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Primeira Edição: revista Kultur (Rio de Janeiro), abril de 1904. Polémica com Elysio de Carvalho.
Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/neno-vasco/obras-de-neno-vasco/individualismocomunismo-carta-dum-classificado/
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Meu caro Elysio:
Li o teu artigo O Movimento Anarquista no Brasil e envio-te estas considerações relativas sobretudo ao que me diz respeito. Passo por cima de vários pontos secundários e noto apenas, para começar, que quem fundou O Amigo do Povo, não fui eu, mas dois camaradas italianos, ambos ausentes de S. Paulo neste momento. E faço isto não só pelo prazer de retificar a história… mas ainda porque talvez valha a pena consignar que eu não teria escolhido semelhante título para a folha. Não sei… mas Amigo do Povo cheira-me a qualquer coisa de… democrático. É uma tabuleta manhosa.
Malditas palavras! De tal modo lhes embrulharam o sentido que já ninguém se entende. Cada uma delas recebe um sentido especial dentro de cada cérebro; e uma pessoa vê-se nos maiores embaraços para se explicar claramente. Cada palavra tem escondida uma armadilha: um vocabulário é um terreno alagadiço, um pântano. A cada passo se fica atolado.
Grandes polémicas, furibundos combates se travam em torno das palavras. Parecem grandes questões filosóficas, científicas, morais, sociais… — que sei eu — e são simples caturrices de puristas, não “a cavalo nos princípios”, mas escarrapachados em cima do dicionário. O léxicon tem feito derramar rios de sangue e tem produzido milhares de enxaquecas…
Muitos indivíduos revoltam-se contra o culto das palavras e das ideias, que formam como que personalidades colocadas fora e acima de nós. E sem notar que caem nesse mesmo culto, desatam a combater fantasmas, como D. Quixote combatia moinhos de vento. Eu vejo que tu empregas certa palavra à qual eu jurei guerra de morte. Não trato de saber em que sentido a empregas: às vezes tu não mo dizes; vou combatê-la dando-lhe um significado que me é próprio. Calo a vizeira, enristo a lança, esporeio o ginete… Começa a briga… Grande pancadaria, poeira, lampejos, cambalhotas e cá vamos nós para o céu dependurados nas asas do moinho… Descobre-se afinal que aquilo que tu chamavas “um pau” é para mim “uma pedra”. Abraços de conciliação. Trémolo na orquestra. Cai o pano.
Ali está um sujeito que investe furioso contra um “desaforado gigante”, uma palavra: julgas que vai desfazê-la em cacos? Não! Vai simplesmente dar-lhe outra acepção.
Dever! Abaixo o dever! O homem não tem deveres: tem forças, que se manifestam necessariamente, tem necessidades. Dever é apenas um poder… Bom, seja: usemos o poder, que era o que eu queria significar…
Direito! Abaixo o direito! Mas… abaixo o direito como coisa sagrada, como criatura do homem posta acima do homem: viva o direito-força; porque eu só tenho o direito de fazer o que posso fazer. — Mas justamente! Eu estava mesmo dizendo a este meu amigo que ele só teria os direitos que pudesse tomar; os dos códigos, os que estão inscritos, prometidos e permitidos… são histórias…
Liberdade! Outra mentira, outro ídolo. A liberdade não é mais do que a possibilidade de realizar uma vontade. — Mas é isso mesmo! Nós chamamos liberdade a essa possibilidade, a essa capacidade, e não a um ídolo, a uma palavra, a uma simples declaração…
Ainda bem… Assim, quem se sentir de acordo com o autor, declara-o logo, dizendo em que sentido empregava as palavras atacadas. Eis a vantagem das definições… Descobrem-se afinidades ignoradas.
Guerra às palavras fantasmas, aos ídolos, às personalidades de respeito, às criaturas nossas que nos dominam. Ideias e palavras não são coisas sagradas, respeitáveis: são meior, são instrumentos nossos. Em vez de permitirmos que nos dominem, dominemo-las nós. Que a nossa sombra nos não assuste!…
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Dez mil comunistas! E eu no meio de tanta gente… Uff! deixem-me sair, deem-me licença, meus senhores. Tenho sempre evitado os ajuntamentos: sofro de falta de ar, e o calor e a poeira incomodam-se.
Elysio, alargaste muito o comunismo, e receio bem ainda que possas entendê-lo dum modo tal que eu não tenha lá entrada.
Por outro lado, observo que, sem muita violência, podias encaixar-me entre os individualistas, como tu o defines. O melhor seria talvez ter-me deixado desclassificado, pairando no vago, no indeciso, nem sim nem não, antes pelo contrário, numa indeterminação de nebulosa, em pleno céu azul, sob o sol claro…
Eu considero a anarquia sobretudo como um método: a iniciativa individual e a livre cooperação. A anarquia não é um presente, uma dádiva, que se espere do senhor, do governo, do parlamento, duma solidariedade abstrata, duma força fora do indivíduo, duma soma sem parcelas: a anarquia toma-se, vive-se, conquista-se.
O indivíduo faz a revolução dentro de si mesmo, perde o respeito, ganha e exerce a sua força, ataca a autoridade, age sem pedir licença, vive sinceramente a sua vida, fazendo caso omisso das leis, exercendo a sua iniciativa, resistindo. É o que pode chamar-se a ação direta, quer individual, quer social.
Mas a ação social é unicamente a soma das iniciativas individuais. Certamente, o indivíduo ganha com a ação social: a sua iniciativa acha aí uma garantia. É por isso mesmo, por egoísmo, que o indivíduo se associa. Em todo o caso não se esqueça que a ação social é em cada momento a soma e só a soma das iniciativas individuais: não é uma existência à parte, não existe de per si.
A transformação será primeiramente individual. A transformação social será a soma das individuais e só valerá o que estas valerem. Uma e outra transformação não se separam no fim de contas: provocam-se, arrastam-se, continuamente, a cada instante. Assim, o patrão, o governo, como tais, nada fazem, nada transformam: não são forças superiores e exteriores à ação social, soma das iniciativas individuais. Os ignorantes é que julgam fazer tudo por obra duma providência, exterior à sua força (Deus, Estado, Patrão).
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Os homens associam-se por igoismo, que provoca todos os seus atos. O bem-estar individual, o gozo da vida — isto é, o egoísmo, ou como dizem alguns para evitar equívocos, o egotismo, tal é a lei suprema do indivíduo. A associação, a sociedade, o grupo, não são personalidades, seres vivos, entidades abstratas, às quais é preciso que o indivíduo se sacrifique. São criaturas dele, são seus instrumentos de felicidade. Uma felicidade social independente duma felicidade individual é uma invenção de parasitas, que querem viver à custa dos sacrificados. Só o indivíduo é uma entidade real.
A associação não é um verdadeiro instrumento de bem-estar individual — ou não é uma verdadeira associação, como queiram —, não satisfaz os egoísmos que a fundaram, quando assenta sobre o exclusivismo e a abnegação, isto é, quando há sócios que só querem receber (exclusivistas) e outros que consentem em dar apenas (abnegados, altruístas). Nem uns nem outros satisfazem os seus fins: o desequilíbrio nasce do choque violento dos egoísmos. Ambos os tipos se assemelham. Na associação falta nesse caso a equivalência, a solidariedade — livre acordo, livre cooperação dos egoísmos; falta a cooperação e a coordenação voluntárias, conscientes para um fim comum.
Tu dizes no teu artigo “a livre expansão das energias e das paixões humanas basta para assegurar uma vida harmónica entre os homens”. Ou eu não compreendo bem a frase, ou chegamos finalmente a um ponto de discordância. Mas nota primeiramente que, a meu ver, essa opinião não é característica de nenhuma das duas escolas, porque me parece haver comunistas que a defendam e individualistas, mais ou menos stirnerianos, que a repudiam, como eu….
Eu preferiria inverter os termos: uma vida harmónica (mas voluntária) entre os homens asseguraria a livre expansão das energias e das paixões humanas, cada vez maior liberdade (possibilidade) individual. Lá harmonista, providencialista, é que eu não sou…. A natureza parece-me tão boa deusa como os outros deuses. Essa personalidade de respeito, procuro dominá-la e para isso, sendo necessário, combino-me com os outros indivíduos, que aceitem livremente a combinação.
Não se trata de “organização social obrigatória”! Onde diabo estará o comunista libertário que pretende semelhante coisa? Trata-se da livre cooperação, da associação dos egoísmos flexível, instável, voluntária, sem compromissos para o indivíduo, que é o criador da associação em seu proveito próprio e portanto fica enquanto isso lhe apraz.
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Pois que pretendo uma cooperação voluntária, afim de tirar dela a maior soma possível de bem-estar individual, eu tenho um projeto, faço uma proposta, procurando convencer os indivíduos, meus equivalentes, de que é a melhor forma de satisfazer os egoísmos. Mas eu não a imponho, essa proposta — o comunismo — mesmo porque uma imposição ser-me-ia prejudicial. Primeiro que tudo a iniciativa individual e o livre acordo — a anarquia. Se com estas forças derrubássemos a autoridade, a elas seria ainda confiada a vida social….
E se eu sou comunista, não é porque penso que o comunismo vem temperar o anarquismo, ou o individualismo. Pelo contrário: é porque imagino que vem garantir a minha liberdade, o meu bem-estar, a minha iniciativa. Quero o comunismo, porque entendo que garante a liberdade (possibilidade) e a igualdade de condições (não identidade ou uniformidade, como tu e Mas y Pi pareceis supor), em suma, a solidariedade — união entre equivalentes, apoio mútuo para a luta pela vida.
Stirner diz: “Uniões entre indivíduos multiplicarão os meios de ação de cada um e salvaguardarão a sua propriedade ameaçada”. (É o que eu chamo solidariedade). “A propriedade não deve e não pode ser abolida; o que é preciso é arrancá-la aos fantasmas para fazer dela a minha propriedade. Então desvanecer-se-á esta ilusão de que não sou autorizado a tomar tudo aquilo de que tenho necessidade.” Isto, para mim, pode muito bem dizer-se do comunismo moderno: de cada um segundo as suas forças, a cada um segundo as suas necessidades, ou antes: de cada um e a cada um segundo a sua vontade. Ou ainda: faze o que quiseres (ou o que puderes).
Stirner atacou o comunismo, mas não o entendeu a nosso modo: mas o mesmo fez à anarquia, nome que ele dava ao liberalismo político. Como adotar esta palavra (com outro sentido) e repelir aquela, com outro sentido também?! Verdade é que alguns seguidores de Stirner (deixa passar) começam a dizer: é um erro opor o comunismo ao individualismo.
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Dizes que a causa da miséria social não é a propriedade individual mas o facto de estar a propriedade monopolizada e nem todos poderem ser proprietários. Mas nós chamamos propriedade individual à propriedade monopolizada. E é da desigualdade económica, isto é, desse monopólio, do facto de nem todos poderem ser proprietários, que nós fazemos derivar a miséria!
Mas fizeste bem em definir a propriedade — a posse, o uso, o gozo. Para nós o proprietário dum pedaço de terra pode deixar de o usar e gozar, de o possuir, e o indivíduo respeita-lhe essa propriedade (domínio e posse). É esse respeito que queremos abolir. Propriedade comum indivisa: todos proprietários para que todos possam possuir, usar e gozar a propriedade. E igualdade não é identidade, mas equivalência, igual possibilidade para cada indivíduo de desenvolver as suas faculdades. A harmonia não está na repetição da mesma nota, na monotonia.
“Atividade económica privada?” E porque não? Achando nisso vantagem o indivíduo….
O que é preciso é que o indivíduo considere a propriedade como útil ao seu bem-estar e não como sagrada; que a não respeite, mas que a possua.
E continuando na linguagem stirneriana: “Querendo apropriar-nos do solo, em vez de deixar a sua vantagem aos proprietários territoriais, unamo-nos, associemo-nos com esse fim e formemos “uma união” que dele se tornará proprietária…. Os “arrebatadores” (expropriadores) formam uma sociedade que podemos imaginar que cresce extendendo-se progressivamente a ponto de acabar por abraçar a humanidade inteira. Mas essa mesma humanidade não passa dum pensamento (um fantasma) e só tem realidade nos indivíduos. E esses indivíduos tomados em massa não usarão menos arbitrariamente da terra e do solo do que o indivíduo isolado, o chamado “proprietário.”
“Aquilo em que todos querem ter quinhão será tirado a esse mesmo indivíduo que o quer ter para si só, e erigido em bem comum. Como bem comum, cada um tem o seu quinhão, e este quinhão será a sua propriedade. É assim que, segundo o nosso velho direito de sucessão, uma casa pertencente a cinco herdeiros é o seu bem comum, indiviso, enquanto só um quinto de rendimento é a propriedade de cada um. A propriedade de que estamos ainda desprovidos será mais bem utilizada nas mãos de nós todos. Unamo-nos pois para cometer esse roubo” (expropriação).
“Mas é bem verdade, como pensam os comunistas, (os de então), que a minha riqueza consiste só no meu trabalho? Não consiste antes naquilo de que sou capaz? A própria sociedade dos trabalhadores é forçada a concordar, porque auxilia os doentes, as crianças, os velhos, em suma, os que são impróprios para o trabalho”.
“É desejável a união para os trabalhos humanos, para que eles não absorvam todo o nosso tempo e todos os nossos esforços como sob o regimen da concorrência. Sob tal ponto de vista o Comunismo é chamado a dar grandes frutos.”
Não estamos longe de nos entendermos. Stirner atacou os comunistas; mas Bakunin fez o mesmo. O comunismo era outro e os anarquistas eram anti-comunistas.
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Quero dizer que todos os comunistas pensam como eu? Ora! Afinal cada um entende a seu modo o comunismo, assim como o individualismo. Vão lá fiar-se em etiquetas!
A mim parece-me que a anarquia veio pôr o indivíduo em frente do rebanho — o indivíduo com as suas forças, as suas necessidades, as suas paixões. Onde só havia a massa — cujo bem era feito pelos políticos, que respondiam ao indivíduo que não tinham vagar para se ocupar dele, já haviam feito muito (murros no peito e berros) pelo povo, pela pátria, pela humanidade — a anarquia veio pôr o indivíduo, com o seu egoísmo, a sua iniciativa. Este estava submergido no mar confuso das cabeças de gado: a anarquia veio pescá-lo, separá-lo.
Há comunistas ainda pouco anarquistas, que só vêem a soma e não as parcelas, e entoam ladainhas à Solidariedade, à Sociedade, à Humanidade, e outras deusas em ade, como sanfona. Mas que tenho eu com isso?
Não me chamo individualista, primeiro porque já cá tenho anarquista e depois… que me importam a mim essas histórias?
Desculpa a prolixidade.