-lhe os sinais todos trocados, e apesar de ter visto os tanques no Terreiro do Paço, disse que estava tudo calmo e não tinha visto nada. Mas logo me arrependi porque, se me descobrissem, então é que ia preso mesmo.

Apercebo-me que o pelotão, que estava lá para fazer a segurança do general D. João de Paiva Brandão, já não tinha o mesmo comandante, deixara de fazer a segurança ao general e estava agora a fazer a segurança aos revolucionários, os tais da 4ª Repartição que me tinham contactado dias antes. O general, que tinha chegado de Mercedes, de motorista e com batedores, saiu num Mini-Minor, levado para casa pelo Sanches Osório. Já se tinha dado como derrotado.

Por volta das duas da tarde, fomos chamados, os alferes e aspirantes, por outro major, para uma sala. Ali, em nome do movimento dos capitães, disse-nos que estava em curso um golpe contra o regime e perguntou quem estava a favor e quem estava contra. Surgiram logo discrepâncias: um (hoje comentador político conhecido, de direita) perguntou se podia dar a resposta no dia seguinte; outro queria saber primeiro quem é que estava a ganhar; outros, se não se podia pôr uma urna para fazer voto secreto. Passados uns minutos de confusão, já estávamos todos a favor do golpe do 25 de Abril, mesmo aqueles que só queriam votar no dia seguinte. Ele congratulou-se com isso, recomendou que estivéssemos calmos, que nos desfardássemos, fôssemos todos para casa e aguardássemos instruções. Estive a ver as movimentações de rua pela televisão, com uns amigos, em casa, como me mandaram.

Passados dias, fui incumbido de ir a outro edifício do Estado-Maior, onde havia uma tipografia que fazia todas as publicações do exército, dirigida por um civil, homem altamente fascista, que não deixava sequer os soldados irem à casa-de-banho nas horas de serviço. Fui mandado lá dar uma explicação a esses soldados sobre o que se estava a passar, porque ele não lhes tinha explicado nada. Quando cheguei, o homem proibiu-me a entrada. Eu impus-me, para grande espanto dos soldados. Mandei-os formar e expliquei-lhes tudo. Perguntei o que pensavam, mas estavam muito confusos, não sabiam o que responder. Só um disse que era a favor. Disse-lhes que não cumprissem mais ordens daquele senhor e mais tarde ele foi saneado. Hoje está muitíssimo bem na vida, abriu várias tipografias e veio a trabalhar muito para o Estado-Maior democrático. Ficou muito melhor que dantes, economicamente.

Continuei mais uns meses na tropa, até Janeiro de 1975. No 28 de Setembro, estava em Paris, num curso de jornalismo, com outros portugueses; foi uma angústia terrível, porque não tínhamos informações. Entre os meus colegas do curso, uns eram a favor do Spínola, outros contra, e geraram-se tensões muito fortes e atitudes muito duras de uns contra os outros. O que dirigia o curso, que era pró-spinolista, tomou atitudes de controlo da informação, para nós não sabermos o que se passava. Ao fim de um ou dois dias viemos a saber. Nós ficámos muito triunfantes, e os que tinham sido a favor do golpe puseram logo muito MFAs outra vez e tudo correu como dantes.

★★★

Noite de 25 de Novembro, diálogo telefónico entre Vasco Lourenço, comandante da Região Militar de Lisboa, e Campos Andrada, comandante do Regimento da Polícia Militar da Ajuda:

V.L. - Tenho notícias que há muita gente à frente do palácio de Belém e do RPM, fá-los dispersar.

C.A. - Como? Queres que os leve em caixões, como os comandos? Olha que são trabalhadores.

V.L - Desenrasca-te.

C.A. - Como?

V.L. - A tiro.

C.A. - Vai...”

(A Luta Continua, boletim do comité Albertino Bagagem, Novembro 75)

continua>>>


Inclusão 23/11/2018