MIA> Biblioteca> Neno Vasco > Novidades
Primeira Edição: A Sementeira, 1ª série, Nº48, outubro de 1912
Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/neno-vasco/obras-de-neno-vasco/palavras-e-atos/
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
De vez em quando, há entre nós quem raciocine que, tornando-se impossível nesta sociedade ser perfeitamente coerente com as ideias próprias, não vale a pena ser coerente apenas em parte, nas pequenas coisas, ou escolher de dois males o menor, quando é força escolher entre os dois.
Sim: o meio social sofoca-nos, e a nossa ação contra ele é na verdade limitada. No entanto, essa ação existe, consciente ou inconsciente. As condições materiais e históricas, fruto duma evolução anterior, são o terreno onde germina a iniciativa, e esta por sua vez influi sobre a evolução, sobre o ambiente social. Entre os indivíduos, entre o indivíduo e o meio, há uma ação e reação contínuas, um entrechoque emaranhado de ideias e de factos, de grandes e pequenas revoluções.
Para despedaçar o anel de ferro que nos aperta, nós, tendo já recebido a influência duma série de ideias e factos, agimos sobre o meio, sobre os outros, procurando torná-los conscientes da transformação necessária. As forças crescem, coordenam-se e vibram – porque não estão em suspensão para estalarem subitamente num facto único e solitário. Há um exercício permanente. E valem sobretudo os factos, ainda que mínimos, porque as ideias reduzidas a simples palavras, sem o esteio do exemplo, evaporam-se facilmente. Eis por que nos agrada a «a ação contínua, incessante, que cria o facto».
Sem dúvida, na maior parte dos casos, somos impotentes contra o meio social, especialmente quando insulados. Mas por que desprezar as coisas mínimas, nas quais se faz tirocínio de coerência, e que reunidas constituem as grandes? Sejamos coerentes segundo as nossas forças. Quando falamos em pôr de acordo os atos com as palavras, não nos referimos mais do que a um esforço, a uma tendência. Repudiamos o absoluto. Não há mais do que um bem maior ou um menor mal. A nossa vida, os nossos atos e teorias não assentam sobre relatividades, distinções, diferenças de grau?
Se empregamos um sincero esforço na propaganda pelo exemplo, se procuramos fazer a aprendizagem e o ensino da tolerância e da iniciativa, embora só em pequenas coisas, não contribuimos para a preparação duma sociedade de tolerância e sinceridade? Não vibrará o meio que nos cerca com as leves ondas concêntricas do nosso ato?
Somos deterministas, e justificamos ou explicamos todos os atos, do algoz ou do revoltado. Mas, por isso mesmo, queremos determinar, dar a cada um o sentimento, não da sua responsabilidade moral, do seu livre arbítrio, mas da sua participação na vida social, no meio de que ele é membro integrante. Dizemos ao indivíduo: Tu és ator na comédia ou drama social; tal papel é nocivo aos interesses solidários de todos, tal outro é utíl. Por este meio contribuis para o bem teu e nosso, e por aquele para o mal nosso e teu. Sofrerás a reação natural dos teus atos. Exerce a tua vontade; não te julgues um simples fantoche.
Não aconselhamos o sacrifício da vida, o heroísmo, porque isso não é coisa que se pregue, a não ser com o exemplo. Mas aconselhamos o esforço, o esforço continuado e sincero, e o esforço nada tem de absoluto.
Certamente, nem sempre é fácil distinguir entre os atos úteis, inúteis ou nocivos. A vida é complexa e irredutível a fórmulas matemáticas, e o nosso interesse, o nosso estômago entra frequentemente na discussão das questões mais vitais, imprimindo à lógica desvios singulares. Para obedecer à impiedosa necessidade de viver embora incompletamente, submetemo-nos, e, para tranquilizar o espírito, procuramos naturalmente justificar a submissão. Inventamos uma lógica, arquitetamos uma teoria, e cedemos ao lisonjeiro prazer de acreditar nela e de a defender. Seria talvez melhor aceitar a necessidade simplesmente como tal, guardar um silêncio digno, e deixar seguir, à nossa volta, o confiado esforço de harmonia entre o pensamento e a ação: – «Felizes vós, camaradas, que podeis lutar ainda e tocar, levemente que seja, o fruto proibido da coerência! Felizes vós!»
Mas, ai! nem sempre sabemos ter a dignidade dessa atitude de silêncio e de reserva. E isso é tão humano!
Através de todas essas dificuldades, porém, ergue-se a nobre e fecunda beleza do esforço, que nessas mesmas dificuldades de escolha se exercita.
Procurai cooperar todos na obra consciente duma transformação que depende de todos, mas por isso mesmo depende de cada um. E quando a vida, embora na sua forma mais rudimentar, vos é obstáculo insuperável à coerência máxima possível, quando tendes de curvar a cabeça sob as mais cruéis contradições que o despotismo vos possa impor, então, na verdade, todas as teorias cessam…
Mas continua a luta. Sois dignos de lástima, não há dúvida; mas assim como sois determinados a fazer mal, nós somos determinados a defender-nos. Os vossos golpes ferem-nos como se partissem dos piores inimigos…
Livremo-nos de achar todos os atos indiferentes, só porque igualmente determinados, e fujamos de dizer a cada indivíduo que ele é apenas uma vítima impotente. Não: cada ser humano é uma força, capaz de ação e reação, de dar e receber influência.