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Primeira Edição: A Guerra Social (Rio de Janeiro), número 5, 3 de Setembro de 1911.
Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/neno-vasco/obras-de-neno-vasco/os-direitos-adquiridos/
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Sempre que se fala da abolição duma peça inútil e dispendiosa no mecanismo do Estado, dum privilégio ou duma velharia, logo surge, a impedir a reforma ou a neutralizar-lhe os efeitos, a velha história dos «direitos adquiridos».
E é argumento indiscutível e decisivo, ao qual ninguém ousa pôr o mínimo reparo e que parece dispensar todos os outros.
É por exemplo suprimida a realeza; mas mantém-se aos reis destronados uma boa renda – ainda quando tenha havido famosos «adiantamentos».
Separa-se a Igreja do Estado, proclama-se a justiça de só pagarem aos padres os que deles necessitem; mas aos atuais funcionários eclesiásticos, em nome dos «direitos adquiridos», reserva-se uma pensão vitalícia, que pode mesmo passar à esposa e aos meninos.
Trata-se da mudança, da extinção duma secretaria, duma Universidade, dum regimento – e aí temos os «legítimos e sagrados interesses» e «direitos adquiridos» a oporem uma indestrutível barreira a qualquer inovação ou a imporem compensações equitvalentes.
Os casos são sem conta. E até se poderia defender a eternização duma situação qualquer, em nome dum «direito adquirido» – mesmo que fosse o de reinar.
E é natural.
A mudança de forma de governo e de pessoal governante (pouco sensível em geral, com as «adesões» e a rotina de processos) não altera o regime económico e político da sociedade, nem o valor e a situação das forças que a dominam.
Conservam-se as mesmas influências financeiras e económicas e até as mesmas influências políticas, vestidinhas de novo com as roupagens da mais sincera adesão.
E um governo qualquer não tem outro remédio senão obedecer-lhes.
Não se trata então de saber como e porque foram adquiridos os direitos: respeitam-se forças e influências, acalmam-se resistências, arranjam-se amizades e apoios.
Questão de força, não de direito.
Porque o privilégio e o abuso não adquirem foros de legitimidade por mais tempo que durem. Ninguém reconhece ao salteador o direito adquirido de roubar, ainda que o haja exercido sem obstáculo desde a infância. Em vão ele alegará que não pode sem sacrifício renunciar àquela vida e pedirá que para os outros continue o sacrifício de nela o sustentarem.
Porventura se reconhece ao velho operário despedido o direito adquirido, e bem adquirido?
Quando se fecha uma fábrica ou rebenta uma crise industrial, fala-se nos direitos adquiridos dos trabalhadores?
Têm «direitos adquiridos» os pobres, os pequenos, as vítimas sem poder e sem influência?
Que se considerem muito felizes quando lhes é reconhecido o direito a uma esmola, a um osso magro que os faça desistir de algum intento de revolta e de protesto.
E se ainda alguns outros lhes são reconhecidos, é quando se unem e mostram os dentes. Adquirem então naquele instante direitos que ninguém lhes suspeitara antes.
Os direitos adquiridos estão na razão direta da força dos interessados – como estão muitas vezes na razão inversa da sua legitimidade.
Um privilégio, com bons empenhos, vale mais e faz-se pagar mais caro do que um bom direito sem proteções e amparos.
Pois bem: uma revolução verdadeira – e para ser verdadeira, tem de ser social, transformar o regime de propriedade – não pode respeitar «direitos adquiridos».
E o primeiro de todos é o do proprietário à indemnização, prometido por alguns falsos socialistas, partidários dum Estado que seria, como todos, a morte do socialismo.
O único direito adquirido a reconhecer é o direito à vida – o direito ao trabalho e ao pão, o direito a consumir segundo as suas necessidades, tendo produzido conforme as forças próprias.
Lisboa, 1 de agosto. [1911]