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Nessa manhã fui com as minhas irmãs para o liceu, que era o Maria Amália. Quando lá chegámos as ruas estavam todas ocupadas com carros militares, as pessoas conversavam com os tropas e umas com as outras. A primeira sensação de que algo estava a mudar foi o desaparecimento das professoras e do corpo directivo.
Com as minhas irmãs, andei o dia todo a percorrer as ruas de Lisboa. Tínhamos 15/16 anos e aquilo era uma grande festa para nós. Pela primeira vez vínhamos para a rua falar com pessoas completamente desconhecidas. Estivemos no Carmo. Toda a gente discutia o que era e o que não era, ninguém percebia nada do que estava a acontecer.
Passados dias, desabou uma avalanche de manifestações, reivindicações e ocupações. Na zona baixa de Campolide, profundamente degradada, começaram a surgir comissões de moradores. Estive ligada a uma delas, a do Tarujo, onde se fizeram algumas ocupações de casas. As pessoas queriam participar nas coisas e mudá-las, falava-se de tudo, a todo o momento. Nunca havia horas para deitar nem para coisa nenhuma. Até ao princípio de 75 foi tudo uma festa, um tempo intenso. Os dias passavam depressa e faziam-se coisas muito bonitas, de carácter social: as creches, as ocupações de casas, as regalias para os trabalhadores. Em tudo isto, as mulheres tiveram um grande papel.
Eu praticamente não parava em casa. Andava de manifestação em reunião, de reunião em ocupação... Através de ligações com o liceu Pedro Nunes, tive os primeiros contactos com a contestação política, com os livros que circulavam vertiginosamente naquela altura e também com as assembleias de estudantes. As primeiras a que fui foram no D. Pedro V, o primeiro liceu misto de Lisboa. Era onde nós, as miúdas, íamos procurar as grandes novidades. É surpreendente, nos tempos de agora, o que desencadeou as primeiras contestações — o uso obrigatório da bata, as escolas separadas por sexos, a autoridade das professoras... Uma das primeiras coisas que fizemos foi destruir o sistema de escutas que permitia à reitora não só ouvir o que se passava nas salas de aula como falar para todas elas. Entrámos pela reitoria dentro e estoirámos com aquilo.
No Maria Amália não chegou a haver saneamentos de alunos nem de professores. Houve foi o desaparecimento da reitora e um vazio completo. Foi um grupo de professoras novas, geralmente “sem voto na matéria”, que tomaram conta da situação. Participei na primeira tentativa de formação de uma associação de estudantes no meu liceu. Reivindicava-se a gestão conjunta das escolas pelos alunos e professores. Fizemos uma primeira lista de gestão conjunta com um grupo de professoras novas e gerimos o liceu até à minha saída, a meio do 6º ano.
Nunca mais voltei a estudar. Isto hoje pode parecer disparatado, mas na altura andávamos a correr, a fazer muitas coisas e estar no liceu era perder tempo. Fiz o 5º ano graças às passagens administrativas, que em 74 passaram toda a gente. Depois, praticamente deixei de ir às aulas. O meu 6º ano é feito nos intervalos das assembleias de estudantes, a maior parte delas no D. Pedro V, nas reuniões da Comissão de Gestão e da Associação de Estudantes.
O meu primeiro contacto com grupos políticos organizados foi com os maoístas, que na altura tiveram algum peso. No liceu havia também um grupo relativamente bem estruturado do MES, que influenciava a maioria da Comissão de Gestão. Dela faziam parte também duas ou três raparigas do MRPP. Contestávamos aquilo que os do ensino superior já há muito contestavam: andarmos a estudar coisas que não serviam para nada, não sermos tidos nem achados relativamente aos programas de ensino, as regras disparatadas do funcionamento das escolas.
O liceu acolhia principalmente alunas da zona de Campolide, na altura caracterizada por uma forte fractura social. A zona de cima era habitada pela média burguesia, o resto por camadas mais pobres. Esta situação social reflectiu-se na Associação de Estudantes. A partir de 75 passou a haver um “taco-a-taco” com as “meninas bem”, politicamente de direita, que acabaram por tomar a associação. Isto convenceu-me que já não andava ali a fazer nada.
Saí da escola e fui trabalhar para uma fábrica de produtos químicos nos arredores de Lisboa. Como muitas outras, aquela fábrica tinha sido abandonada pelos patrões e teve de ser gerida pelos trabalhadores durante algum tempo. Hoje a direita esquece-se de falar na fuga e sabotagem económica dos patrões acagaçados, que foi a verdadeira origem do caos económico que eles atribuem à esquerda.
Era uma fábrica fundamentalmente constituída por mulheres, a maioria mais velhas que eu. Não eram elas que tinham corrido com os patrões mas encontraram-se de repente com uma fábrica nas mãos, sem saberem o que lhe fazer. Interessavam-se pelos problemas mas acabavam bloqueadas porque tinham de ir cuidar da casa, dos filhos, etc. Os lugares-chave eram detidos por três homens. O tipo que se encarregava da gestão e se dizia de esquerda tinha um papel de substituto do patrão. Ele era o contrário do que eu tinha aprendido nos livros e nas reuniões, relativamente à actuação dos revolucionários e dos militantes de esquerda. As condições de trabalho eram péssimas. Trabalhávamos oito horas em pé, com todo o tipo de produtos químicos. Mas tudo suportávamos porque havia a ideia de que era preciso rentabilizar a fábrica, que era para nós que estávamos a trabalhar, etc.
Ali era tudo ao contrário do que eu imaginara. Foi a minha primeira grande derrota, embora na altura não tivesse consciência disso. Ali vivi por antecipação a derrocada do 25 de Abril.
O 25 de Novembro passei-o na rua, a correr de um lado para o outro, impotente. Estive no RALIS, na PM. Queria fazer algo e isso não acontecia só comigo. Havia mais gente que andava à procura de um sítio onde se resistisse. Pela primeira vez, tive a noção de que era necessário organizar-me politicamente para resistir. Foi então que estabeleci contacto com o PRP.
★★★
“Oxalá que não aconteça outra greve porca como esta, e se acontecer, uma das coisas que eu vou fazer logo: é conveniente que haja sempre um que fale por todos. Portanto, esse um que fala por todos tem de ser sempre vigiado. E para qualquer lado que vá tratar deste assunto ou daquele, ir acompanhado por dois, três ou quatro trabalhadores. E se a gente notar nele qualquer... vá lá... segredo, imediatamente tem de o pôr fora do poleiro. Aqui não se quer segredos. Na classe operária não se quer segredos. Porque se começa a haver segredos, está tudo descontrolado outra vez. Portanto, nós o que é que temos de fazer? Aquele indivíduo que é o nosso mediador andar sempre controlado e sermos vigilantes uns dos outros”.
(Da entrevista com um operário da Soares da Costa, do Porto, no semanário Combate, 25/ 10/74).
Inclusão | 23/11/2018 |