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Primeira Edição: revista A Sementeira – N.º 35 da 1ª série, julho de 1911.
Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/neno-vasco/obras-de-neno-vasco/paulo-berthelot/
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Há quatro anos – estava eu então no Rio de Janeiro – apareceu-nos na redação da Terra Livre, conduzido por um camarada, hoje médico, um tipo curioso de esperantista, com a sua veda stelo no boné, vindo de Montevideu. Era Paulo Berthelot – um parisiense de 27 anos que falava velozmente o esperanto, sabia várias línguas, viajara meio mundo e era conhecido entre os esperantistas por ter colaborado em algumas obras da língua de Zamenhof (entre elas um vocabolário) e também, sob o pseudónimo de Marcelo Verema, na imprensa esperantista e libertária.
E em breve se tornou familiar no nosso meio. A sua despreocupação, o seu desapego ao supérfluo, a sua sobriedade, a sua franqueza, por vezes brutal, a lucidez da sua inteligência, a sua vasta cultura, muito especial em química, botânica e fisiologia, o seu conhecimento da ideia anarquista em todos os seus desenvolvimentos e o encanto da sua conversação, conquistaram-lhe a estima de todos nós e a admiração de muitos estranhos.
O seu apresentante, distinto esperantista como ele e seu amigo íntimo, dizia-me depois convictamente:
– Não se avalia ainda bem entre nós quanto vale este homem. É o homem mais extraordinário, mais completo, de mais largas e variadas capacidades e aptidões que tenho visto de perto. O ideal anarquista tem muito que esperar do seu talento e do seu espírito de iniciativa.
Infelizmente pouca vida faltava ao nosso camarada Berthelot para confirmar esta fácil profecia.
Berthelot pertencia a uma família rica; mas tendo ficado orfão bem cedo, o tutor esbanjara os bens paternos. Um resto que lhe ficara, abandonou-o ele depois a uns parrentes, a uma velha tia, se não me engano. Creio que fazia os seus estudos médicos, quando, anarquista até ao mais profundo do seu ser, abandonou a França para evitar a caserna, onde se julgava sem feitio para uma propaganda e uma luta, que considerava entretanto úteis, dado outro temperamento e outra constituição física.
Viajou então por Espanha, Marrocos, Suiça, Argentina, Uruguai, tendo aprendido o ofício de tipógrafo, de que se servia em caso de necessidade. No Rio de Janeiro foi como tipógrafo que começou, conquistando pouco depois o lugar de professor de francês e esperanto na Academia Berlitz, onde de tal modo se distinguiu que em breve lhe era espontaneamente dada a direção da Escola Berlitz de Petropolis. Este lugar perdeu-o, apesar de toda a consideração que lhe era tributada, pela sua imprudente propaganda antimilitarista num meio tão conservador como aquela cidade, residência de diplomatas e adidos militares.
Passou então um período de crise… até que por fim conseguiu dinheiro para voltar à Europa. Mas na véspera do embarque, uma professora de índios fala-lhe dos costumes, qualidades e docilidade dos seus discípulos selvagens e da fecundidade das terras por eles ocupadas.
E ei-lo que, de acordo com um grupo de amigos, resolve ir por-se em contacto com os selvicolas, estudá-los e estudar os lugares. Quem sabe se não seria possível aproveitar as tendências comunistas dos primitivos, conquistar-lhes o apoio e fundar nas suas fértei regiões uma colónia livre, que podia também ficar aberta aos perseguidos dos regimens de opressão?
Bertholot não conhecia a hesitação nem as delongas. Foi. A princípio acompanharam-no três camaradas; mas dois desistiram da viagem logo nos primeiros dias, pouco depois de transposto S. Paulo. O seu primeiro estabelecimento foi em Leopoldina, Estado do Goiaz, à margem do rio Araguaia, a quinze dias da cidade de S. Paulo. Ali começou a estudar os índios e a aprender-lhes a língua, obtendo um emprego para viver: era inspetor da navegação fluvial.
Meses depois, deixava-o ali o último companheiro; e foi sozinho que ele seguiu a marcha para o norte, em direção ao Pará, escrevendo-me em 5 de agosto de 1910, de Conceição do Araguaia, a sua última carta, a anunciar-me a aproximação da morte. Mais tarde era o desastre confirmado. Em vão eu lhe pedira em longa carta, que regressasse de Leopoldina, em vista dos grandes perigos da empresa!
Na mesma carta, dizia-me estar quase pronto o relatório, mas provavelmente, tendo ele sido acolhido por dominicanos, estes sonegaram aquele escrito que deveria ser notável.
Do muito que dele era legítimo esperar, além de numerosos artigos dispersos por jornais e revistas, não nos deixou senão uma pequena obra prima de propaganda, O Evangelho da Hora, cujo original me veio de Leopoldina com uma carta a explicar-me que era uma «fantasia nascida nestas solidões lúgubres.»
O estilo evangélico, entretanto mais sóbrio e claro que o do Evangelho, só desagrada ao espírito prevenido contra um grande monumento literário por quererem impingi-lo como dogma eterno e imutável.
Demais, quando no fundo não há misticismo, a forma não o tem tampouco. Ora neste opúsculo há ideias nítidas e limpidamente expostas. Cada conceito é expresso em fórmulas sóbrias, recortadas, que o fazem ressaltar fortemente, que o fixam na mente, que o gravam na retina.
Ali a forma fala ao coração e o fundo à inteligência. Atinge-se o cérebro através do sentimento. Não há melhor meio de falar aos simples, aos neófitos. Realizar essas duas condições é, em propaganda, fazer obra prima. Há folhetos que só falam ao sentimento, e são vazios; outros falam à inteligência, mas são áridos e secos, e destinam-se a poucos. Tolstoi diz que a arte verdadeira se dirige a todos; mas se isso é discutível em geral, é lugar comum no terreno da propaganda. E no entanto raramente se alcança este ideal!
O Evangelho da Hora devia sair sem nome do autor; mas morte este, julguei-me no direito de o desatender. E o meu maior desejo é que os camaradas, vendo na sua curta mas bela existência um alto exemplo e no opúsculo, que nos deixou, o fulgor do seu espírito, lhe prestem, ao malogrado propagandista, a única homenagem digna de nós: a difusão incessante daquelas poucas páginas tão lúcidas e tão comoventes.