História da Revolução Russa

Léon Trotsky


A contra-revolução levanta a cabeça


Durante os dois primeiros meses, enquanto que, formalmente, o poder estava sob a responsabilidade do governo GotchkovMiliokov, ele estava de facto concentrado inteiramente nas mãos do soviete. Durante os dois meses seguintes, o soviete enfraqueceu: uma parte da influência sobre as passou para as mãos dos bolcheviques, uma parcela do poder foi transferida, das pastas dos ministros socialistas para o governo de coligação. Desde do início dos preparativos da ofensiva se reforçou automaticamente a importância do comando militar, dos órgãos do capital financeiro e do partido cadete. Antes de verter o sangue dos soldados, o comité executivo procedeu a uma considerável transfusão do seu próprio sangue para as veias da burguesia. Nos corredores, os fios eram recolhidos pelas mãos das embaixadas e dos governos da Entente.

Na conferência inter-aliada que teve lugar em Londres, os amigos do Ocidente «esqueceram» de convidar o embaixador da Rússia; foi somente quando se lembraram que o chamaram, dez minutos antes da abertura da sessão, e já não havia lugar para ele à volta da mesa, de maneira que ele foi obrigado a colocar-se entre os franceses. Esta humilhação afligiu o embaixador do governo provisório e a demissão demonstradora dos cadetes do ministério produziu-se no 2 de Julho: os dois acontecimentos tinham um e só objectivo: obrigar os conciliadores a retirarem-se. A manifestação armada que se desenrolou a seguir devia tanto mais exasperar os líderes soviéticos que, sobe um duplo golpe, eles concentravam toda a sua atenção num sentido oposto. Desde então era preciso trazer a submissão sangrenta no seguimento da Entente, não encontraram os melhores intercessores senão os cadetes. Tchaikovsky, um dos mais antigos revolucionários russos, que se transformou no decurso dos longos anos da emigração, num liberal moderado de tipo britânico, moralizava assim: «É preciso dinheiro para a guerra, ora os Aliados não darão dinheiro aos socialistas.» Os conciliadores estavam incomodados por este argumento, mas compreendiam todo o peso.

A relação de forças tinha-se nitidamente modificado em desvantagem do povo, mas ninguém não podia dizer em que medida. Os apetites da burguesia tinham aumentado muito mais que as suas possibilidades. Nesta indeterminação encontrava-se a fonte dos conflitos, porque as forças das classes verificavam-se pela acção e os acontecimentos de uma revolução eram trazidas a tais verificações renovadas. Tal foi todavia, na sua extensão, a deslocação do poder da esquerda para a direita, ela atingia pouco o governo provisório que continuava nulo. Pode-se contar pelos dedos de uma mão os homens que, nos dias críticos de Julho, se interessavam o governo do príncipe Lvov. O general Krymov, o mesmo que outrora tinha conduzido as conversações com Gotchov sobre a deposição de Nicolau II – nós veremos brevemente esse general pela última vez – enviou ao príncipe um telegrama que terminava por este conselho: «É tempo de passar das palavras aos actos.» O conselho teve um ressonância de piada e sublinhava mais nitidamente a impotência do governo.

«No princípio de Julho – escrevia o liberal Nabokov – houve um breve momento onde o poder parecia retomar autoridade; foi após o esmagamento da primeira ofensiva bolchevique. Mas o governo provisório não soube aproveitar o momento, e as condições favoráveis de então não foram utilizadas. Elas não voltaram a repetir-se. «É nesse mesmo espírito que se exprimem outros representantes do campo da direita. Na realidade, durante as jornadas de Julho, tal que em geral em todos os momentos críticos, as componentes da coligação perseguiam fins diferentes. Os conciliadores estariam dispostos a permitir o esmagamento definitivo dos bolchevique, se não fosse evidente que tendo resolvido o caso destes últimos, os oficiais, os cossacos, os cavaleiros de São Jorge e os batalhões de choque esmagariam os próprios conciliadores. Os cadetes queriam ir até ao fim para varrer não somente os bolcheviques, mas os sovietes. Todavia, não é por acaso que os cadetes se encontravam, em todos os momentos graves, fora do governo. No fim de contas, eles foram expulsos pela pressão das massas, irresistível, a despeito de todos os tampões conciliadores. Mesmo se os liberais tivessem conseguido apoderar-se do poder, eles não teriam podido guardá-lo. Os acontecimentos demonstraram a seguir com grande clareza. A ideia da possibilidade que teriam deixado escapar em Julho é uma ilusão retrospectiva. De qualquer modo, a vitória de Julho, longe de consolidar o poder, abriu ao  contrário um período de crise governamental prolongado que não encontrou formalmente saída senão no 24 de Julho e foi em resumo uma lenta agonia, durante quatro meses, do regime de Fevereiro.

Os conciliadores estavam divididos entre a necessidade de restabelecer uma meia amizade com a burguesia e a necessidade de moderar a hostilidade das massas. O zigzag tornou-se para eles uma forma de existência, que se transformaram em oscilações febris, mas a linha essencialmente virou bruscamente para a direita. No 7 de Julho, o governo decidiu toda uma serie de medidas repressivas. Mas, na mesma sessão, em segredo, aproveitando da ausência dos «antigos», isto é dos cadetes, os ministros socialistas propuseram ao governo de empreender a realização do programa estabelecido em Junho pelo congresso dos Sovietes. Isso levou imediatamente um novo deslocamento do governo. O príncipe Lvov, grande proprietário de terras, antigo presidente da união dos zemstvos, acusou o governo de «sapar» pela sua política agrária «a consciência jurídica do povo». Os proprietários nobres inquietaram-se não por ter talvez de perder seus patrimónios, mas de ver os conciliadores «esforçarem-se de colocar a assembleia constituinte diante do facto consumado». Todos os pilares da reacção monárquica tornaram-se desde logo partidários entusiastas da democracia pura! O governo decidiu confiar o posto de ministro presidente a Kerensky, mantendo a possessão das pastas da Guerra e da Marinha. Tseretelli, novo ministro do Interior, teve que responder diante do comité executivo sobre as prisões dos bolcheviques. A interpelação vinha de Martov, e Tseretelli respondeu, sem cerimónia, ao seu antigo camarada de partido, que preferia resolver o assunto com Lenine em vez de Martov: com o primeiro ele sabia como se conduzir, enquanto que o outro amarrava-lhe as mãos... «Tomo a responsabilidade dessas prisões!» - tal foi o desafio do ministro diante de um auditório que arrebitava as orelhas. Ao mesmo tempo que golpeava a esquerda, os conciliadores alegavam o perigo da direita. «A Rússia encontra-se diante de uma ditadura militar – declara Dan no seu relatório na sessão do 9 de Julho. Nós temos a obrigação de arrancar a baioneta das mãos da dictadura militar. E não o podemos fazer senão em reconhecendo o governo provisório como o comité de salvação nacional. Devemos dar ao governo poderes ilimitados para que ele possa extirper a anarquia de esquerda e a contra-revolução da direita... » Como se o próprio governo, que lutava contra os operários, os soldados, os camponeses, tinha podido ter nas mãos uma outra baioneta senão aquela da contra-revolução! Por duzentos e cinquenta e dois votos, diante quarenta e sete abstenções, a Assembleia unificada tomou esta resolução: « 1º O país e a revolução estão em perigo. 2º O governo provisório declara-se governo de salvação da revolução. 3º Reconhecesse-lhe poderes ilimitados.» Esta decisão soava como um barril vazio. Os bolcheviques que assistiam à sessão abstiveram-se de votar, o que testemunha uma indiscutível perplexidade nas cimeiras do partido nessa época.

Os movimentos de massa, mesmo esmagados, nunca passam sem deixar rasto. O lugar do grande senhor foi ocupado, à cabeça do governo, por um advogado radical; o ministérios do Interior teve à cabeça um forçado. Constata-se uma remodelação plebeia do poder. Kerensky, Tseretelli, Tchernov, Skobolev, líderes do comité executivo, determinavam desde de então a fisionomia do governo. Não está aí a realização da palavra de ordem das jornadas de Junho: «Abaixo os ministros capitalistas» ? Não, é somente a revelação da inconsistência dessa palavra de ordem. Os ministros democratas não tomaram o poder senão para o restituir aos capitalistas. «A coligação está morta, viva a coligação!»

Desempenha-se a vergonhosa comédia do desarmamento dos metralhadores na praça do palácio. Vários regimentos são dissolvidos. Soldados são enviados, por pequenos destacamentos, como reforços para a frente. Os quarentões são levados à disciplina e expulsos para as trincheiras. São todos agitadores contra o regime do kerenskysmo. São algumas dezenas de milhar e realizarão até o outono um grande trabalho. Paralelamente, desarma-se os operários, mesmo com sucesso menor. Sob a pressão dos generais – veremos em breve quais formas ela toma – a pena de morte é restabelecida na frente. Mas, no mesmo dia, no 12 de Julho, é promulgado um decreto limitando as compras e vendas de terras. A meia medida tardia, sob a ameaça do machado do mujique, provocou sarcasmos à esquerda, à direita, ranger de dentes. Tendo proibido todo e qualquer desfile pelas ruas – ameaça para a esquerda – Tseretelli levantou a mão contra as prisões arbitrárias, tentativa para intimidar a direita. Kerensky, tendo revocado o comandante chefe da região militar, deu como motivo à esquerda que este oficial tinha destruído organizações operárias, à direita que este homem era pouco resoluto.

Os cossacos tornaram-se os autênticos heróis de Petrogrado burguês. «Acontece às vezes – conta o oficial cossaco Grekov – que um dos nossos, em uniforme, entrando num lugar público, num restaurante onde há muita gente, todos se levantam e acolhem o recém-chegado com aplausos.» Os teatros, os cinemas e os jardins de divertimento organizaram várias noites de beneficência em proveito dos cossacos feridos e das famílias dos cossacos mortos. O secretariado do comité executivo viu-se forçado a eleger uma comissão, tendo à cabeça Tchkheidze, para participar na direcção dos funerais «dos guerreiros caídos no cumprimento do seu dever revolucionário durante os dias de 3 a 5 de Julho.» Os conciliadores tiveram que beber até às borras o copo da humilhação. O ceremonial começou por um serviço religioso na catedral São Isac. Os caixões foram transportados por Rodzianko, Miliokov, o príncipe Lvov e Kerensky, e em procissão foram levados para enterro no mosteiro Alexandre-Nevsky. Na passagem do cortejo, a milícia estava ausente, os cossacos tinham-se encarregado de manter a ordem: o dia das obséquias foi a do seu inteiro domínio sobre Petrogrado. Os operários e os soldados que os cossacos tinham massacrado, irmão de sangue das vítimas, foram sepultados às ocultas, da mesma maneira que, no tempo do czar, tinham enterrado as vítimas do 9 de Janeiro de 1905.

O comité executivo de Cronstadt recebeu do governo o aviso para imediatamente colocar aos dispor das autoridades judiciárias Raskolnikov, Rochal e o alferes Remnev, sob ameaça de um bloqueio da ilha de Cronstadt. Em Helsingfors foram também presos, com os bolcheviques, pela primeira vez, socialistas-revolucionários de esquerda. O príncipe Lvov, que se tinha demitido, queixava-se nos jornais do que «os sovietes, inferiores à moral geral da alta política, não se desembaraçaram dos leninistas, esses agentes da Alemanha». Foi um caso de honra para os conciliadores em demonstrar a sua moral de Estado! No 13 de Julho, os comités executivos adoptaram na sessão unificada uma moção apresentada por Dan: «Todas as pessoas acusadas pelo poder judiciário são afastadas dos comités executivos até ao julgamento do tribunal.» Os bolcheviques eram assim colocados efectivamente fora da lei. Kerensky proibiu toda a imprensa bolchevique. Na província procedia-se a prisões dos comités agrários. As Izvestia lamentavam-se na impotência: «Há alguns dias, testemunhámos os excessos da anarquia nas ruas de Petrogrado. Hoje nas mesmas ruas, vazam-se sem limites discursos contra-revolucionários, discursos dos Cem Negros.»

Os regimentos mais revolucionários tendo sido dissolvidos e os operários desarmados, o centro de gravidade deslocou-se mais ainda para a direita. Nas mão de alguns altos dirigentes militares, grupos industriais, banqueiros e cadetes, concentrara-se uma importante parte do poder real. A outra parte ficava nas mãos dos sovietes. A dualidade dos poderes legalizada, baseada num contrato ou coligação, dos meses precedentes, era a dualidade de poderes explosivo de duas cliques: a dos militares e burgueses e a dos conciliadores que se temiam entre elas, mas ao mesmo tempo necessitavam uma da outra. Que havia a fazer ? Ressuscitar a coligação. «Após a insurreição dos 3, 4 e 5 de Julho – escreve com justeza Miliokov – a ideia da coligação não somente foi abandonada, mas, pelo contrários, adquiriu durante um certo tempo mais força e significado que ela não tinha antes.»

O comité provisório da Duma de Estado despertou inopinadamente e adoptou uma violenta resolução contra o governo de salvação. Foi o último golpe. Todos os ministros remeteram as suas pastas a Kerensky, fazendo assim dele o centro da soberania nacional. No destino ulterior da revolução de Fevereiro, tal como a sorte pessoal de Kerensky, esse momento ganhou uma importância considerável: no caos dos agrupamentos, demissões, nomeações, esboçou-se qualquer coisa no género de um ponto sólido à volta do qual giravam todos os outros. A demissão dos ministros serviu de introdução a conversações com os cadetes e os industriais. Os cadetes meteram suas condições: responsabilidade dos membros do governo «exclusivamente face à sua consciência»; acordo absoluto com os Aliados; restabelecimento da disciplina no exército; nenhuma reforma social antes da assembleia constituinte. Um artigo que não estava escrito, era a exigência de diferir as eleições para a assembleia constituinte. Isso chamava-se «um programa independente dos partidos e nacional».

No mesmo sentido responderam os representantes do comércio e da indústria que o conciliadores tentavam em vão de opor aos cadetes. O comité executivo confirmou ainda a sua resolução de dar ao governo de salvação «plenos poderes»; isso significava que se consentia na independência do governo em relação ao soviete. No mesmo dia, Tseretelli, como ministro do Interior, lançou um circular convidando a tomar «medidas urgentes e resolutas para meter fim aos actos de arbítrio no domínio das relações agrárias. «O ministro dos abastecimentos, Pechekhonov, reclamava pelo seu lado que se metesse fim «às violências e aos actos criminais contra os proprietários de terras». O governo de salvação da revolução recomendava-se, antes de tudo, como um governo de salvação para os proprietários de terras. Mas não era somente isso. Um homem de negócios, o engenheiro Paltchinsky, que acumulava as funções de director no ministério do Comércio e da Indústria, funcionário principal dos combustíveis e do metal e o chefe da comissão da defesa nacional, aplicava energicamente a política do capital monopolista. O economista menchevique Tcherevanine queixava-se à comissão económica do soviete de que as felizes iniciativas da democracia quebrava-se diante da sabotagem de Paltchinsky. O ministro da Agricultura, Tchernov, sobre o quem os cadetes tinham acusado de estar ligado aos alemãs, se viu obrigado «para fins de reabilitação» a demitir-se.

No 18 de Julho, o governo, no qual predominavam os socialistas, promulgou um manifesto de dissolução da indócil Dieta finlandesa onde os sociais-democratas estavam em maioria. Numa nota solenemente dirigida aos Aliados por ocasião do terceiro aniversário da declaração de guerra mondial, o governo, não contente de renovar a sua fidelidade ritual, anunciou que teve a felicidade de esmagar o motim provocado pelos agentes inimigos. Documento de vulgaridade nunca visto! Ao mesmo tempo foi publicado uma lei draconiana contra as infracções à disciplina entre os ferroviários. Depois do governo demonstrar a sua maturidade política, Kerensky decidiu enfim responder ao ultimato do partido cadete no sentido que as exigências formuladas por este «não podiam constituir obstáculo à entrada no governo provisório». Esta capitulação disfarçada já não era suficiente para os liberais. Era preciso obrigar os conciliadores a ajoelharem-se. O comité central do partido cadete precisou que a declaração governamental do 8 de Julho, publicada depois as ruptura da coligação – união de lugares comuns democráticos – não era aceitável para ele e... abandonou as conversações.

O ataque era convergente. Os líderes agiam em estreita ligação não somente com os industriais e os diplomatas aliados, mas também com os generais. O comité central da união dos oficiais no Grande Quartel General encontrava-se sob a direcção efectiva do partido cadete. Para intermédio do alto comando, os cadetes pesavam sobre os conciliadores pelo lado mais sensível. No 8 de Julho, o general Kornilov, comandante em chefe da frente sudoeste, deu ordem de disparar sobre soldados que protelavam o fogo das metralhadoras e da artilharia. Apoiado por Savinkov, comissário na frente, antigo chefe da organização terrorista dos socialistas-revolucionários, Kornilov já precedentemente exigido o restabelecimento da pena de morte na frente, ameaçando em caso contrário abandonar por vontade própria o comando. O telegrama secreto surgiu imediatamente na imprensa: Kornilov tinha diligenciado para que fosse conhecido. O generalíssimo Brussilov, o mais circunspecto e evasivo, moralista ao escrever a Kerensky: «As lições da grande revolução francesa que nós esquecemos particularmente lembram-nos portanto imperiosamente... » Essas lições consistiam que os revolucionários franceses, tendo em vão tentado reconstituir o exército «sobre bases humanitárias», associaram-se logo à pena de morte, e que «as suas bandeiras vitoriosas  tinham dado meia volta ao mundo». Além disso, os generais não tinham lido nada do livro da revolução. No 12 de Julho, o governo restabeleceu a pena de morte, «em tempo de guerra, para os militares culpados de certos crimes mais graves». Porém, o general Klembovsky, comandante em chefe da frente do norte, escrevia três dias mais tarde:«A experiência mostrou que os contingentes aos quais estavam pertenciam numerosas forças do complemento tornaram-se absolutamente incapazes de combater. O exército não pode ser saudável se a fonte dos seus reforços está podre.» A fonte corrompida dos reforços, era o povo russo.

No 16 de Julho, Kerensky convocou para o Grand Quartel General uma conferência dos grandes chefes de guerra com a participação de Terechtchenko e de Savinkov. Kornilov estava ausente: o recuo na sua frente atingia o auge e não parou senão alguns dias depois, quando os próprios alemãs suspenderam o avanço na antiga fronteira da Rússia. Os nomes dos participantes na conferência: Brussilov, Alexeiev, Russky, Klembovsky, Denikine, Romanovsky, soaram como um eco numa época precipitada num abismo. Durante quatro meses, os grandes generais sentiram-se meio mortos. Agora ressuscitavam e, considerando o ministro presidente como a incarnação da revolução que os tinha molestados, infligiram-lhe impunemente severas humilhações.

Segundo os dados do Grande Quartel General, os exércitos da frente Sudoeste, entre o 18 de Junho e o o 6 de Julho, tinham perdido cerca de cinquenta e seis mil homens. Insignificantes sacrifícios na escala da guerra! Mas duas insurreições, as de Fevereiro e a de Outubro, custaram muito menos caro. O que deu a ofensiva dos liberais e dos conciliadores, senão mortos, devastações e calamidades ? Os transtornos sociais de 1917 modificaram a face da sexta parte do mundo e abriram à humanidade novas possibilidades. As crueldades e os horrores da revolução, que não queremos nem negar nem atenuar, não caem do céu: elas são inseparáveis de todo o desenvolvimento histórico.

Brussilov, relatando os resultados da ofensiva empreendida um mês antes, declarava: «derrota completa». A causa era que «os chefes, desde do simples capitão até ao generalíssimo, não tinham autoridade». Como e porquê a tinham perdido, ele não diz. No que diz respeito às operações ulteriores, «não podemos prepará-las antes da primavera». Insistindo com os outros sobre as medidas de repressão, Klembovsky exprimia logo as suas dúvidas sobre a sua eficácia. «Pena de morte ? - Poder-se-à executar divisões inteiras ? Levá-las a julgamento ? - Então metade do exército encontrar-se-à na Sibéria... » O chefe do estado-maior general relatava: «Cinco regimentos da guarnição de Petrogrado foram dissolvidos. Os instigadores levados à justiça... No total cerca de noventa mil homens serão evacuados de Petrogrado.» Esta medida foi adoptada com satisfação. Ninguém pensava em perguntar que consequências teria a evacuação da guarnição de Petrogrado.

Os comités ? Dizia Alexeiev. «É indispensável suprimi-los... A história militar, que conta milhares de anos estabeleceu as suas leis. Nós quisemos violá-las e sofremos um fiasco.» Este homem entendia por «leis da história» o regulamento do serviço de campanha. «Por detrás das antigas bandeiras – dizia Russky, com um tom de vaidade – os homens caminhavam atrás de uma coisa sagrada sabiam morrer. Mas o que nos trouxeram as bandeiras vermelhas ? Isto, que as tropas, desde então, se rendiam inteiramente por corpos do exército.» O obsoleto general tinha esquecido como ele próprio, em Agosto de 1915, tinha feito um relatório ao conselho de ministros: «As exigências contemporâneas da técnica militar estão acima das nossas forças; em todo o caso, nós não nos podemos medir com os alemãs.» Klembovsky sublinhava malignamente que o exército tinha sido destruído na verdade não pelos bolcheviques mas «por outros» que tinham instituído uma nefasta legislação militar, «por homens que não compreendiam o género de vida e as condições de existência de um exército». Era uma alusão directa a Kerensky. Denikine atacava os ministros ainda mais resolutamente: «Vocês lançaram na lama as nossas gloriosas bandeiras de combate, serão vós quem as recolherão se tiverem uma consciência... » Mas Kerensky ? Suspeito de falta de consciência, agradece humildemente o guerreiro bruto de ter «exprimido abertamente e e sinceramente a sua opinião». A declaração dos direitos do soldado ? «Se eu tivesse sido ministro no momento da elaboração , a declaração não teria sido promulgada. Quem primeiro puniu os caçadores siberianos ? Quem primeiro verteu o seu sangue para castigar os rebeldes ? Um homem que eu tinha colocado, um meu comissário.» O ministro dos Assuntos estrangeiros Terechtchenko requebrou-se como forma de consolação: «A nossa ofensiva, mesmo falhada, revelou a confiança dos aliados em nós.» A confiança dos aliados! É por isso que a guerra anda à volta deles ?

«No presente momento, os oficiais são a única defesa da revolução e da liberdade», prega Klembovsky. «Um oficial não é um burguês – explica Brossilov – ele é o verdadeiro proletário.» O general Russky acrescenta: «Os generais também são proletários.» Suprimir os comités, restabelecer o poder dos velhos chefes, expulsar do exército a política, quer dizer a revolução – tal é o programa dos proletários com galões de general. Kerensky nada opõe ao próprio programa; o que o perturba, é somente a questão dos prazos. «No que diz respeito às medidas propostas, - diz ele – penso que o próprio general Denikine não insistirá sobre a sua aplicação imediata... » Os generais eram todos perfeitas mediocridades. Mas eles não podiam impedir-se de dizer: «Aqui está a linguagem que é preciso ter para esses senhores!»

O resultado da conferência foi a mudança no alto comando. O condescendente e mole Brossilov, nomeado no lugar do circunspecto oficial de gabinete Alexeiev, que tinha apresentado objecções à ofensiva, era agora destituído e substituído pelo general Kornilov. A mudança era justificada de diversas maneiras: aos cadetes, prometia-se que Kornilov estabelecesse a disciplina de ferro; aos conciliadores, afirmava-se que Kornilov era amigo dos comités e dos comissários ; o próprio Savinkov garantia os sentimentos republicanos do general. Em resposta a esta alta nominação, Kornilov enviou ao governo um novo ultimato: ele aceitaria o seu posto com as seguintes condições: «Responsabilidade diante da sua própria consciência e diante do povo; proibição de intervir nas nomeações a postos elevados do comando; restabelecimento da pena de morte na retaguarda.»

O primeiro ponto suscitou dificuldades: «responder diante da sua consciência e diante do povo», Kerensky já se tinha encarregado e é um assunto que não tem concorrência. O telegrama de Kornilov foi publicado no jornal liberal o mais difundido. Os políticos prudentes da reacção faziam carretas. O ultimato de Kornilov era o do partido cadete, traduzido somente em linguagem imoderada de um general cossaco. Mas o cálculo de Kornilov era justo: pelo exagero das pretensões e insolência de tom, o ultimato provocou o entusiasmo de todos os inimigos da revolução, e, antes de mais, dos oficiais do quadro. Kerensky ficou transtornado e quis imediatamente destituir Kornilov, mas não encontrou apoio no seu governo. No fim dos fins, a conselho dos seus inspiradores, Kornilov consentiu, numa explicação verbal, reconhecer que entendia por responsabilidade diante do povo a responsabilidade diante do governo provisório. Pelo resto, o ultimato, salvo algumas pequenas reservas, foi aceite. Kornilov tornou-se generalíssimo. Ao mesmo tempo um oficial de engenharia, Filonenko, foi-lhe atribuído como adjunto comissário, e o ex-comissário da frente sudoeste Savinkov foi colocado à cabeça do ministério da Guerra. Um, personagem acidental, arrivista; outro, tendo um grande passado revolucionário; todos os dois, aventureiros realizados, prontos a tudo como Filonenko ou pelo menos a muito como Savinkov. Sua ligação estreita com Kornilov, contribuiu à rápida carreira do general, jogou, como veremos, o seu papel no desenvolvimento ulterior dos acontecimentos.

Os conciliadores cediam sobre toda a linha. Tseretelli repetia: «A coligação, é uma união de salvação.» Nos corredores, as conversações, a despeito da ruptura formal, perseguia o seu caminho. Par acelerar a conclusão, Kerensky, num evidente acordo com os cadetes, recorreu a uma medida puramente teatral, isto é, completamente no espírito da sua política, mas ao mesmo tempo muito eficaz para os objectivos que ele procurava: demitiu-se e abandonou a cidade, abandonando os conciliadores ao desespero. Miliokov disse sobre isso: «Pela sua saída demonstrativa... demonstrou tanto aos seus adversários como aos seus rivais, e aos seus partidários que, não obstante a sua apreciação sobre as suas qualidades pessoais, ele mostrava-se indispensável no momento presente, simplesmente pela situação política que ocupava no meio de dois campos em luta.» A partida tinha sido levada pela lógica do quem-perde-ganha. Os conciliadores precipitaram-se para o «camarada Kerensky», abafando as suas maldições, com francas suplicações. Dos dois lados, cadetes e socialistas, sem dificuldades, impuseram ao gabinete decapitado a resolução de desistir, ao confiar a Kerensky a tarefa de reconstituir um governo à sua vontade.

Para intimidar definitivamente os membros dos comités executivos já suficientemente amedrontados, enviaram-lhes as últimas informações sobre a situação que piora na frente. Os alemãs empurram as tropas russas, os liberais empurram Kerensky, este empurra os conciliadores. As fracções dos mencheviques e dos socialistas-revolucionários esperam toda a noite do 23 ao 24 de Julho, aborrecendo-se na sua impotência. No fim dos fins, os comités executivos, por uma maioria de cento e quarenta e sete votos contra quarenta e seis, diante de quarenta e duas abstenções – oposição nunca vista! - aprovam que o poder seja remetido a Kerensky sem condições e sem limites. No congresso dos cadetes, que teve lugar ao mesmo tempo, vozes surgiram para derrubar Kerensky, mas Miliokov meteu no seu lugar os impacientes, propondo limitar-se por momento a uma simples pressão. Isso não significa que Miliokov tivesse ilusões sobre Kerensky. Mas ele via nele um ponto de aplicação para as forças das classes possuidoras. O governo tinha-se desembaraçado dos sovietes, ele não teria qualquer dificuldade a se desembaraçar de Kerensky.

Entretanto, os deuses da coligação continuavam a ter sede. A ordem de prender Lenine precedeu a formação do governo transitório do 7 de Julho. Agora era necessário assinalar com um acto de firmeza o renascimento da coligação. Desde do 13 de Julho apareceu no jornal de Gorki – a imprensa bolchevique já não existia – uma carta aberta de Trotsky ao governo provisório. A carta dizia: «Vocês não podem ter nenhum motivo lógico de me excluir do decreto em virtude do qual os camaradas Lenine, Zinoviev e Kamenev são alvo de um mandato de captura. No que diz respeito ao lado político do assunto, vocês não podem ter motivos em duvidar que eu sou um adversário da política geral do governo provisório tão irreconciliável como os camaradas acima nomeados.» Na noite onde se constituía o novo governo, Trotsky e Lunatcharsky foram presos em Petrogrado, enquanto que na frente prendiam o alferes Krylenko, futuro comandante em chefe dos bolchevique.

O governo que nasceu após uma crise de três semanas tinha um ar esquelético. Compunha-se de personalidades de segunda e terceira ordem, seleccionadas segundo o principio do mal menor. O vice-presidente era o engenheiro Nekrassov, cadete de esquerda, que, no 27 de Julho, tinha proposto, para o esmagamento da revolução, confiar o poder a um dos generais do czar. O escritor Prokopovitch, sem partido e sem personalidade, domiciliado numa faixa entre os cadetes e os mencheviques, tornou-se ministro da Indústria e do comércio. O antigo procurador, depois advogado radical, Zarudny, filho do ministro «liberal» de Alexandre II, foi chamado para a Justiça. O presidente do comité executivo camponês, Avksentiev, obteve a pasta de ministro do Interior. O menchevique Skobelev continuou ministro do Trabalho, o socialista populista Pechekhonov ministro dos Abastecimentos.

Do lado dos liberais entraram no governo figuras tão secundárias, não tendo desempenhado nem antes nem depois papéis dirigentes. No posto de ministro da Agricultura voltou inesperadamente a Tchernov: nos quatro dias que decorreram entre a sua demissão ea nova nominação, ele teve tempo de se reabilitar. Na sua História, Miliokov notou impassivelmente que o carácter das relações de Tchernov com as autoridade alemãs «não tinham sido esclarecidas; é possível – acrescenta ele que as indicações do contra-espionagem russa assim como as suspeitas de Kerensky, de Terechtchenko e de outros em relação a isto tivessem ido demasiado longe». A reintegração de Tchernov nas funções de ministro da agricultura não era mais do que um tributo ao prestígio do partido dirigente dos socialistas-revolucionários no qual Tchernov, aliás, pedia cada vez mais influência. Em contrapartida, Tseretelli teve a cautela de ficar fora do governo : em Maio, consideravam que ele seria útil à revolução no seio do governo; agora ele estava disposto a ser útil ao governo no seio do soviete. A partir daí, Tseretelli preencheu eficazmente as obrigações de um comissário da burguesia no sistema dos sovietes. «Se os interesses do país eram contrariados pela coligação – dizia-se na sessão do soviete de Petrogrado – o nosso dever seria convidar os nossos camaradas a sair do governo.» Já não se tratava de eliminar, depois de esgotamento, os liberais, como Dan tinha prometido outrora, mas, sentido-se no fim, de abandonar em tempo devido o leme. Tseretelli preparava a entrega do poder total à burguesia.

Na primeira coligação, formada a 6 de Maio, os socialistas estavam em minoria; mas eram de facto os mestres da situação; no governo do 24 de Julho, os socialistas estavam em maioria, mas eram a sombra dos liberais... «Apesar da pequena preponderância dos socialistas – confessa Miliokov – a predominância efectiva no governo pertencia incontestavelmente aos partidários convencidos da democracia burguesa.» Seria mais exacto dizer: da propriedade burguesa. Quanto à democracia, o assunto apresentava-se menos claramente. No mesmo espírito, ainda se com um argumento inesperado, o ministro Pechekhonov comparava a coligação de Julho à de Maio: em Maio, a burguesia tinha necessidade do apoio da esquerda; agora, sob a ameaça de uma contra-revolução, o apoio da direita nos é indispensável; «mais atraímos as forças de direita, menos restam dessas forças para atacar o poder». Formula incomparável de estratégia política: para levantar o cerco da fortaleza, melhor será abrir a grande porta. Tal era a formula da nova coligação.

A reacção tomava a ofensiva, a democracia batia em retirada. As classes e os grupos que a revolução tinham afugentado, nos primeiros tempos, levantavam a cabeça. Os interesses que, na véspera, se dissimulavam ainda, declarava-se abertamente hoje. Os negociantes e os especuladores reclamavam a exterminação dos bolcheviques e a liberdade do comércio; levantavam a voz contra todas as limitações do tráfico, mesmo contra as que tinham sido estabelecidas no tempo do czar. Os serviços de abastecimento que tinham tentado lutar contra a especulação eram declaradas culpadas da falta de produtos alimentares. Desses serviços, o ódio projectava-se contra os sovietes. O economista menchevique Gromann declarava que a campanha dos comerciantes «se tinha particularmente intensificada após os acontecimentos dos 3-4 de Julho». Os sovietes eram tidos como responsáveis das derrotas, da vida cara e dos assaltos nocturnos.

Preocupado pelas maquinações monárquicas e temendo uma explosão pelo choque do regresso da esquerda, o governo expediu, no primeiro de Julho, Nicolau Romanov, com a sua família, para Tobolsk. No dia seguinte foi proibido o novo jornal dos bolcheviques Rabotchi I Soldat (Operário e soldado). Por todo o lado tomava-se conhecimento da prisões em massa dos comités do exército. Os bolcheviques não puderam, no fim de Julho reunir o seu congresso senão parcialmente de forma clandestina. Os congressos do exército eram proibidos. E começaram a juntarem-se os que, antes, tinham-se refugiado em suas casas: proprietários de terras, comerciantes e industriais, chefes dos cossacos, o clero, cavaleiros de São Jorge. Suas vozes eram formavam-se numa só, e se diferenciavam pelo grau de insolência. O concerto era dirigido indiscutivelmente, embora nem sempre abertamente, pelo partido cadete.

No congresso do comércio e da indústria que reuniu, no principio do mês de Agosto, cerca de trezentos representantes das mais importantes organizações da Bolsa e das empresas, o discurso/programa foi pronunciado pelo rei do textil, Riabuchinsky, que não se escondia. «O governo provisório só tinha uma aparência de poder... De facto instalou-se aí uma banda de charlatães da política... O governo aumenta os impostos, em primeiro lugar, e rigorosamente, a classe dos industriais e comerciantes... É racional dar dinheiro ao gastador ? Não seria melhor, para a salvação da pátria, tutelar os que desperdiçam ?... » E, enfim, para concluir, esta ameaça: «A mão esquelética da fome e da miséria popular apertará as goelas aos amigos do povo!» A frase sobre a mão esquelética da fome, dava o sentido geral à política dos lock-out, inseria-se desde então no vocabulário político da revolução. Ela custou caro aos capitalistas.

Em Petrogrado teve lugar o congresso dos comissários provinciais. Os agentes do governo provisório que, segundo a primeira concepção, deviam-se erguer à volta dele como uma muralha, juntaram-se, na realidade contra ele e, sob a direcção do centro cadete, passaram pela espada o infeliz ministro do Interior Avksentiev. «Não se pode sentar entre duas cadeiras: o governo deve governar e não ser uma marioneta.» Os conciliadores procuravam justificar-se e protestavam em voz baixa, temendo que a sua querela com os aliados fosse ouvida pelos bolcheviques. O ministro socialista saiu escaldado do congresso.

A imprensa dos socialistas-revolucionários e dos mencheviques tomou pouco a pouco a linguagem das lamentações e das recriminações. Nas suas colunas começaram ser publicadas revelações inesperadas. No 6 de Agosto, o jornal socialista-revolucionário Dielo Naroda (A causa do povo) publicou uma carta de um grupo de socialistas-revolucionários de esquerda, enviada para a frente: signatários «foram impressionados pelo papel interpretado pelos junkers... Prática regular de sevícias, participação  dos junkers nas expedições punitivas, acompanhadas de envio diante do pelotão de fuzilamento sem julgamento nem instrução, sob simples ordem de um comandante de batalhão... Os soldados exasperados começaram a disparar, emboscados, sobre certos junkers... » Foi assim que se apresentava a obra de saneamento do exército.

A reacção progressista, o governo recuava. No 7 de Agosto foram libertados os Cem Negros mais famosos, complices dos círculos rasputinos e dos progroms antisemitas. Os bolcheviques continuavam na prisão de Kresty, onde se anunciava a greve de fome dos operários, soldados e marinheiros detidos. A secção operária do soviete de Petrogrado enviou, nesse dia, uma mensagem de felicitações a Trotsky, a Lunatcharsky, a Kollontai e aos outros prisioneiros.

Industriais, comissários provinciais, o congresso dos cossacos de Novotcherkask, a imprensa patriota, generais, liberais – todos consideravam que era absolutamente impossível proceder às eleições para a assembleia constituinte em Setembro; melhor seria diferi-las até ao fim da guerra. Porém, quanto a isso, o governo não podia decidir. Mas o compromisso foi encontrado: a convocação da assembleia constituinte foi marcada para o 28 de Setembro. Não foi sem aborrecimento que os cadetes aceitaram o prazo: eles contavam firmemente que, nos três meses que restavam, deviam produzir-se acontecimentos decisivos que transpunham a questão da própria assembleia constituinte sobre um outro plano. Essas esperanças ligavam-se cada vez mais abertamente ao nome de Kornilov.

O reclame feito à volta do novo «generalíssimo» situou-se doravante no centro da política burguesa. A biografia do «primeiro generalíssimo popular» foi propagada por um número formidável de exemplares, com a ajuda activa do Grande Quartel General. Quando Savinkov, como ministro da Guerra, dizia aos jornalistas: «Nós consideramos», o «nós» significava não Savinkov e Kerensky, mas Savinkov e Kornilov. O rumor levantado à volta de Kornilov obrigou Kerensky a manter-se vigilante. Circulavam boatos ainda mais persistentes sobre uma conspiração no centro da qual se mantinha o comité da união dos oficiais junto do Grande Quartel General. Uma entrevista pessoal do chefe do governo e do chefe do exército, no início do mês de Agosto, relançou as suas antipatias recíprocas. «Este leviano, esse baboso quer comandar-me ?» perguntava-se Kornilov, «Esse cossaco inculto e limitado dispõe-se  a salvar a Rússia ? Pensaria forçosamente Kerensky. Cada um deles tinha razão à sua maneira. O programa de Kornilov, compreendendo a militarização das fábricas e dos caminhos de ferro, a extensão da pena de morte na retaguarda, e a subordinação do Grande Quartel General da região militar de Petrogrado com a guarnição da capital, tinha sido entretanto conhecido dos círculos conciliadores. Por detrás do programa oficial, adivinhava-se sem dificuldades outro, não dito mas tanto mais eficaz. A imprensa de esquerda deu o alarme. O comité executivo propunha um nova candidatura ao posto de generalíssimo na pessoa do general Tcheremissov. Começaram a falar abertamente da próxima demissão de Kornilov. A reacção foi emocionante.

No 6 de Agosto, o soviete da união das doze formações cossacas, a do Don, do Koban, do Terek, etc., decidiu, não sem a participação de Savinkov, de trazer «alta e firmemente» ao conhecimento do governo e do povo que declinou qualquer responsabilidade pela conduta das tropas cossacas na frente e na retaguarda no caso onde o general Kornilov, «herói e chefe», fosse destituído. A conferência da união dos cavaleiros de São Jorge foi ainda mais ameaçadora para o governo: se Kornilov é destituído, a união dará imediatamente «como grito de guerra a todos os cavaleiros de São Jorge ordem de agir em comum com os cossacos». Nem um general protestou contra esta infracção à disciplina, e a imprensa da ordem exprimiu com entusiasmo as decisões que faltavam a uma ameaça de guerra civil. O comité principal da união dos oficiais do exército e da frota mandou um telegrama no qual dizia colocar todas as suas esperanças «no muito amado chefe, o general Kornilov», pedindo «a todas as pessoas honestas» para manifestarem a este a sua confiança. A conferência dos «homens públicos» da direita, reunido-se nesses dias em Moscovo, enviou a Kornilov um telegrama no qual ela juntava a sua voz a dos oficiais, dos cavaleiros de São Jorge e dos cossacos: «Toda a Rússia pensante olha-os com esperança e fé.» Não se podia falar mais claramente.

Na conferência tomavam lugar os industriais e os banqueiros como Riabochinsky e Tretiakov, os generais Alexieiev, e Brossilov, representantes do clero e dos professores, os líderes do partido cadete, Miliokov à cabeça. Figuravam os representantes de uma «união camponesa» meio fictícia que devia assegurar aos cadetes com o apoio na esferas superiores do campesinato. Na cadeira do presidente erguia-se a figura monumental de Rodzianko, que agradeceu a delegação de um regimento cossaco por ter reprimido o movimento bolchevique. A candidatura de Kornilov no papel de salvador do país tinha sido abertamente colocada pelos representantes mais autorizados das classes possuidoras e instruidas da Rússia. Após tal preparação, o generalíssimo apresentou-se mais uma vez no gabinete do ministro da Guerra, para conversações sobre o programa que ele apresentou para a salvação do país. « Desde da sua chegada a Petrogrado – diz o general Lumomsky, chefe do estado-maior de Kornilov, relatando esta visita – o generalíssimo foi ao palácio de Inverno, acompanhado de cossacos de Tek, com duas metralhadoras. Logo que o general Kornilov entrou no palácio, essas metralhadoras foram descarregadas do automóvel, e os cossacos do Tek montaram a guarda diante da porta para vir, em caso de necessidade, em socorro do generalíssimo. «Supunha-se que ele poderia necessitar desta ajuda contra o ministro presidente.» As metralhadores do Tek eram as armas da burguesia apontadas aos conciliadores que se jogavam às suas pernas. Assim se apresentava o governo de salvação, independente dos sovietes!

Imediatamente após a visita de Kornilov, Kokochkine, membro do governo provisório, declarou a Kerensky que os cadetes se demitiam «se o programa de Kornivov não fosse aceite nesse mesmo dia». Mesmo sem metralhadoras, os cadetes mantinham sobre o governo a linguagem peremptória de Kornilov. E isso dava resultado. O governo provisório apressou-se a examinar o relatório do generalíssimo e admitiu em principio a possibilidade de aplicar as medidas propostas por ele, «inclusivamente a pena de morte na retaguarda».

Na mobilização das forças da reacção inseriu-se naturalmente o concilio pan-russo da Igreja que, oficialmente, tinha por objectivo concretizar a emancipação da Igreja ortodoxa até aí captiva da burocracia, mas no fundo devia proteger a Igreja contra a revolução. Depois da abolição da monarquia, a Igreja tinha perdido o seu chefe oficial. Suas relações com o Estado, multi-secular defensor e protector, continuavam em suspense. Na realidade, o São Sínodo, num mandamento do 9 de Março, apressou-se a benzer a revolução realizada e tinha convidado o povo «a confiar no governo provisório». Porém, o futuro estava cheio de ameaças. O governo mantinha-se silencioso sobre a questão da Igreja como sobre outros problemas. O clero tinha completamente perdido a cabeça. De tempos em tempos, num ponto qualquer da periferia, da cidade de Verny na fronteira com a China, de uma paróquia local, chegou um telegrama assegurando ao príncipe Lvov que a sua política respondia inteiramente aos mandamentos do Evangelho. Acomodando-se da insurreição, a Igreja não ousava se imiscuir nos acontecimentos, isso sentia-se mais nitidamente que na frente, onde a influência da Igreja caiu ao mesmo tempo que a disciplina do medo. Denikine confessou-o:

«Se o corpo de oficiais luta pelos seus direitos de comando e sua autoridade militar, a voz dos pastores calou-se desde dos primeiros dias da revolução e cessaram de participar de qualquer modo na vida activa das tropas.» Os congressos do clero no Grande Quartel General e nos estados-maiores dos exércitos passaram completamente despercebidos.

O concílio, que foi antes de tudo um assunto de casta para o próprio clero, sobretudo pelo seu andar superior, não ficou todavia fechado nos quadros da burocracia eclesiástica: a sociedade liberal agarrou-se aí com todas as suas forças. O partido cadete, não tendo encontrado no povo nenhuma raíz política, sonhou que a Igreja, após a reforma, serviria de intermediário junto das massas. Na preparação do concílio, um papel activo foi desempenhado ao lado e diante dos príncipes da Igreja, pelos políticos laicos de diversas tendências, tais como o príncipe Trubetskoi, o conte Olsufiev, Rodzianko, Samarine, professores e escritores liberais. O partido cadete tentou em vão criar à volta do concílio um ambiente de reforma eclesiástica, temendo, ao mesmo tempo, abalar, por um movimento imprudente, o edifício carunchoso. Não se tratava de separar a Igreja do Estado, nem entre o clero, nem entre os reformadores laicos. Os príncipes da Igreja estavam naturalmente inclinados em enfraquecer o controlo do Estado sobre os assuntos interiores, mas na condition que o Estado continuasse não somente a proteger a sua situação privilegiada, sua terras e rendimentos mas continuasse também a cobrir a parte do leão de suas despesas. Pelo seu lado, a burguesia liberal estava disposta a garantir à ortodoxia a manutenção da sua situação de Igreja dominante, mas na condição que ela se prestasse a servir de uma nova maneira   os interesses das classes dominantes no seio das massas.

Mas aqui começavam as grandes dificuldade. O mesmo Denikine nota com consternação que a revolução russa «não cria um só movimento religioso popular mais ou menos perceptível». Seria mais exacto dizer que à medida que as novas camadas populares fossem levada pela revolução, elas voltariam quase automaticamente as costas à Igreja, mesmo se antes elas tinham estado ligadas a esta. Nos campos, certos padres podiam ainda ter uma influência pessoa dependente da sua atitude em relação à questão agrária. Nas cidades, ninguém, não somente nos meios operários, mas também na pequena burguesia, não tinha ideia de se dirigir ao clero para obter solução dos problemas levantados pela revolução. A preparação do concílio encontrou a inteira indiferença do povo. Os interesses e as paixões das massas exprimiam-se na linguagem das palavras de ordem socialistas, e não nos textos dos teólogos. A Rússia atrasada seguia a sua história queimando etapas: ela se viu forçada a saltar não somente a época da Reforma, mas também a do parlamentarismo burguês.

Concebido durante os meses de flux da revolução, o concílio coincidiu com as semanas do seu refluxo. Isso acentuou ainda mais a sua cor reaccionária. A composição do concílio, o círculo dos problemas abordados por ele, assim como a cerimónia da sua abertura – tudo testemunhava modificações radicais na atitude das diferentes classes em relação à Igreja. O ofício divino, na catedral da Assunção, ao lado de Rodzianko e dos cadetes, encontravam-se presentes Kerensky e Avksentiev. O presidente da câmara de Moscovo, Rodnev, socialista-revolucionário, declarou no seu discurso de abertura:  «Tanto que o povo russo viverá, a fé cristã estará na sua alma.» Ainda na véspera, essa gente considerava-se como descendentes directos do educador russo Tchemychevsky.

O concílio enviou em todas as direcções apelos impressos, reclamava um poder forte, denunciava os bolcheviques e, com o mesmo tom que o ministro do Trabalho Skobelev, suplicava «os operários a trabalhar sem poupar forças e de subordinar as suas reivindicações pelo bem da pátria.» Mas o concílio reservou uma atenção particular à questão agrária. Os metropolitas e os bispos estavam tão assustados e exasperados como os proprietários nobres pelo alcance do movimento agrário, e suas apreensões sobre as terras da Igreja e dos mosteiros que lhes ocupava o espírito mais violentamente que os problemas da democratização da paróquias. Sob ameaça da cólera divina e da excomunhão, um mandamento do concílio exige «a restituição às igrejas, aos conventos, às paróquias e aos particulares das terras, dos bosques e das colheitas que foram pilhadas». Foi assim que convinha chamar a voz clamando do deserto! O concílio arrasta de semana em semana e não chega ao apogeu da sua obra, o restabelecimento do patriarcado, abolido por Pedro o Grande duzentos anos antes, senão após a revolução de Outubro.

No fim de Julho, o governo decidiu convocar para o 13 de Agosto, em Moscovo, uma conferência de Estado, compreendendo todas as classes e instituições públicas do país. A composição da conferência foi marcada pelo próprio governo. Em completa contradição com os resultados de todas as eleições democráticas que tinham tido lugar no país, nenhuma foi exceptuada, o governo tomou as medias para assegurar antecipadamente à assembleia um número igual de representantes das classes possuidoras e do povo. Foi somente na base deste equilíbrio artificial que o governo de salvação da revolução esperava ainda salvar-se a sim próprio. Esses estados-gerais não tinham definido qualquer direito. «La conferência..., não obtinha – segundo Miliokov – mais que uma voz consultiva»: as classes possuidoras queriam dar à democracia um exemplo de abnegação, para logo se amparar, tanto mais seguramente, da totalidade do poder. Apresentaram como objectivo oficial da conferência «a união do poder do Estado com todas as forças organizadas do país». A imprensa falava da necessidade de estreitar, de reconciliar, de estimular, de exortar os espíritos. Noutros termos uns não desejavam dizer claramente com qual objectivo, na verdade, reunia-se a conferência. Dar às coisas o seu nome tornou-se ainda aqui uma tarefa dos bolcheviques.


Inclusão 06/06/2011