A Comuna de Paris
(re ordando)

Germinal - Mensário dedicado aos trabalhadores

1916


Primeira Edição: Germinal - Mensário dedicado aos trabalhadores, nº 2, março de 1916

Fonte: http://ric.slhi.pt/Germinal/visualizador?id=10070.002.001&pag=22

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


A palavra comuna é habitualmente tomada como sinonimo de município ou concelho, instituição de origem puramente romana, segundo muitos pretendem. Designa a reunião de indivíduos e de famílias que habitam determinada circunscrição territorial, sob uma administração comum.

Para Kropotkine, porém, comuna não é uma aglomeração territorial; é antes um nome genérico, um sinonimo de agrupação de iguais, não conhecendo fronteiras, nem muros.

A expressão Comuna de Paris emprega-se para designar a insurreição da capital da França em Março de 1871 e a acção do governo dela advindo.

Há quem negue a essa insurreição o carácter de guerra social e se esforce em reduzi-la a uma simples afirmação republicana, a uma revindicação inofensiva da autonomia municipal.

Deve ela considerar-se assim?

Os trabalhadores de Paris — escreveu o Conselho Geral da Internacional — com a sua Comuna, serão sempre considerados como os gloriosos precursores de uma nova sociedade: a memória dos seus mártires será cuidadosamente conservada no grande coração da classe trabalhadora.

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Mas no manifesto que a Comuna publicou a 19 de abril de 1871 — uma semana depois de decretar a demolição da coluna Vendôme — é que se pode ver qual era a bandeira erguida pelos seus homens contra as ideias, as instituições e os generais do império. Lê-se aí:

«Mercê da sua autonomia, e aproveitando-se da sua liberdade de acção, Paris reserva-se o direito de operar, como entender, as reformas administrativas e económicas que reclama a população, de criar as instituições próprias para desenvolver e propagar a instrução, a produção, a troca e o crédito, e de universalizar o poder e a propriedade segundo as necessidades do momento, o voto dos interessados e os dados fornecidos pela experiência.

«Os nossos inimigos enganam se ou enganam o país, quando acusam Paris de querer impor a sua vontade ou a sua supremacia ao resto da nação e de pretender uma ditadura que seria um atentado contra a independência e a soberania das outras comunas.

«Os nossos inimigos enganam-se quando acusam Paris, de visar à destruição da unidade francesa, constituída pela Revolução. A unidade tal como até hoje tem sido imposta pelo império, pela monarquia e pelo parlamentarismo, não é mais que centralização despótica, arbitraria ou onerosa. A unidade política, tal como a quer Paris, é a associação voluntaria de todas as iniciativas locais, o concurso espontâneo, livre, de todas as energias individuais, para o bem comum, que é o bem-estar, a liberdade e a segurança de todos.

«A revolução comunal, começada pela iniciativa popular a 17 de Março, inaugurou uma era nova de política experimental, positiva, cientifica. É o fim do velho mundo governamental, clerical, militarista, funcionalista, o fim da exploração, da agiotagem, dos monopólios, dos privilégios, aos quais o proletariado deve a sua servidão e a pátria as suas desgraças e os seus desastres».

De resto, como observou Bruno, justamente a propósito da insurreição de 1871, não há revoluções políticas, religiosas ou sociais exclusivamente; todas participam, de tudo.

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Entre os defensores da Comuna, entre os comuneiros (communards é o seu título histórico, dado pela burguesia enfurecida), têm lugar de destaque Louise Michel, condenada a deportação, e Eugène Varlin, denunciado por um padre e sumariamente executado em Montmartre.

Deste, La Liberté, de Bruxelas, deixou-nos o seguinte retrato, a que Lissagaray reconheceu a perfeita exactidão:

«Varlin foi a personalidade mais notável da Comuna. Isto parecerá espantoso a muitos que nem sequer dele têm ouvido falar. É que os jornalistas que informam o público só olham as aparências e as mais das vezes não conhecem senão os que se manifestam à sua atenção por forma ruidosa. Varlin não era orador e só podia ser apreciado por aqueles que o viam continuamente a trabalhar; mas explicava-se com bastante concisão e, ao mesmo tempo com clareza, e numa longa discussão bastava às vezes uma palavra sua para decidir a contenda.

«A sua actividade era prodigiosa. Durante anos, multiplicou-se nas assembleias operárias; foi a alma de todas as greves, de todas as manifestações. O seu talento de organização revelou-se em todas as criações em que tomou parte. Costumava dizer que se tivesse de escolher uma ocupação, quereria estar à testa de uma grande administração, porque se sentia com aptidões para ser útil em semelhante posto; e não se enganava.

«Era, aliás, de uma grande modéstia: não avançava senão quando isso era indispensável. É o que explica - como, tendo feito tanto, fez falar de si tão pouco».

Da boa Luísa escrevia, ainda há poucos dias, Paul Brulat:

«Adivinhava-se nela uma destas almas íntegras, que põem na acção uma energia inesgotável. Contudo, a sua voz era suave, fraca, e, por momentos, indistinta e vaga, como um eco longínquo do sofrimento humano, de todas as angústias invisíveis e ignotas.

«Na sua vida há a citar cem rasgos magníficos de bondade, de abnegação intrépida. Sabe-se como ela se defrontou com o conselho de guerra de Versalhes, chamado a julgar em 1871, após a derrota da Comuna. Luísa Michel foi simplesmente sublime de coragem e de eloquência. Tenho à vista um livro de Ernesto Girault, que reproduz textualmente, da Gazeta dos Tribunais, o seu interrogatório. Foi uma sessão trágica. Na verdade, nenhum ser humano mostrou ainda semelhante desprezo da morte.

«Sucedeu que esta atitude lhe salvou a vida. Luísa Michel foi condenada à deportação num recinto fortificado.

«Se uma pequena desgraça torna a gente acerba ou azeda, uma grande desgraça, pelo contrário, eleva até à bondade, à indulgência, ao perdão. Na Nova Caledonia, Luísa foi um exemplo digno de eterna admiração. Os testemunhos são unânimes. Durante a longa e dolorosa travessia, despojava-se dos seus vestidos para agasalhar os seus companheiros de miséria. No degredo, esquecendo-se de si mesma ou achando talvez lenitivo no próprio excesso da sua dedicação, dividia com outros a sua ração, sofria sem um queixume os tormentos da fome, instruía os ignorantes, não se cansava de reclamar em favor dos mais desgraçados, dos mais fracos, dos mais oprimidos, inspirava a todos coragem e esperança. Tamanha grandeza moral fez que, para os seus próprios guardas, ela se tornasse objecto de veneração».

«A Comuna caiu vítima não da burguesia capitalista, mas do cesarismo administrativo; foi reprimida com tanta crueldade, não por ter querido abolir a propriedade individual, mas porque tentou suscitar um movimento federalista, que destruiria a administração central e ao mesmo tempo esse núcleo tão vivaz, em roda do qual se reforma sempre o Estado jacobino». Assim se exprime G. Ferrero.

A repressão foi, na verdade, cruel, terrível, principalmente nos oito dias de maio que receberam o nome de Semana Sangrenta. Dela se pode fazer ideia pelo quadro que em seguida reproduzimos:

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Fuzilados em 22 de maio de 1871 no quartel de la Pepinière 1.800
na Escola Militar 1.800
no quartel Dupleix 809
Fuzilados em 23 de maio de 1871 emm Jeune-France 1.000
em Jeune-France 600
Fuzilados em 27 de maio de 1871 no quartel de Loban 1.500
na torre Saint-Jacques 1.200
no Luxemburgo 3.000
no quartel do Príncipe Eugênio 900
Depois do 27 de maio de 1871 no cemitério do Père-Lachaise 2.200
em Mazas 600
nas Roquettes 1.852
em Lauté 652
em Butte Chaumont 1.000
em diversos sítios 3.000
em vários destacamentos debaixo das ordens de Gallifet 2.700
nos fortes, comboios e destacamentos de Satory e Versalhes 4.700
por conselho de guerra 26
Total de fuzilados 29.830

Junte-se a isto o número de mortos durante a luta, com as armas na mão, 7.294, e o número de detidos preventivamente, 60.917, e ter-se-ão 98.041 baixas na classe trabalhadora de Paris!

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«Após o esmagamento dos operários — escreve Lissagaray — o sr. Thiers proclamou o fim da guerra civil. Também Napoleão III, respondendo pela ordem, cada ano encerrava a era das revoluções. Todos os governos têm pronunciado essas palavras em França e sempre o facto tem destruído a predição. É que a guerra civil não é uma questão de força e de poder, depende da diferença e do antagonismo dos interesses.

«A Revolução de 18 de março pôs em foco três factos contestados ou apenas entrevistos até então. Um desses factos é o advento de um direito novo, o direito económico, tendo por bandeira a República federativa, por soldado a classe laboriosa, não já instintiva ou crédula como em 1830 e em 1848, mas sabendo o que quer e qual é o problema, desconfiando por igual de todos os partidos e de todos os homens, contando só consigo, pertinaz no trabalho, no estudo, no combate.

«Assim, ante a burguesia decrepita, debatendo-se cada vez mais na sua podridão, o Quarto Estado jovem, são, inteligente, ergue-se como outrora o Terceiro ante as ordens privilegiadas.

Nunca o socialismo operário foi tão vivaz como após a queda da Comuna.

De que serviram então todos esses masacres, senão para provar que o velho mundo acabou de vez, que todo o regresso ao passado é impossível?»


Inclusão: 18/03/2020