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Aguiar é uma aldeia situada a 20 quilómetros de Évora. A terra é o único recurso dos seus 500 trabalhadores. Antes do 25 de Abril, homens e mulheres partiam, durante largos meses, para Moura e para o Ribatejo, procurando sustento na apanha da azeitona e na tiragem da cortiça. Muitos viram-se obrigados a radicar- se em Lisboa e arredores ou a demandar terras de França, porque os agrários pouco cultivavam, limitando-se a dar trabalho regular a escassas dezenas de trabalhadores.
O povo de Aguiar saudou calorosamente o 25 de Abril. Experimentados pelas lutas travadas durante o fascismo, como a das 8 horas em 1961, os trabalhadores foram dos primeiros a lançar-se na ocupação das terras abandonadas pelos agrários, formando uma cooperativa que chegou a atingir 14.000 hectares e que passou a dar trabalho a toda a população da aldeia. Obrigados, pelas tropas da GNR, a desocupar as terras em 1979, várias vezes as reocuparam, no meio de confrontos violentos.
Hoje o desemprego em Aguiar é maior do que no tempo do fascismo, em virtude da crise que também fechou a porta da emigração. Saídas para a situação não se vêem.
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A princípio só pedem trabalho
“A luta é de vida ou de morte: os lobos dos grandes agrários temem um levantamento geral camponês. Por isso andam a manobrar com a ALA, seu quartel-general, disfarçando-se de cordeiros. Cordeiros, não! Canalha fascista que, apregoando democracia, colocou o distrito nesta miserável situação. É verdade que os trabalhadores e os pequenos agricultores são capazes de explorar as herdades e até fazê-las produzir mais, sem precisão dos agrários”.
(Comité Alentejo Vermelho, 1/2/75)
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A primeira batalha, logo após o 25 de Abril, é pelo aumento dos salários e por trabalho. Os trabalhadores começam a reunir-se para formarem uma Comissão Pró- Sindicato, que viesse depois a dar lugar a um Sindicato dos Trabalhadores Rurais. As assembleias depressa alastram às terras vizinhas. Entretanto, muitos dos emigrados em Lisboa voltam para o campo, fortalecendo o movimento e engrossando as fileiras dos que querem trabalhar a terra, pretensão que é contrariada pelos agrários.
“Vivemos longos anos a querer cultivar. Nunca o podíamos exigir pois éramos presos. A azeitona estragava-se nos campos mas se aparecia um trabalhador a apanhar meia dúzia de azeitonas, era preso. Aqueles que a deixavam estragar, esses, não eram presos. Hoje que Portugal é um país em que há liberdade, o povo vê e exige que se cultive a fim de se aumentar a produção, pois o país bem precisa” — dizia-se no nº 1 do jornal A Foice, editado pela Comissão Pró-Sindicato, constituída em unidade com os trabalhadores de Viana do Alentejo, sede do concelho, e de que saem dois números, em Junho e Agosto de 74 . O jornal é feito a partir de depoimentos orais, registados em gravador na sede da Comissão, uma vez que quase ninguém sabe escrever. É entusiasticamente recebido pelos trabalhadores das outras terras. Para obrigar os patrões a dar trabalho, a Comissão elabora uma estratégia que consiste em distribuir as propriedades abandonadas pelos agrários: “dezenas e dezenas de hectares com azinheiras e sobreiros, no meio de matagais até à copa das árvores”. Sem autorização dos patrões, os trabalhadores começam a tratar as terras, arrancando matos e estevas, limpando os sobreiros. Mas a grande maioria dos agrários recusa-se a pagar as jornas, que se acumulam assim durante semanas e semanas.
Os conflitos sucedem-se, com concentrações nos montes para exigir os salários e alguns patrões a terem de pedir o auxílio do exército para se porem a salvo. Os agrários despedem, mas no outro dia os despedidos retomam o trabalho. É uma luta renhida, que se desenvolve dia após dia.
Nas assembleias e reuniões logo após o 25 de Abril, os trabalhadores diziam que a terra era dos agrários e que não a queriam para si: só reivindicavam trabalho, melhores salários e certas regalias, como o pagamento dos feriados. Pouco a pouco, vão verificando que os agrários não estão dispostos a aceitar quatquer mudança, nem alteram o comportamento, porque o ódio é muito forte. “Os trabalhadores têm sofrido muito debaixo dos pés de quem tem mandado. E agora ainda não estamos certos. Ainda continuam a acalcar” (A Foice, n° 2). Alguns começam a antever uma radicalização da luta: “Os fascistas grandes capitalistas estão a organizar-se no escuro e a querer desorientar o povo. Despedem pessoal, não querem cultivar as terras. Nós não temos medo deles. Nós, os produtores, sabemos fazer tudo. Somos nós que tiramos da terra o seu valor. Os capitalistas não podem viver sem a gente, mas nós podemos viver sem eles. Eles que tomem tento com as suas sabotagens porque o povo está atento.” A Foice, n° 1).
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As ocupações
“Se essas terras não dão produção, por que é que não as entregam aos camponeses que as sabem trabalhar? Que fará o sindicato? Manda-os gritar o povo unido e viva o PCP? Quem é que lhes dá de comer? É esperar que os grandes latifundiários, essa cambada fascista, digam: venham cá agora, que me fazem falta? Porquê?”
(Carta de um trabalhador do Alentejo, Janeiro de 1975)
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É assim que começam as ocupações, em Maio de 75, depois de um ano de luta diária contra os patrões. Ao contrário do que o PCP gosta de dar a entender nas alturas em que lhe convém fazer-se de esquerda, as primeiras ocupações no Alentejo foram feitas à sua revelia. No tempo do fascismo, o PC fizera propaganda pela reforma agrária mas agora receava que o momento fosse “pouco oportuno” e criasse clivagens dentro do MFA, pelo que ia ganhando tempo. A prova foi que as ocupações começaram nas zonas do Alto Alentejo que ainda estavam fora do seu controlo. Só depois o movimento alastrou a toda a região.
Na primeira herdade a ser ocupada, a da Casqueira, os trabalhadores apoderam-se da cortiça, que vendem para pagar os salários que lhes são devidos e ocupam a propriedade. Esta primeira acção aumenta a determinação de todos, agora dispostos a pôr em prática a palavra de ordem “a terra a quem a trabalha”. Como os trabalhadores que foram distribuídos pelos vários patrões têm todos salários por liquidar, as ocupações sucedem-se em grande ritmo: quando se dá o 25 de Novembro, todas as terras dos agrários em redor de Aguiar estão ocupadas. Se uma propriedade pertence a mais de uma povoação, como é o caso dos Ruivos, situada entre Aguiar e Viana, a ocupação é feita em conjunto. Desorientados, sem o apoio da fiel GNR, temporariamente desactivada, com o país em reboliço a gritar pelo MFA, os agrários, mesmo os mais arrogantes, pouca resistência oferecem no momento da ocupação.
Por vezes, quando o patrão se resigna e entra em diálogo, os trabalhadores permitem-lhe que fique com alguma máquina e mesmo gado, como aconteceu na Freira. Os pequenos agricultores não são tocados.”Nós distinguimos o latifundiário do pequeno agricultor”, dizia-se em A Foice. “Nós, trabalhadores rurais, sabemos diferenciar o pequeno agricultor que trabalha a terra como nós do grande proprietário que vive dos rendimentos. Nós sabemos que o pequeno agricultor pode não ter posses para pagar jornas mais altas. Mas sabemos também que 70$00 por dia a uma mulher não é de mais, com a vida como ela está. Perguntamos: porque é que os pequenos agricultores nunca tiveram crédito dos bancos como os grandes? Porque é que têm de comprar as sementes, os adubos, o trigo, a pronto? Porque o grande capitalista o quer afogar a ele também”.
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A organização
“Os patrões despediram o pessoal da ceifa e da monda do cártamo por estes terem pedido aumento das jornas. Para os patrões era muito fácil manter os tractoristas e despedir o resto do pessoal. Desde que as ceifeiras-debulhadoras colhessem a seara, eles não se importavam de aumentar a jorna dos tractoristas. Mas os patrões enganam-se quando pensam que enganam o povo. Perante estas manobras sujas, os trabalhadores todos uniram-se e decidiram entregar aos patrões um caderno de reivindicações. Em cada aldeia vamos formar comités de trabalhadores”.
(Comunicado distribuído no Baixo Alentejo em Junho de 1974)
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À medida que vão ocupando as terras, os trabalhadores vêem-se na necessidade de montar uma organição para as gerir. Nunca nenhum tinha tido uma responsabilidade desse tipo, porque nunca tinham possuído nada que não fosse a própria força de trabalho. Encontrar uma forma de organização que não lhes fuja do controlo não é tarefa fácil. Por exemplo, sendo a imensa maioria analfabeta, é grande a desconfiança em admitir uma pessoa para a escrita, porque os pode vir a enganar, a exemplo dos patrões. Depois de muito debate, decide-se pela criação de uma Comissão de 18 elementos, eleitos pelos membros da cooperativa, segundo as competências de serviço de cada um: fiscalização geral, nomeadamente da escrita, da cooperativa; vendas e compras; organização da agricultura; organização da pecuária; organização da floresta; gestão das máquinas. Este tipo de organização só se encontra em Aguiar. Nas outras cooperativas alentejanas, mesmo naquelas em que a intervenção directa do PCP se faz menos sentir, a gestão é muito mais centralizada. Em Aguiar, esta forma de gestão participada foi sendo destruída à medida que a democracia popular dos primeiros tempos de Abril foi perecendo, primeiro, às mãos dos caciques do PCP, e depois, às mãos da democracia burguesa parlamentar.
Esta comissão orientava a Cooperativa mas os seus elementos não podiam desleixar o trabalho do campo. Em determinada altura, apareceu um cartaz com um dos dirigentes que reparava pela floresta a passear-se de machado às costas. Era uma crítica: o trabalho era para todos e os dirigentes não eram diferentes dos demais. Este aspecto era muito importante para os membros da cooperativa que queriam evitar o regresso a novos patrões, pois havia sempre o risco de os dirigentes virem a tomar os vícios do agrário, único exemplo que conheciam (como veio de facto a acontecer).
Com o produto da venda da produção, os trabalhadores foram ficando com os salários em dia e a Cooperativa comecou a ter dinheiro. As jornas aumentaram e foram conquistadas regalias até então desconhecidas, como o pagamento de feriados, férias com subsídio, 13° mês. Criou-se também uma cooperativa de consumo com preços mais acessíveis, que vendia os produtos da cooperativa e mercearias. Quando se deu o 25 de Novembro, havia em Aguiar uma estabilidade económica e social como nunca se conhecera até então.
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A Alentejana
Dizem p'rá’i que chegou
a liberdade apressada
e eu qu ’inda não dei por nada
continuo sendo o que sou.
Olho aberto e mão na foice
tenho a mesma dor nas costas
mas eles já dão respostas
se lhes pomos a questão:
tanta seara, tanto pão
e um só dono a mandar
e lá por melhor pagar
continua sem razão
continua sem razão
Se foi aqui que eu nasci
se foi aqui que eu aprendi
a cansar-me e a suar
se esta terra já conhece
as minhas mãos e os meus passos
que lhe dou alegre ou triste
e o cabrão não desiste
de dizer que é tudo dele
de dizer que é tudo dele.
Agora fia mais fino
já não há tanto assassino
à solta por esses campos
juntamos os nossos ódios
as nossas foices e braços
nossos destinos e vamos
a gritar a essa canalha:
A terra a quem trabalha!
A terra a quem trabalha!
Inclusão | 23/11/2018 |