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No 25 de Abril eu estava no estrangeiro. A Catarina já estava em coma e eu passava o tempo no hospital. Nesse dia, apareceu uma enfermeira a dizer: “Parece que aconteceu qualquer coisa em Portugal... Um golpe de Estado ou coisa assim.” Perguntei-lhe logo se tinha ouvido alguma coisa sobre os presos políticos: se saíssem, é porque era coisa importante. Tinha sabido pelo noticiário, mas não conseguia precisar mais nada. Quando liguei a televisão, a BBC anunciou um golpe de Estado em Portugal; que as comunicações estavam cortadas, que estavam à espera de imagens...
No dia seguinte, a televisão mostrava as ruas cheias de gente. A imagem que conservo é a da população sorridente, mas com o ar de ver para crer, ainda muito na expectativa. Depois, aquelas coisas extraordinárias: os soldados com um ar todo animado, a confraternizarem com as pessoas! No dia 27, quando telefonei para comunicar que a Catarina tinha morrido, o meu pai disse-me que as coisas avançavam e que a pressão da população estava a conseguir mais do que lhe queriam dar.
Quando chegámos a Lisboa, no dia 30, o aeroporto estava cheio de soldados e cá fora preparava-se uma manifestação de boas-vindas ao Cunhal, que vinha de Paris.
Mas durante meses andei sobressaltada: desconfiava da possibilidade de as coisas mudarem daquela maneira e que as chefias pensassem: “Estes tipos enlouqueceram, vamos mas é cortar-lhes as pernas antes que se lancem por aqui fora”. Achava uma ingenuidade as pessoas confiarem ao ponto de se permitirem abrir o Avante! em público, por exemplo. E sentia-me bastante só nessa estranheza instintiva, porque a maioria das pessoas não tinha essa ideia; primeiro porque eram mais novos e tinham conhecido Portugal numa fase pós-Maio de 68. Naquele ano, quando saí da cadeia, tinha ficado esgaseada: os estudantes a cantarem “A Internacional” em assembleias estudantis, quando nós, a minha geração, nem em casa a cantávamos.
Claro que estive no 1º de Maio. Por um lado, perguntava-me: ‘Afinal, onde é que estavam estes antifascistas todos?’ Por outro, percebia-se que aquela gente estava felicíssima da vida, que a alegria era genuína.
Outra das minhas recordações é de ter ido a falar em nome da AEPPA [Associação dos Ex-Presos Políticos Antifascistas] com o Rosa Coutinho.
Queríamos garantir que, havendo o perigo de tudo vir a dar a volta, não se corresse o risco de que nos fossem de novo buscar. Que fechassem, destruíssem, queimassem os ficheiros da Pide! E, obviamente, na nossa presença. Resposta de Rosa Coutinho: que não, que aquilo era uma das questões quentes; que o equilíbrio internacional estava tão difícil de manter que nem se podiam mexer para negociar o que consideravam mais importante...
Todos os dias apareciam coisas da AEPPA nos jornais, fizemos publicações, a campanha pelo Alípio de Freitas e por dois ex-padres que estavam presos no Brasil, condenados com penas longuíssimas. Como tinham tido a nacionalidade portuguesa, utilizámos esse argumento junto das autoridades portuguesas para serem extraditados ou libertados. O Zeca Afonso fez mesmo uma canção. Recebemos o padre Cardonel quando ele veio a Portugal. Fizemos comícios... No CACO, um comício muito politizado, contra a ida dos soldados para as colónias, onde me lembro de ter estado o então jovem timorense Abílio Araújo, embora não tenha falado; outro comício no Coliseu, já mais frentista, pela libertação de presos políticos.
No 11 de Março, tínhamos ido para Castro Verde (onde ia decorrer o julgamento do Zé Diogo) para organizar uma manifestação, que foi muito participada. Vínhamos a chegar quando soubemos que se passava qualquer coisa. E fomos logo para a sede da UDP, saber se havia alguma orientação.
Mas, como nas restantes organizações de frente, havia total incapacidade para organizar as massas.
Entretanto abandonei a direcção da AEPPA. Considerava que já entráramos na fase de estar conscientemente a enganar pessoas. Porque era muito pior estarmos a alertá-las para determinados problemas e largarmo-las depois da mão: o efeito negativo acabava por ser pior.
Na altura procurávamos constituir comités de bairro, de vigilância, para que os moradores, através de amigos e conhecidos, se informassem da eventual existência de pides na zona e, se os houvesse, investigassem onde moravam e os vigiassem, com o objectivo de fazermos a vida negra aos tipos.
Envolvida como estive no trabalho da AEPPA, falhei quase sempre as grandes manifestações de massas, aquelas que gostaria que hoje fizessem parte da minha memória. Quando daquela, lindíssima, dos operários da Lisnave (7 de Fevereiro), ia na rua ao lado! É que, uma vez que se tinha uma actividade, todo o tempo disponível fora do emprego era ocupado nela.
Lembro-me dos pides que vinham de Moçambique e que foram alojados na Cruz Vermelha. Soubemos que tinham sido todos recolhidos e que iam ser mandados para casa, contentes e felizes, depois de anos a fio a torturar e a matar pessoas. Junto à Penitenciária, exigimos que os prendessem. Primeiro, éramos poucos, mas depois começou a aparecer muita gente. Havia carrinhas de polícias cheias e lembro-me de um deles nos fazer um sinal com a mão, como quem diz “esperem, esperem que já vos digo”...
Quando saí da AEPPA, fui para a Comissão de Porte do PC(R), que eu considero de triste memória. Tínhamos por tarefa passar em revista o comportamento na polícia de todos os militantes que tinham sido presos, fazer um levantamento de todas as situações caso a caso e tomar decisões políticas: se continuavam militantes, se eram expulsos, afastados, se podiam ter actividade e de que tipo. A certa altura, tivemos a visita do Diógenes Arruda, que, em vez de nos ajudar na discussão aprofundada dos critérios que iam ser adoptados, acabou por os ditar.
Não que eu discordasse desses critérios, mas foram adoptados antidemocraticamente e a maioria das pessoas que ali estavam não tiveram nunca a noção do que estavam a fazer. Na prática, a comissão não cometeu grandes erros; na questão formal, cometeu erros fundamentais.
★★★
DE MINEIRO A MORADOR (“A Feira")
Vou agora aqui contar
A história da nossa vida
Cá em S. Pedro da Cova
Vou agora aqui contar
A história da nossa vida
Cá em S. Pedro da Cova
Sobre montes construída.
Sobre montes construída
Debaixo o carvão molhado
Sou toupeira de olhos vivos
Levo vida de mineiro
De pá na mão e despido
A trabalhar o dia inteiro.
Refrão:
Era a mina era a mina
Mas agora é cá fora
De mineiro a morador
Continua a nossa luta
Por uma vida melhor
Que o pó é morte escondida
Vai roendo o peito à gente
Como quem rói as entranhas
Devagar que nem se sente.
Vida dura a do mineiro
Descemos lá p’rós infernos
O capataz a pisar-nos
E tinha sempre razão
Se não enchermos os carros
Não nos pagam um tostão.
Refrão
Punham o pé no cachaço
Os capatazes da mim
No Canaverde e no Sarafo
Tinham o ódio na sina
O escritório era o covil
Que nos sugava o dinheiro
P’ró Porfírio e p’ró Monteiro
Que calcavam nossa sorte
Ai se a mina ainda rolasse
Havia aqui muita morte.
Refrão
E em Março de setenta
O patrão faz o que quer
Fecha a mina e não contente
Ainda exige o aluguer.
Em Maio de setenta e cinco
Foi a vingança da gente
Ocupou-se o escritório
Corremos essa ralé
Porque em S. Pedro da Cova
Nunca mais cá põem o pé.
Refrão
Inclusão | 23/11/2018 |