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Eu acabava de fazer 16 anos, terminara o curso comercial e começara a trabalhar. Pertencia a uma juventude que já tinha certa consciência dos problemas que afligiam a sociedade de então: a guerra colonial, a dificuldade com que a esmagadora maioria das famílias vivia, a luta desenvolvida pelos pais para poderem dar estudos aos filhos...
Esse início de actividade permitiu-me amadurecer e conhecer pessoas que já lutavam contra o regime. Editavam o jornal clandestino Ribatejo na Luta.
O 25 de Abril proporcionou às pessoas tomarem consciência de que a sua opinião tinha importância, poderem decidir acerca do seu futuro, fazer vingar as suas opiniões, se bem que a par com alguns oportunismos individuais.
Evoco aqui um acontecimento simples, que mostra como era diferente a solidariedade e a vontade colectiva. Foi na greve de Outubro de 1975, de recusa ao pagamento de bilhetes na CP. Nesses dias, durante as viagens, o revisor quase nunca aparecia. No entanto, num dos comboios, à hora do regresso a casa, numa carruagem quase repleta, apareceu o revisor. Paulatinamente, como se de nada soubesse, o homem foi de passageiro em passageiro, saber do título de transporte. E de cada vez, cada um respondia: “não pago bilhete”. Não exigiu. Não penalizou. Não soltou qualquer palavra de desagrado ou incompreensão. Tinha cumprido a sua missão.
★★★
AOS SOLDADOS E MARINHEIROS
Meu camarada soldado
Camarada marinheiro
Nem que me dêem mil anos
de penas e cativeiro
quero falar-te sem medo
falar-te do coração
quero falar-te de frente
e dar-te a minha opinião
Não há gente neste mundo
que não lute pela vida
por mais que seja roubada
por mais que seja oprimida
Tu que ajudas a acabar
c’o fascismo em Portugal
pensa nos quinhentos anos
de opressão colonial
Colonialismo e fascismo
são como a cara e a c’roa
da mesma moeda de ouro
que enche os bancos em Lisboa
Esse ouro é suor roubado
aos teus pais, filhos e manos
mas é também o suor
dos teus irmãos africanos
Meu camarada soldado
camarada marinheiro
nem que me dêem mil anos
de penas e cativeiro
quero dizer-te o que penso
dar-te a minha opinião
falar-te do pensamento
e também do coração
Tenta agora imaginar
que em tempos que já lá vão
chegavam uns estrangeiros
à tua povoação
Os teus avós recuados
sem ódio no pensamento
eram logo escravizados
com todo aquele armamento
Invadiam tua casa
sentavam-se na cozinha
e olhavam-se dizendo
“Esta casa agora é minha”
E não contentes com isso
punham-te ferros nos pés
obrigando-te ao trabalho
contra ventos e marés
No campo que dava pão
obrigavam-te a cavar
cinco colheitas por ano
p ’ra cinco vezes te roubar.
Na horta do teu vizinho
abriam minas no chão.
No ramo em que vais aos ninhos
enforcavam teu irmão
Meninos na tua terra
na rua a pedir esmola
e o menino do estrangeiro
vai de carro para a escola.
Não te deixassem folgar
nem cantar na tua língua
Sempre, sempre a trabalhar
para viveres sempre à mingua
Tentando erguer a cabeça
da opressão e da má sorte
quinhentos anos de luta
quinhentos anos de morte
Imagina, meu amigo,
que era assim na tua aldeia:
quinhentos anos a fio,
mete-os bem na tua ideia
Meu camarada soldado
camarada marinheiro
Nem que me dêem mil anos
de penas e cativeiro
Hei-de dizer-te a verdade
que trago no coração:
não devemos esconder
os crimes da opressão.
A opressão de que eu falo
chama-se colonial
É a mesma, mas mais forte
que a que existe em Portugal
Os livros da nossa escola
sempre esconderam a cara,
Só nos mostraram a c’roa
dessa moeda roubada.
Monopólios e banqueiros
em África como aqui
quanto mais exploram lá
mais força têm contra ti.
Se o fascismo foi abaixo
esses ladrões ‘inda não
Nossos irmãos africanos
estão a dar essa lição.
Meu camarada soldado
camarada marinheiro
nem que me dêem mil anos
de penas e cativeiro
Estou a dizer a verdade
que está no peito a estalar!
Não devemos ir à guerra!
Não devemos embarcar!
E os milhares de desertores
que abandonaram a terra
não são medrosos nem traidores
por recusarem a guerra
Porque a nossa guerra é outra,
é a guerra contra o fascismo
guerra contra a exploração
e contra o capitalismo
Seja qual for sua cor
seja qual for a nação
em cada trabalhador
devemos ver um irmão
E se formos para a frente
todos juntos, de mãos dadas
já seremos cara e c’roa
com a vitória apostada
Meu camarada soldado
camarada marinheiro
Nem que me dêem mil anos
de penas e cativeiro
falei-te com sentimento
mas também com a razão
e não há força no mundo
que quebre a nossa união!
Inclusão | 23/11/2018 |