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Porquê as classes dirigentes, procurando preservar-se da revolução, não tentaram desembaraçar-se do czar e do seu séquito ? Elas quiseram, mas não ousaram. Elas não tinham nem bastante fé na sua própria causa nem suficiente resolução. A ideia de uma revolução palaciana assombrou os espíritos até ao dia que ela se afundou na revolução de Estado. Convém insistir sobre o sujeito, nem que fosse para ter uma concepção mais nítida das relações entre a monarquia e a cimeira da burocracia e da burguesia, na véspera da conflagração.
As classes possuidoras eram monárquicas na quase totalidade: pela força dos interesses, costume e cobardia. Mas elas desejavam uma monarquia sem Rasputine. A monarquia respondia-lhes: tomem-me tal como sou. Em resposta a quem reclamava um ministério decente, a czarina enviava ao Grande Quartel General uma massa dada por Rasputine, exigindo do czar que ele a comesse para consolidar a sua vontade! Ela conjurava-o:
“Lembra-te que mesmo M. Philippe (trata-se de um charlatão hipnotizador) disse que não deverias ceder uma constituição, porque isso seria a tua perca e a da Rússia...” “Sê um Pedro o Grande, um Ivan o Terrível, um imperador Paul, e esmaga toda essa gente sob os teus pés!”
Que odiosa mistura de cobardia, de superstição e de aversão para um país do qual se mantém à distância! Poderia parecer, na realidade, que, pelo menos na alta sociedade, a família imperial não estava assim tão isolada: porque enfim Rasputine estava sempre rodeado de uma plêiade de grandes damas e, de maneira geral, a bruxaria está em voga na aristocracia. Mas esta mística do medo não liga as pessoas; pelo contrário, ela desunia-os. Cada um conta salvar-se à sua maneira. Numerosas casas aristocrática concorrem entre elas com os seus “santos”. Mesmo na alta esfera de Petrogrado, a família imperial, como fosse pestilenta e colocada em quarentena, é rodeada de desconfiança e hostilidade. A dama de honor Vyroubova escreveu nas suas Lembranças:
“Eu discernia e ressentia profundamente em toda à volta a animosidade em relação aos que eu adorava, e sentia que esta animosidade tomava proporções espantosas...”
No fundo purpureado da guerra, os rumores distintos dos tremores subterrâneos, os privilégios não renunciaram um só instante aos prazeres da existência, mas, pelo contrário, grisalhavam-se. Mas, nos seus festins, apareciam cada vez mais um espectro que lhes ameaçava com os seus dedos esqueléticos. Eles começavam então a imaginar que todo o mal vinha do detestável carácter de Alice, da cobarde moleza do czar, de esta idiota, cúpida Vyroubova, e do Cristo siberiano, de crânio golpeado. Intoleráveis pressentimentos abatiam-se sobre as classes dirigentes, resentido-se por espasmos da periferia para o centro, isolando cada vez mais a o cume detestado de Tsarkoie-Selo. Vyroubova exprimiu com bastante vivacidade qual foi então o estado de alma desse pequeno grupo nas suas Lembranças, seja dito, em geral, extremamente mentirosos:
“...Pela centésima vez perguntava-me o que tinha acontecido à sociedade de Petrogrado. Teriam todos sido atingidos de doença mental ou de uma epidemia infligida em tempo de guerra? É difícil dar-se conta, mas, com efeito, todos estavam num estado de sobreexcitação anormal.”
Muitos desses dementes pertenciam também à família dos Romanov, toda esse matilha, odiada por todos, grandes duques e grandes duquesas. Mortalmente assustados, tentavam escapar ao cerco cada vez mais apertado, cacarejavam com a aristocracia fundibulária, propagavam boatos sobre o casal imperial, quezilavam-se entre eles e os que os rodeavam. Muitos augustos tios dirigiam-se ao czar cartas de advertências nas quais, sob formas respeitosas, compreendiam-se ranger de dentes e zombaria.
Protopopov, após a Revolução de Outubro, devia caracterizar com um estilo bastante incorrecto, mas pitoresco, o estado de espírito das altas esferas:
“Mesmo as classes mais altas mostraram-se críticas na véspera da revolução. Nos salões e nos clubes da alta sociedade, a política do governo era objecto de críticas acerbes e maldosas; examinava-se, discutiam-se os relatórios que se tinham estabelecido no seio da familia imperial; anedotas contavam-se acerca do chefe do Estado; escreviam-se epigramas; numerosos eram os grandes duques que frequentavam essas reuniões pérfidas. Até ao último momento, não havia consciência do perigo que havia nesse jogo”.
Os rumores que corriam sobre a camarilha do palácio tomava particular gravidade pelo facto que se acusava de germanofilia e mesmo de conivência directa com o inimigo. O ruidoso e pouco sagaz Rodzianko declara sem rodeios:
“A relação e analogia das tendências são lógicamente tão evidentes que não resta mais, pelo menos para mim, dúvidas sobre a acção conjugada do estado-maior alemão e do círculo de Rasputine: sobre isso, nenhuma dúvida pode subsistir.”
Como aqui a evidência “lógica” é alegada sem provas, o tom categórico desse testemunho perde muito da sua força persuasiva. Nenhuma prova de um conluio dos rasputines com o estado-maior alemão não foi descoberta, mesmo após a revolução. Quanto à “germanofilia”, é um outro assunto. Não se trata, bem entendido, das simpatias ou antipatias nacionais de uma czarina alemã, de um Stürmer primeiro-ministro, de uma condessa Kleinmichel, de um conde Frederiks, ministro da Corte, ou de outros personagens com nomes alemães. As cínicas Memórias da velha intrigante Kleinmichel mostram com uma certa vivacidade impressionante o carácter supra-nacional que distinguia as alta esferas aristocrática de todos os países europeus, ligados entre eles pelos nós de família, de hereditariedade, pelo desdém por tudo o que se encontrava abaixo de elas e – last, but not least – pelo cosmopolitismo de adultério nos velhos castelos, nos solares na moda e nas Cortes da Europa. Muito mais reais foram as antipatias orgânicas dos valetes do Palácio em relação aos obsequiosos advogados da República francesa, e os simpáticos reaccionários, com apelidos teutónicos ou eslavos, para o espírito puramente prussiano do regime berlinense que lhe havia imposto há muito tempo com os seus bigodes cosméticos, as suas maneiras de Feldwebel e a sua arrogante imbecilidade.
Mas isso não resolvia a questão. O perigo resultava da própria lógica da situação: a Corte, com efeito, não podia dispensar-se de procurar a sua salvação numa paz separada, e com tanto mais obstinação que o perigo tornava-se mais eminente. O liberalismo, na pessoa dos seus líderes, como ainda veremos, pensava reservar-se as oportunidades de uma paz separada, calculando sobre a perspectiva da sua chegada ao poder. Mas é precisamente por esta razão que ele conduzia a sua agitação chauvinista com empenho, enganando o povo e aterrorizando a Corte. A camarilha, numa questão tão grave, não ousava desmascarar-se antes do tempo e encontrava-se mesmo forçada de falsificar o tom patriótico da opinião, ao mesmo tempo que apalpava o terreno para chega a uma paz separada.
O general Korlov, antigo grande chefe da Polícia, que tinha aderido à camarilha rasputina, nega, bem entendido, nas sua Memórias, as relações com a Alemanha, e a germanofilia dos seus protectores, mas logo acrescenta:
“Não poderíamos censurar a Stürmer de ter pensado que a guerra feita à Alemanha era a maior das desgraças para a Rússia e que ela não tinha nenhum sério motivo político.”
Não se pode porém esquecer que Stürmer, que “pensava” de uma maneira tão interessante, estava à cabeça do governo de um país em guerra com a Alemanha. Protopopov, o último dos ministros do czar na pasta do Interior, teve, na véspera de entrar no governo, conversões em Estocolmo com um diplomata alemão, das quais ele fez um relatório ao czar. O próprio Rasputine, segundo o mesmo Korlov,
“considerava que a guerra com a Alemanha era uma enorme calamidade para a Rússia”.
Enfim, a imperatriz escrevia ao czar, no dia 5 de Abril 1916:
“...Que eles não ousam dizer que tenha havido da parte Dele a menor coisa em comum com os alemães; ele é bom e magnânimo. Para todos, como o Cristo, qualquer que seja a religião que as pessoas pertençam; assim deve ser o verdadeiro cristão.”
Sem dúvida, junto deste verdadeiro cristão que não saía praticamente do estado de bebedeira, poderiam muito bem se infiltrar, como larápios, usurários e aristocráticas alcoviteiras, verdadeiras espias. “Ligações” desta natureza não são impossíveis. Mas os patriotas da oposição colocavam questões mais largas e directamente: eles acusavam nitidamente a czarina de traição. Nas suas Memórias escritas muito mais tarde, o general Denikine disso testemunha:
“No exército, falava-se em voz alta, sem preocupação da hora e do lugar, da instâncias da imperatriz que queria uma paz separada, da sua traição em relação ao marechal de-campo Kitchner, a quem ela teria informado da viagem à Alemanha, etc. Esta circunstância jogou um papel enorme na opinião do exército, da sua atitude em relação à dinastia e da revolução.”
Esse mesmo Denikine conta que após a revolução, o general Alexeiev, como lhe perguntaram claramente se a imperatriz tinha traído, respondeu “evasivamente de má-vontade” que tinham descoberto na casa da czarina, classificando os seus papeis, uma carta onde estavam indicados em detalhe as colocações dos corpos do exército na frente, e que ele, Alexeiev, tinha resentido que esse achado uma impressão intolerável...” Nem mais uma palavra – acrescentou Denikine de uma maneira muito significativa: Alexeiev mudou de conversa. “Que a czarina tenha ou não detido em sua casa uma carta misteriosa, os generais mal-aconselhados estavam evidentemente bastante inclinados em rejeitar sobre ela uma parte da responsabilidade dos seus defeitos. As culpas de traição levadas contra a Corte espalhavam-se pela tropa, vindo sem dúvida principalmente do alto, dos estados-maiores incompetentes.
Mas se a própria czarina, à qual o czar se submete em toda as coisas, entregou a Guilherme os segredos militares e mesmo as cabeça dos grandes capitãs aliados, que falta esperar, a não ser sanções contra o casal imperial? Ora, considerava-se o grão-duque Nicolau Nicolaievitch como o verdadeiro chefe do exército e do partido anti-germânico e, por consequência, e por assim dizer em virtude das suas funções, era ele que estava indicado para patrocinar uma revolta de palácio. Foi por essa razão que o czar, sob conselho de Rasputine e da czarina, destituiu o grão-duque e assumiu em pessoa o comando supremo. Mas a imperatriz apreendia a entrevista do sobrinho com o tio, no momento da possessão dos poderes:
“Meu caro, escreveu ela ao czar no G. Q. G., procura ser prudente e não te deixes enganar por quaisquer promessas de Nicolacha, ou por qualquer outra coisa; lembra-te que Grigori (Rasputine) salvou-te dele e dessa gente malvada...Lembra-te, em nome da Rússia, o que ele querem fazer: expulsar-te (não é um mexerico, em Orlov todos os papeis estavam já prontos) e a mim, fechar-me num convento...”
O irmão do czar, Miguel, dizia a Rodzianko:
“Toda a família reconhecia até que ponto é prejudicava Alexandra Fedorovna. Meu irmão e ela estão exclusivamente rodeados de traidores. Toda a gente honesta foi afastada. Mas que fazer em tal caso?”
Sim, precisamente: que fazer em tal caso?
A grande-duquesa Maria Pavlovna, em presença dos seus filhos, dizia e repetia que Rodzianko devrait tomar a iniciativa de “eliminar” a czarina. Rodzianko propos que essas afirmações não tiveram lugar, porque de outra forma, o seu juramento de fidelidade o tivesse obrigado a comunicar ao czar, que uma grão-duquesa convidava o presidente da Duma a suprimir a imperatriz. É assim que o imaginativo gentil-homem levava a questão do assassinato da czarina como uma gentil gracinha inocente.
O próprio ministério encontrava-se por momentos em aberta oposição com o czar. Desde 1915, dezoito meses antes da revolução, mantinha-se abertamente, em Conselho de ministros, afirmações que nos parecem ainda hoje inacreditáveis. Polivanov, ministro da Guerra:
“Só uma política de conciliação com a sociedade pode salvar a situação. Os diques frágeis que existem actualmente não poderão evitar uma catástrofe.”
Grigorovitch, ministro da Marinha:
“Não é segredo que a tropa não tem confiança em nós e espera mudanças.”
Sazonov, ministro dos Estrangeiros:
“A popularidade do czar e a sua autoridade são consideravelmente abalada aos olhos da massas”.
O príncipe Chtcherbatov, ministro do Interior:
“Somos todos incapazes de governar a Rússia nas presentes circunstâncias … É preciso uma ditadura ou uma política de conciliação.” (Sessão de 21 de Agosto 1915).
Nem uma nem outra solução não serviam de nada; nem uma nem outra eram realizáveis. O czar não se decidia pela ditadura, rejeitava uma política de conciliação e não aceitava demissões de ministros que se julgavam incapazes. Um alto funcionário que tomava notas, acrescentou aos arengues ministeriais este breve comentário:
“ Para nós, então, é a lanterna!”
Em tal situação, não é de estranhar que, mesmo nos meios burocráticos, se tenha falado da necessidade de uma revolução de palácio, como o único meio de evitar uma revolução eminente. “Se eu fechasse os olhos – escreve um dos que participaram nessas conversações – teria acreditado que me encontrava numa sociedade de revolucionários enraivecidos.”
Um coronel da guarda que fez um inquérito, uma missão especial, nas tropas do Sul, deu no seu relatório um quadro sombrio: no seguimento dos esforços de propaganda sobre a germanofilia da imperatriz e do czar, o exército estava disposto a acolher a ideia de uma revolução palaciana.
“Houve, nesse sentido, nas assembleias de oficiais, francas conversas que não encontravam a indispensável reacção do alto comando. “Protopopov, por outro lado, declarou que “um grande número de personagens do alto comando eram favoráveis a uma revolução; alguns encontravam-se nas relações e sob a influência dos principais líderes do chamado bloco progressista.”
O almirante Koltchak, que, em consequência se tornou famoso, declarou, diante da comissão rogatória dos Sovietes, quando as suas tropas foram derrotadas pelo Exército Vermelho, que ele estava em ligação com numerosos membros da oposição na Duma, que ele tinha aprovado as manifestações, visto que “a sua atitude em relação ao poder existente antes da revolução era negativo.” Koltchak, no entanto, não foi posto ao corrente dos planos da revolução palaciana.
Depois do assassinato de Rasputine, as medidas de relegação que atingiram por consequência certos grandes duques, a alta sociedade meteu-se a falar mais alto que nunca da necessidade de uma revolução na Corte. O príncipe Iossopov conta que o grão-duque Dmitri, em prisão domiciliária no seu palácio, recebeu visitas de oficiais de vários regimentos que lhe propuseram diversos planos de acção decisiva ”que ele não podia aceitar, naturalmente.”
Considera-se que a diplomacia dos Aliados participou na conspiração, pelo menos a do embaixador da Grande-Bretanha. Este último, por iniciativa dos liberais russos, tentou, em Janeiro de 1917, influenciar Nicolau II, após ter pedido a sanção prévia do seu governo. Nicolau ouviu com atenção e educadamente, agradeceu-lhe...e falou de outra coisa. Protopopov, informava Nicolau que existiam relações entre Buchanan e os principais líderes do bloco progressista e propunha estabelecer a vigilância à volta da embaixada britânica. Parece que Nicolau não teria aprovado essa medida, achou que a vigilância exercida sobre um embaixador “seria contrária às tradições internacionais”. Entretanto, Korlov, sem rodeios, declarou que
“os serviços de informações notaram diariamente as relações do líder do partido cadete Miliokov com o embaixador de Inglaterra”.
Em consequência, as tradições internacionais não impediam nada. Mas elas foram violadas, o resultado mediocre: a conspiração palaciana não foi descoberta.
Existiu? Nada o prova. Ela foi demasiando extensa, essa “conspiração”, englobava os círculos demasiado numerosos e diversos para se uma conspiração. Pairava no ar, como rumor nas altas esferas da sociedade petersburguesa, como ideia confusa de salvamento ou como formula de desespero. Mas não se condensa até se tornar um plano prático.
No século XVIII, a alta nobreza, teve, mais de uma vez, de corrigir a ordem de sucessão dos ocupantes do trono, encarcerando, ou abafando os imperadores incómodos: pela última vez, esta operação foi feita com Paulo I, em 1801. Não se pode afirmar, em consequência, que uma revolução palaciana tivesse transgredido as tradições da monarquia russa: foi pelo contrário um elemento indispensável. Porém, a aristocracia tinha cessado há muito tempo de se sentir segura. Ela concedia a honra de abafar o czar e a czarina à burguesia liberal. Mas os líderes desta última não estavam muito decididos.
Após a revolução, designou-se mais de uma vez os capitalistas liberais Gotchkov e Terechtchenko, assim que o general Krymov que lhe era próximo, como o núcleo da conspiração. Gotchkov e Terechtchenko testemunharam eles próprios nesse sentido, mas sem darem precisões. Antigo voluntário no exército do Boers contra os ingleses, duelista, liberal que calçava esporas, Gotchkov devia parecer à generalidade da “opinião pública” o homem mais adequado para um conspiração. Não o professor prolixo Miliokov, na verdade! Gotchkov teve de lembrar-se mais de uma vez que um regimento de Guarda, ao dar rapidamente um bom golpe, pode substituir-se à revolução e preveni-la. Já, nas suas Memórias, Witte denunciava Gotchkov, que ele detestava, como um administrador dos métodos empregados pelos jovens turcos para resolver o caso de um sultão indesejável. Mas Gotchkov que, na sua juventude não tinha tido tempo para manifestar a sua bravura de jovem turco, estava agora numa idade demasiado avançada. E, sobretudo, esse emulo de Stolypine não podia dispensar-se de ver a diferença entre as condições russas e as da velha Turquia: um golpe de Estado no Palácio, em vez de ser um meio preventivo contra a revolução, não seria a última comoção que desencadearia a avalanche, e o remédio não se tornaria pior que o mal?
Na literatura consagrada à Revolução de Fevereiro, fala-se de preparativos de uma revolução palaciana como de um facto perfeitamente estabelecido. Miliokov exprime-se assim:
“A realização desse plano estava prevista para Fevereiro.”
Denikine atrasa a operação para a Março. Um e outro mencionam que estava no “plano” parar no caminho o comboio imperial, exigir a abdicação e, em caso de recusa, o que se supunha inevitável, proceder à “eliminação física” do czar. Miliokov acrescenta que, diante da eventual admissível do golpe de Estado, os líderes do bloco progressista que não participavam na conspiração e que não estavam ao corrente dos preparativos dos conspiradores, deliberaram em comité restrito sobre a melhor maneira de utilizar o golpe de Estado se ele fosse vitorioso. Vários estudos marxistas, nestes últimos anos, acreditam a versão de uma preparação prática da revolução. Segundo este exemplo – seja dito de passagem – pode-se constatar a facilidade com que a legenda se sobrepõe à ciência da história.
Dá-se muitas vezes como a mais importante prova da conspiração uma narração pitoresca de Rodzianko que demonstra que, precisamente, não houve qualquer conspiração. Em Janeiro 1917, o general Krymov, regressando à capital vindo da frente, queixava-se diante dos membros da Duma de uma situação que não poderia perdurar:
“Se vocês decidirem por esta medida extrema (derrubar o czar), nós vos apoiaremos.”
Se vocês decidirem...Um outubrista, Chidlovsky, gritou exasperado:
“Inútil de poupá-lo e de ter piedade quando ele leva a Rússia à sua perca!”
Num debate tumultuoso, citou-se uma afirmação autêntica ou apócrifo de Brossilov:
“Se for necessário escolher entre o czar e a Rússia, caminharei pela Rússia.”
Se for necessário! O jovem milionário Terechtchenko mostrou-se um irredutível regicida. Chingarev, cadete, declarou:
“O general tem razão: um golpe de Estado é indispensável. Mas quem decidirá?”
Toda a questão está aí: quem se decidirá? Tais são em substância as declarações de Rodzianko quem, ele próprio, se pronunciava contra o golpe de Estado. No decurso das poucas semanas que seguiram, o plano não progrediu, verosimilmente. Falava-se de parar o comboio imperial, mas não se via qual homem deveria se encarregar da operação.
O liberalismo russo, quando ele era jovem, apoiava com o seu dinheiro e as suas simpatias os terroristas revolucionários, esperando que à força de bombas estes últimos reduziriam a monarquia a deitar-se nos seus braços. Nenhum desses honrosos personagens não estava habituado a arriscar a sua cabeça. Mas o temor não era tanto o dos indivíduos mas de uma classe: isso vai mal pelo momento – pensavam eles – mas se pioramos! De qualquer modo, se Gotchkov, Terechtchenko e Krymov tinham caminhado seriamente para um golpe de Estado, preparando-o praticamente, mobilizando forças e recursos, ter-se-ia sabido de maneira mais exacta e mais precisa após a revolução, porque os participantes, sobretudo os jovens executantes que seriam necessários, em grande número, não tivessem tido nenhum motivo de calar o feito “quase” realizado: a datar de Fevereiro, isso teria seguramente assegurado a carreira deles. Ora, nenhuma revelação desse tipo não foi feita. É perfeitamente evidente também que, do lado de Gotchkov e de Krymov, o caso não foi levado para além de suspiros patrióticos entre o vinho e o charuto. Assim, os tontos da conspiração aristocrática assim que os desajeitados da oposição plutocrática não encontraram neles próprios fôlego suficiente para corrigir por actos a caminhada de um empreendimento que não funcionava.
Em Maio de 1917, Maklakov, um dos liberais dos mais eloquentes e mais fúteis, bradava, numa conferência particular da Duma que a revolução despedirá a monarquia: “Se a história virá amaldiçoar esta revolução, ela nos amaldiçoará também por não ter sabido prevenir os acontecimentos oportunamente por um golpe de Estado a partir de cima!” Mais tarde ainda, na emigração, Kerensky, seguindo Maklakov, dirá sem contrição:
“Sim, a Rússia censitária hesitou demasiado para executar em tempo útil o golpe de Estado no alto (que se falava tanto e para o qual nos preparámos tanto [?]); ela demorou a prevenir a explosão das forças elementares do Estado.”
Essas duas exclamações concretizavam o quadro, mostrando que mesmo após a revolução, quando esta desencadeou todas as suas indomáveis energias, os sábios patifes continuaram acreditar que se teria podido prevenir-la, substituindo-a, “em tempo útil” uma pequena cabeça dinástica!
Não houve bastante audácia para decidir uma “grande” revolução palaciana. Mas daí nasceu o plano de um pequeno golpe de Estado. Os conspiradores liberais não ousaram suprimir o principal actor da monarquia; os grandes duques conceberam o assassinato de Rasputine como o derradeiro meio de salvar a monarquia.
O príncipe Iossopov, casado com uma Romanova, assegurou-se do apoio do grão-duque Dmitri Pavlovitch e do deputado monárquico Porichkevitch. Tentaram arrastar o liberal Maklakov, evidentemente para dar ao assassinato um carácter de acto nacional. O celebro advogado recusou sabiamente, após ter fornecido o veneno aos conjurados. Detalhe de grande estilo! Os cúmplices juraram, não sem razão, que um automóvel da casa imperial facilitaria o rapto do cadáver: os brasões de grão-duque tornaram-se úteis. Os factos desenrolaram-se seguidamente como uma encenação de cinema calculada por pessoas de mau gosto. Na noite de 16 a 17 de Dezembro, Rasputine, atraído para uma patuscada no palácio Iossopov, foi morto.
As classes dirigentes, excepção feita de uma restricta camarilha e de místicas admiradoras, consideraram o assassinato de Rasputine como um acto de salvação. Sob prisão domiciliária, o grão-duque cujas mãos, segundo a expressão do czar, encontraram-e manchadas do sangue do mujique – um Cristo, entendido, mas um mujique mesmo assim! - recebeu visitas de simpatia de todos os membros da família imperial que se encontravam em Petrogrado. A própria irmã da czarina, viúva do grão-duque Sérgio, telegrafou dizendo que rezaria pelos assassinos e que ela benzia o seu gesto patriótico. Os jornais, enquanto não lhes foi interdito de mencionar Rasputine, publicaram artigos entusiastas. Nos teatros, houve tentativas e manifestações em honra dos assassinos. Na rua, as felicitações eram trocadas pelos transeuntes.
“Nas casas privadas, nas assembleias de oficiais, nos restaurantes – escreveu o príncipe Iossopov – bebia-se à nossa saúde; nas fábricas, os operários lançavam urras em nossa honra.”
É perfeitamente admissível que os operários não estavam entristecidos quando souberam do assassinato de Rasputine. Mas as suas aclamações nada tinham em comum com as esperanças fundadas no renascimento da dinastia.
A camarilha rasputina escondia-se na expectativa. O eremita foi enterrado na mais restricta intimidade, pelo czar, a czarina, seus filhos, Vyroubova; depois do cadáver do santo Amigo, de antigo ladrão de cavalos, executado pelos grão-duques, a família reinante ela própria devia sentir-se proscrita. Porém, mesmo enterrado, Rasputine não tinha repouso. Quando Nicolau e Alexandra Romanov foram constituidos prisioneiros, soldados, em Tsarkoi-Selo, arrombaram com a tomba e abriram o caixão. Na cabeceira do morto encontraram um ícone com a inscrição: “Alexandra, Olga, Tatiana, Maria, Anastásia, Ania.” O governo provisório enviou um oficial encarregado – pergunta-se porquê – de levar o corpo para Petrogrado. A multidão opôs-se e o delegado teve que fazer incinerar o cadáver no próprio lugar.
Depois do assassinato do Amigo, à monarquia só lhe restava dez semanas para viver. Porém, esse curto lapso de tempo pertencia-lhe ainda. Rasputine não existia mais, mas a sua sombra continuava a reinar. Contrariamente a todas as esperanças dos conspiradores, o casal imperial, após o assassinato, teimou em meter na primeira linha as personagens mais detestáveis da clique rasputina. Dizia-se que Protopopov ocupava-se de espiritismo, evocando o espírito de Rasputine. O nó de uma situação sem saída apertava-se.
O assassinato jogou um grande papel, mas não aquele que tinham contado os executantes inspiradores. Em vez de atenuar a crise, este acto agravou-a. Por toda a parte falava-se desse assassinato: nos palácios, nos estados-maiores, nas fábricas, e nas isbas dos camponeses. Uma dedução impunha-se: os próprios grão-ducados não tinham contra a camarilha leprosa outras vias senão o veneno e o revolver. O poeta Blok escreveu sobre o assassinato de Rasputine:
“A bala que o acabou atingiu em cheio a dinastia reinante.”
Robespierre lembrava já na Assembleia constituinte que a oposição da nobreza, tendo enfraquecido a monarquia, tinha desencadeado a burguesia e, depois dela, as massas populares. Robespierre dava ao mesmo tempo este aviso: no resto da Europa, dizia ele, a revolução não poderia desenvolver-se tão rapidamente como em França, porque as classes privilegiadas dos outros países, instruidas pela experiência da nobreza francesa, não se encarregaria da iniciativa de fazer uma revolução. Ao apresentar esta análise notável, Robespierre enganava-se porém em supor que a nobreza francesa, pela sua leviandade na oposição, devia ter dado uma vez por todas uma lição aos aristocratas dos outros países. A Rússia demonstrou de novo, e em 1905 e, particularmente, em 1917, que uma revolução dirigida contra um regime autocrático e de meia servidão, por consequência contra a classe nobre, reencontra, nas suas primeiras acções, a assistência não sistemática, contraditória, contudo muito eficaz não somente da nobreza média mas também cimeiras de privilegiados desta classe, incluindo mesmo certos membros da dinastia. Esse notável fenómeno histórico pode parecer inconciliável com a teoria de uma sociedade constituida em classes, mas, na realidade, não contradiz senão a concepção trivial.
A revolução eclodiu quando os protagonistas sociais atingiram a tensão extrema. Mas é precisamente assim que a situação se torna intolerável mesmo par as classes da velha sociedade, isto é para aquelas que estão condenadas a desaparecer. Sem acordar mais valor do que convém às analogias biológicas, vem a propósito lembrar que um parto, a uma certa data, torna-se também tão inevitável para o órgão maternal como para o seu fruto. A oposição das classes privilegiadas prova que a sua situação tradicional é incompatível com as necessidades de sobrevivência da sociedade. A burocracia dirigente começa a deixar passar tudo por água abaixo. A aristocracia, sentindo-se directamente visada pela hostilidade geral, joga a culpa sobre a burocracia. Esta acusa a aristocracia, e seguidamente essas duas castas, juntas ou separadas, voltam o seu descontentamento contra a monarquia que coroa o poder deles.
O príncipe Chtcherbatov, que, exercendo as funções nas instituições da nobreza, foi chamado a dado momento ao ministério, dizia isto:
“Samarine e eu somos antigos marechais da nobreza. Até agora, ninguém nos considerou como homens de esquerda, e nós não nos consideramos como tais. Mas nem um nem o outro não compreendemos uma tal situação no Estado: o monarca e o seu governo estando em desacordo radical com tudo o que há de razoável na sociedade (as intrigas revolucionárias nem merece a pena falar), com a nobreza, os comerciantes as municipalidades, os zemstvos, e mesmo o exército. Se, no alto, não querem ter em conta as nossas opiniões, o nosso dever é de partir.”
A nobreza vê a origem de todos os males na cegueira da monarquia cegou ou na perca da razão. Em geral, a casta privilegiada não acredita que não possa mais haver política que reconciliaria a antiga sociedade com a nova ; noutros termos a nobreza não se resigna em aceitar a sua condenação e, nas tormentas da agonia, se mete em oposição contra o que há de mais sagrado no antigo regime, contra a monarquia. A violência e irresponsabilidade da oposição aristocrática explicam-se pelos privilégios que beneficiaram historicamente as altas esferas da nobreza e pelos temores intoleráveis face à revolução. O falta de sistema e de contradições da oposição aristocrática explicam-se pelo facto que é a oposição de uma classe que não tem saída. Mas, tal como uma vela, antes de se extinguir, projecta um brilhante ramo de flamas, mesmo se fumacenta, a nobreza, antes de se apagar, passa por brilhos de oposição que prestam grandes auxílios aos seus inimigos mortais. Tal é a dialéctica desse processo que não somente concorda com as teorias das classes sociais, mas que se explicam por esta teoria.
Inclusão | 04/05/2010 |