MIA> Biblioteca> Neno Vasco > Novidades
Primeira Edição: Série de 5 artigos publicados no A Aurora do Porto, nos números 137, 138, 139, 140 e 142 da 2.ª série (Março-Abril de 1913).
Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/neno-vasco/obras-de-neno-vasco/sindicalismo-e-anarquismo/
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
O camarada Manuel Ribeiro, como prometera, publicou o seu segundo artigo sobre sindicalismo e anarquismo. E é esse artigo que me leva, antes de tratar alguns pontos particulares, a fazer considerações gerais, desta vez com a minha assinatura, não só para me sentir mais à vontade, mas ainda para bem frisar o carácter amigável desta troca de ideias e de explicações. Os pontos em que eu e o meu amigo Manuel Ribeiro estamos de acordo são mais numerosos e importantes do que aqueles em que divergimos, às vezes por uma simples questão de palavras.
Assim, neste segundo artigo, Manuel Ribeiro formula críticas, que eu aceito em parte, contra o que ele considera essencial ao anarquismo ou ao comunismo anarquista!
Por outro lado, dizendo-se anarquista, Manuel Ribeiro extrai a substância do socialismo anarquista e considera o anarquismo, não como uma forma política, como um método de ação e de organização, mas apenas como uma espécie de individualismo moral. Este ponto já foi tratado no número passado. Assim, sendo anarquista, Manuel Ribeiro parece conhecer o anarquismo pelos escritos dos seus adversários sociais-democratas.
Chega ao ponto de dizer, como estes últimos, que o anarquismo é incompatível com a associação, a qual «é uma dispersão, uma abdicação do indivíduo na coletividade»! Isto é que é puro individualismo à Rousseau, que foi sempre repelido e vivamente combatido pelo socialismo anarquista. Não: o indivíduo não abdica na coletividade — ganha nela em força e em liberdade, isto é, em possibilidades. Associação não é autoridade, não é a exploração da mesma associação em proveito de certos parasitas. Como o homem só pode viver associado, isto é, organizado, se anarquismo e associação fossem incompatíveis, eu não seria anarquista, a não ser que tivesse amor aos paradoxos e aos absurdos.
Manuel Ribeiro argumenta com a falta de organização partidária do anarquismo. Mas que é organização? É unicamente o nome oficial, o caderno de inscrição, a sede social, o secretário permanente? Ou isso apenas é o acessório, as formalidades, que podem ter a sua importância (conforme as circunstâncias, os indivíduos que se devem agrupar, etc.), mas não são o essencial para a organização? Partidos há que têm todas essas formalidades, e muitas mais, não tendo uma verdadeira organização — porque tais organizações não têm vida ou têm apenas a que lhes dão algumas personalidades dirigentes ou alguns pequenos comités.
Os anarquistas têm feito uma obra considerável, em relação ao seu número, e essa obra depende quase sempre duma organização, que exista de facto, quando não existe o nome. O que sobretudo importa é a coisa, não a palavra. Sem contar que, desde o início do movimento, se têm constituído grupos federados e até confederados.
Mas vamos ao comunismo e aos modos de agrupamento numa sociedade socialista, como têm sido concebidos pelos anarquistas.
O amigo Manuel Ribeiro pega numa determinada concepção económica da sociedade futura, formulada por um ou mais anarquistas, pega noutra, adotada por alguns outros observadores do movimento sindical, e diz: Eis aqui o comunismo dos anarquistas, o anarquismo, e eis aqui o comunismo dos «sindicalistas.»
Caberia perguntar: mas esse comunismo «sindicalista» é… anarquista ou autoritário? Será organizado por obra direta dos produtores, sem delegações de poder, sem leis impostas pela violência física, exterior, — ou será organizado por obra dum governo, de cima para baixo, com comissões legislativas e executivas e uma força pública? No primeiro caso, é o comunismo anarquista, seja qual for o modo de agrupamento; no segundo caso, é o comunismo autoritário, ou democrático. O método é que caracteriza essencialmente as duas espécies de socialismo, e é que pode classificar seguramente qualquer nova concepção da organização social futura.
Ter soluções práticas, previsões sobre o modo de funcionamento da sociedade futura, é útil e necessário, porque a vida social não pode parar; mas elas não são o essencial para nenhum partido. O essencial é o método: para para uns, a vida social deve ser entregue aos representantes, eleitos pelo sufrágio (democracia); para outros, deve ser entregue aos próprios produtores, o povo deve emancipar-se e organizar-se a si mesmo (anarquia).
Kropotkin e Grave, por exemplo, nunca apresentaram as suas soluções e previsões como sendo o anarquismo.
É precisamente em Grave que Manuel Ribeiro acha a única concepção económica do anarquismo, servindo-se de frases duma brochura sobre O sindicalismo na evolução social. Resumamos esta brochura.
Grave começa por indicar as causas que mantiveram em França, a princípio, os anarquistas afastados dos sindicatos: estes, num período de grande depressão revolucionária, estavam nas mãos dos politicantes e reformistas, que os monopolizavam para os seus fins (e que ainda hoje, por isso mesmo, provocam cisões). Mas, forçados ao afastamento e atacando a subordinação aos partidos políticos, os anarquistas nunca com bateram o movimento sindicalista e sempre tomaram parte ativa nas greves. «Era precisa (diz Grave) toda a fatuidade de alguns desorientados — que se julgam anarquistas porque sabem mais ou menos mal recitar de cor algumas passagens de Nietszche ou de Stirner — para contestar aos operários da utilidade de se agruparem em sindicatos, afim de lutar contra as fantasias dos seus exploradores.»
Grave fala em seguida da pretenção dos políticos à direção do movimento operário, que deveria subordinar a sua ação de classe à ação parlamentar, e diz a influência das ideias anarquistas na reação contra tal pretenção. E alude à desconfiança do sindicalismo para com o anarquismo, ao malentendido provocado pelos tais «individualistas», os quais julgam que a «revolução pode ser obra dum punhado de intelectuais… ou que se imaginam tais.»
O sindicato, diz Grave, é um agrupamento de luta imposto aos trabalhadores, cujas reivindicações formam o fundo principal da revolução que se prepara. Mas os operários agrupam-se sobretudo para fins imediatos, e estes fins tendem a absorver a atividade sindical. A luta pela ação direta e a propaganda dos anarquistas e dos sindicalistas intelectualmente emancipados é que mostrarão a inanidade das reformas parciais e a necessidade de expropriar os detentores dos meios de produção e de abolir o salariato.
É então que Grave sustenta não ser o sindicalismo (o movimento sindical) o único meio revolucionário. A vida social é muito complexa e não é só organizada por corporações. Inúmeros são os modos de atividade, fora da produção. Devem organizar-se todos os descontentes, todas as aspirações, todas as revoltas. É preciso desde já procurar e experimentar novas formas de agrupamento: uma sociedade nova não se improvisa.
Mas Grave não acha que o sindicato represente a célula inicial, o núcleo reorganizador da sociedade nova. Receia que o consumo seja sacrificado à produção, não seja livre. Teme a demasiada divisão do trabalho, a especialização excessiva, que ele atribui ao facto de hoje serem uma pequena minoria os verdadeiros produtores, cujo esforço é assim preciso aproveitar bem. Grave não quer que o homem seja condenado a fazer monotonamente, durante toda a vida, a mesma peça ou a mesma parte de peça, que ele não seja uma simples máquina ou uma peça de máquina.
Vem aqui uma frase de Grave, incompletamente citada por Manuel Ribeiro: «Eu devo poder varias as minhas ocupações conforme as minhas necessidades: malhar hoje o ferro, amanhã aplainar tábuas, outro dia amassar gesso, se sentir gosto por essas diversas ocupações.» Essa faculdade de variar tem o limite das forças e aptidões do indivíduo.
Grave termina por criticar certas especializações da propaganda e da ação — sindicalismo, educação, neo-malthusianismo, anti-militarismo, etc. —, cada uma das quais é naturalmente levada a considerar-se tudo, a formar doutrina à parte.
Por este resumo se vê que Grave não nega importância ao movimento sindical nem à ação operária. E que a autonomia desse movimento e dessa ação, quer que o povo se emancipe a si próprio, como todos os anarquistas. É pois partidário do sindicalismo no que ele tem de substancial.
O que no sindicalismo é essencial é a organização e a ação de classe do proletariado, é o movimento sindical. Os operários, não porque têm conscientemente este ou aquele ideal quanto à sociedade futura, mas porque são assalariados e precisam de lutar contra os patrões, agrupam-se em sindicatos, fora de qualquer partido político, como aliás as associações económicas da própria burguesia. Da sua condição de assalariados, da sua força de trabalho e do facto de estarem agrupados para a defesa dos seus interesses económicos comuns resulta naturalmente o emprego de certos meios de ação, que giram em torno da greve. Desses meios de ação direta são partidários todos os operários (não digo os políticos), sejam quais forem as suas ideias políticas, sociais ou mesmo religiosas; e portanto todos se podem e devem reunir nos sindicatos para o exercício dessa ação, fazendo cada um, cá fora, se quiser, parte deste ou daquele partido político ou seita.
Para aderir, por exemplo, ao socialismo democrático, é preciso querer a socialização dos meios de produção, realizada e mantida pela democracia, e aceitar os meios de ação democráticos, a luta eleitoral e parlamentar; para aderir ao socialismo anarquista é preciso ter em vista a socialização da riqueza, realizada e mantida pela livre federação económica e adotar a luta direta económica e política, rejeitando o parlamentarismo e a delegação de poderes (não de funções). Mas para entrar no sindicato, é necessário e suficiente ser assalariado da respetiva indústria e querer resistir aos patrões. Não se pede adesão a um programa de transformação social.
De modo que o sindicalismo é essencialmente o agrupamento dos produtores, como tais, no terreno económico e da ação direta de classe.
Nesse sentido, os anarquistas foram sempre sindicalistas e sempre reclamaram a autonomia do movimento sindical e a abertura dos sindicatos a todos os trabalhadores, agrupados num natural terreno de acordo.
Certamente, os anarquistas e alguns outros socialistas esperavam do sindicalismo muitas coisas: que os operários nele tomassem consciência da luta de classes, do irredutível antagonismo de interesses existente entre eles e os capitalistas; que na ação e em contacto com os seus iguais no sindicato, os trabalhadores se apercebessem da insuficiência dos melhoramentos parciais e da necessidade de expropriar a burguesia e reorganizar a sociedade sem parasitismo e em proveito de todos os produtores. Viu-se no sindicato um magnífico terreno maravilhosamente predisposto para o lançamento e germinação da semente socialista e anarquista das ideias de emancipação social por obra direta do povo. Profetizava-se, como Proudhon, que o parasita da produção acabaria por ser expulso da fábrica, que «a oficina há-de matar o governo.» E entre os anarquistas, desde o princípio do movimento, teve largo curso esta ideia: que a força organizada do proletariado seria necessária para tomar conta da herança da sociedade capitalista, para continuar, sem interrupções impossíveis, a vida social; que a sociedade futura seria uma vasta federação de associações profissionais (congresso de Basileia, em 1869).
Mas isso são ideias — nascidas evidentemente da vida das massas, da experiência operária, desenvolvidas e aperfeiçoadas onde e quando essa vida, essa experiência, esse movimento se torna mais livre e intenso — são ideias de socialistas e anarquistas, que como tais as formularam e propagaram, são teorias, previsões, profecias, que, embora crismadas com o nome de «sindicalismo», não podem ser doutrina oficial do sindicato, constituir condição de entrada nesse agrupamento.
Os anarquistas conscientes nunca pretenderam que um sindicato se declarasse artificialmente anarquista. Se o fizessem, ou só ficariam nele os anarquistas, passando a ser um grupo de ideias, como os outros grupos anarquistas, sem ter, portanto, a utilidade particular do agrupamento de interesses, do sindicato; ou o sindicato só seria anarquista de nome, por artifício autoritário — isto é, seria menos anarquista quando tal se declarasse. E se a doutrina adotada fosse um conjunto, velho ou novo, de fórmulas, teorias e previsões otimistas, bem ou mal fundadas sobre o movimento sindical, chamasse-se embora «sindicalismo» a essa teoria, ainda se iria contra o verdadeiro sindicalismo, pois não teriam lugar no sindicato os operários que não a professassem, republicanos, sociais-democratas, anarquistas, etc. Seria um novo partido político, não a classe operária organizada. Uma das causas principais da dissolução e impotência da Internacional foi, como diz o velho internacionalista Malatesta, o facto de os meneurs atribuirem as suas próprias ideias à massa organizada.
Não se ataca, pois, o sindicalismo, quando se critica uma dada concepção do movimento sindical e do seu futuro. Pretender o contrário, misturar num só vários sentidos da palavra «sindicalismo», é fazer confusionismo nos espíritos e é, mesmo com inteira boa-fé, suscitar entre os operários sindicalizados prevenções contra uma doutrina e levá-los a tomar partido por outra… só por causa do nome.
Manuel Ribeiro põe no alto do seu artigo uma passagem da moção de Griffuelhes, aprovada no Congresso sindical de Amiens (1906): «O sindicalismo considera que o sindicato, hoje agrupamento de resistência, será no futuro o grupo de produção e de repartição, base da reorganização social».
É já de notar que a frase, assim redigida, pode satisfazer a todos: socialistas democráticos, anarquistas, e até… partidários das corporações medievais, proprietárias exclusivas e fechadas. Não é ali indicado o método da organização, autoritário ou anti-autoritário, e cada um pode conceber a seu modo o sindicato futuro e o seu funcionamento.
Demais, aquela e outras passagens (afirmando, com ela, ideias que eu adoto, note-se) são… opiniões de militantes, moções teóricas de congresso, ornamentos estatutários… que não obrigam pessoa alguma. E o essencial da moção, o que trouxe a aprovação da grande maioria (839 contra 9), foi a confirmação da autonomia sindical, contra Renard, que, em nome da Federação do Textil, propunha o casamento com o partido social-democrático. Pela moção votaram os anarquistas, os socialistas democráticos partidários da independência do sindicalismo e os reformistas neutralistas, como Keufer e a Federação do Livro, que não aceitam a expropriação capitalista nem a reorganização pelo sindicato, considerando isto como acessório e sem importância na moção, como amiúde o têm declarado.
Os anarquistas têm-se dividido (como todas as outras escolas socialistas) no modo de conceber a sociedade futura, embora sempre de acordo no método anarquista e na ideia fundamental do socialismo.
Assim, quanto à repartição dos produtos, os anarquistas, coletivistas a princípio, foram adotando o comunismo (creio que proposto por Cafiero) como sistema mais simples e equitativo.
Na sua construção ideal,Pouget e Pataud (Comment nous ferons la révolution) põem um e outro sistema: os produtos de primeira utilidade são distribuídos conforme as necessidades (comunismo) e os outros são provisoriamente adquiridos por meio duma taxa suplementar de trabalho (coletivismo), até se tornarem abundantes. E é bem possível que assim venha a ser, e até que variem as soluções de lugar para lugar.
Quanto ao modo de agrupamento, diversidade análoga de ideias.
Grave (sem pretender, nem ele nem outro, que isso é o anarquismo) deseja e prevê certa instabilidade nas ocupações. Mas, ainda que não lhe aceitemos as ideias, não lhas exageremos. Ele não quer a morte da técnica (cuja evolução aliás não podemos prever), nem da profissionalização. À maquinaria atribui ele um papel importante na suavização da tarefa e aumento da produção. A variação nas ocupações tem para ele um limite nas aptidões do indivíduo. Admite a divisão do trabalho (que não é aliás o mesmo que especialização profissional permanente), mas não quer que seja anulada a personalidade integral do homem, que se desenvolva um só orgão, uma só faculdade, desarmonicamente.
Causam-me verdadeiro assombro certas afirmações («cabriolas paradoxais»?…) do amigo Manuel Ribeiro. «O anarquismo parte do princípio de que o trabalho é uma coisa penosa, aborrecida, e que é preciso portanto variar.» Essa é boa! Não só os anarquistas, mas todos os socialistas, todos os operários acham que o trabalho é hoje penoso, aborrecido, longo, escravo; e por isso tratam de o tornar leve, variado, curto, livre. Ninguém (os anarquistas menos que todos) deixa por isso de proclamar a necessidade e a moralidade do trabalho; e é precisamente para ele cumprir integralmente o seu fim — social: produção das utilidades; e individual: desenvolvimento integral das forças e faculdades do homem — que os anarquistas o querem agradável. Dá-se com o trabalho e com as ideias sobre o trabalho uma evolução análoga à da educação infantil e das ideias sobre o ensino.
Grave entende, e com razão, que a variedade é o melhor dos descansos. A imobilidade, a não ser no sono, é em geral sinal de doença ou de excessiva fadiga (intoxicação); a variedade repousa, porque equilibra pelo uso alternado dos orgãos. Manuel Ribeiro, para defender a teoria do sindicato como base da organização futura, escusava bem de combater a variação no trabalho e de sustentar a especialização absoluta e permanente.
Sob pena de não estarem socializados os maios de produção, nem abolida a autoridade — e que autoridade despótica, exorbitante e monopolizadora! — o sindicato, o grupo profissional do futuro tem de ser aberto e de não monopolizar os meios de produção. Cada um, se quiser, deve poder mudar de profissão ou até pôr-se a produzir individualmente. Quando a federação local tiver ultrapassado o ponto optimum, em que a grandeza da associação deixa de ser útil para embaraçar pela complexidade, fugindo à apreciação individual, os que assim o entenderem devem poder constituir ao lado outra federação ou comuna. Essa liberdade não significa… obrigação de variação e instabilidade, como a liberdade no amor não quer dizer instabilidade nas uniões, obrigação de mudar de amores; mas é o único método de determinar o valor e a medida das associações, o único modo de satisfazer as aptidões, a forma única de administração direta das coisas pelos produtores. E adiante falarei de outra maneira de variar as ocupações.
Passemos sobre a concepção «cooperativista», que foi e é a de alguns anarquistas, especialmente de alguns que entraram nas cooperativas de consumo. Há um movimento idêntico entre os socialistas, e ainda há pouco a Federação das Cooperativas socialistas de Paris publicou um manifesto, no qual as associações autónomas de produção são tidas como sobrevivências retardatárias da falsa ideologia de 1848, não suprimindo a propriedade particular nem a concorrência, e para a associação dos consumidores, como representantes dos interesses mais gerais, é reivindicado o principal papel na reorganização futura. É o que faz dizer a Cornelissen, no discurso de que o n.º 3 da Terra Livre deu um extrato, que as várias soluções do problema social serão todas impregnadas da ação dos consumidores contra os produtores.
Agora o sindicato. Que ele é hoje a sociedade de resistência e será no futuro o grupo produtor, base da organização social, é uma ideia que já os anarquistas sustentavem na Internacional (Congresso de 1869, por exemplo). E essa ideia nunca foi abandonada entre os anarquistas. Será preciso falar em Pelloutier, a quem o sindicalismo tanto deve? Nele e na corrente que ele representava? Na Espanha e na Itália teve essa ideia largo curso. Malatesta, um dos mais genuínos representantes do anarquismo da Internacional, Malatesta, cujas ideias tiveram tão larga difusão, dentro e fora de Itália, sempre defendeu esta ideia: que «os operários, agrupando-se em sindicatos, preparam-se para receber a herança da velha sociedade.» E em 1890, por exemplo, escrevia, num dos seus populares diálogos «entre operários»: «Pelo que se refere aos serviços públicos, para maior prontidão, poderiam por exemplo repartir-se em locais e federais. E assim aos locais poderiam pertencer: carros urbanos, escolas, farmácias, padarias, açougues e depósitos de géneros de primeira necessidade; iluminação, limpeza e higiene públicas; construção de casas, etc. Aos federais os caminhos de ferro, os barcos a vapor, correios, telégrafos, etc. E como em cada localidade todos, decerto, tendo entrado na posse direta das matérias primas e dos instrumentos de trabalho, terão o cuidado de se organizar por artes e ofícios, cada uma dessas organizações se ocupará do seu trabalho próprio para fazer face a todas as necessidades da coletividade.» Tenciono dar aqui brevemente um interessante trecho de Malatesta sobre o funcionamento das associações profissionais do futuro.
É difícil prever qual será o modo de agrupamento mais vantajoso, a grandeza conveniente da associação, etc. Tudo depende, em boa parte, da evolução da técnica, do desenvolvimento da força motriz, etc.
Entretanto, penso que o sindicato é o núcleo, já em preparação e desenvolvimento, de reorganização social, no que a vida social tem de mais fundamental, assegurando-lhe a continuidade. E penso que, com uma justa divisão do trabalho, com o auxílio poderoso das máquinas, com a extinção do parasitismo e dos trabalhos inúteis, a produção do necessário tomará a cada um pouco tempo, deixando-lhe largas horas livres. O progresso caminha paralelamente ao número destas horas. Durante elas, satisfará cada um as suas necessidades intelectuais, morais, recreativas, artísticas, etc., ou mesmo económicas secundárias. Assim poderá variar as ocupações, empregar de mil modos a sua atividade, aliar o trabalho intelectual ao trabalho manual. É então aqui o cada vez mais vasto domínio das associações instáveis e maleáveis, como as entende Grave. As duas teorias completam-se.
Já hoje vemos essa divisão natural. Ao lado dos sindicatos, que não representam tudo, mas representam os interesses fundamentais da vida, há os grupos de ideias, as inúmeras associações mais maleáveis, que se ocupam da vasta vida moral, intelectual, estética, afetiva, da sociedade.
No futuro, suponho que se manterá a mesma divisão: para os sindicatos, abertos em todo caso, o que Malatesta chama os serviços públicos; para os outros grupos o resto, bem importante, da vida social.
Como socialista, quero que os meios de produção sejam postos à livre disposição de todos e de cada um. Como anarquista, aspiro a uma sociedade constituída sem governo, organizando-se os produtores livremente e gerindo eles próprios a produção.
E é porque sou socialista e anarquista, é porque desejo que o povo se emancipe a si mesmo, abolindo o salariato, o patronato e o Estado, é por isso que desejo ver todos os interesses agrupados e sobretudo os dos trabalhadores, esperando que estes tomem consciência da sua situação e dos seus direitos.
Mas, esperando que eles venham a ser socialistas e anarquistas, isto é, que expropriem a burguesia e organizem eles próprios a produção, quero que o sejam a valer, conscientemente, pelo desenvolvimento natural da ação e da propaganda, e sobretudo nos factos.
O meu anarquismo, o que eu aprendi, acho-o também uma filosofia da ação. E nele incluo a «filosofia do trabalho organizado», do movimento sindical, do sindicalismo, como outros incluirão na respetiva doutrina partidária outra filosofia do mesmo movimento. Mas nenhuma delas é o próprio movimento, o próprio facto, nenhuma delas passa duma concepção desse facto, duma doutrina particular, por mais bem observada e fundamentada que seja.
O movimento sindical (organização e ação) não se confunde, certamente, com o movimento socialista-anarquista (organização e ação).
O movimento sindical, ou operário, tem ou deve ter estes carácteres principais:
Em face disto, o movimento (ou partido, no bom sentido da palavra) socialista anarquista tem as características seguintes:
Mas, embora não se confundindo os dois movimentos, a convicção dos anarquistas é que a sua doutrina é a que melhor se adapta ao movimento sindical, a que mais espontaneamente brota da prática operária, desde que a organização de classe se emancipe da tutela dos políticos, deixando de ser seu instrumento eleitoral e desenvolvendo-se livremente.
Para que a classe operária dê tudo o que tenha a dar, congregue e aplique todas as suas forças e siga a sua evolução natural, expandindo-se livremente no seu seio todas as tendências doutrinais, para isso é que os anarquistas sempre reclamaram a independência da organização sindical, a abertura do sindicato a todas as opiniões, a luta anticapitalista no terreno económico comum e pelos meios operários comuns da ação direta.
O movimento (digo movimento, não me refiro às origens ideológicas, aos precursores teóricos, mais ou menos parciais ou unilaterais), o movimento socialista-anarquista é precisamente filho da prática operária. É uma doutrina elaborada ou corrigida no seio de sociedades populares, ao calor da ação proletária. Estude-se, para obter a comprovação desse facto, a história da Internacional, principalmente da Federação Jurassiana. A ação operária contra o Capital é mais antiga. Data do primeiro quartel do século 19, tendo tido já então, na Inglaterra, uma tendência revolucionária. O socialismo anarquista veio depois: é uma filosofia (se assim querem) dessa ação, uma tendência dela, quando livre e entregue a si mesma.
E mesmo separando-se como movimento independente, como partido, o socialismo anarquista conservou os carácteres essenciais da sua origem, a sua natureza fundamental.
Não é evidentemente o movimento operário, a classe trabalhadora organizada, e acolhe indivíduos de todas as procedências, inclusive desclassificados, os sem-ofício; mas tem o espírito mais salutar da luta de classes para a abolição das mesmas, sempre combateu a colaboração de classes e repele os indivíduos que exercem funções autoritárias (ao passo que a social-democracia admite, não só deputados, mas até, como na Suíça, chefes de polícia!). Os patrões e sub-patrões, se não são tão rigorosa e automaticamente excluídos como no sindicato operário verdadeiro, sentem-se mal nos meios anarquistas e acabam por se retirar da ação e da propaganda, e quase sempre por trair. Se quer ganhar a confiança dos camaradas e o necessário prestígio da coerência, o anarquista, sobretudo o militante, tem que renunciar a situações privilegiadas, especialmente autoritárias e patronais. E nos sindicatos operários, têm sido os anarquistas os melhores defensores da exclusão dos patrões e seus acólitos e interessados, assim como os mais calorosos partidários da luta anti-patronal sem compromissos.
O mesmo quanto à tática. A ação direta é a tática adotada naturalmente pelo sindicato operário independente; mas o anarquista continua a prepará-la fora do sindicato em todos os campos. Essa tática é a única que ele julga eficaz e bastante, que ela considera como consequência das suas ideias fundamentais, contrárias à autoridade e à delegação de poder. Fora do sindicato, o social-democrata recorre à ação eleitoral e parlamentar; ao passo que o anarquista acha que isso é, pelo contrário, uma diminuição de ação, uma ação que contradiz a primeira, uma política que enerva e distrai a ação operária, uma nefasta e corruptora colaboração de classes. E não foram os anarquistas os que sempre defenderam, contra os sociais-democratas, as virtudes morais e educativas da greve?
O socialismo anarquista sofreu sem dúvida degenerações e infiltrações burguesas e individualistas, dissolventes e anti-organizadores, desde que perdeu contacto direto, sobretudo em França, com a organização e prática operárias. A França revolucionária, que tanta influência exerce, entrara numa grande depressão; o legalitarismo e o reformismo triunfavam; os anarquistas eram mantidos num insulamento forçado.
Passada a crise, desvanecida, em face dos factos, a ilusão democrática, ao menos no coração duma minoria ativa, renascida a ação operária, renasceu igualmente o socialismo anarquista, o «anarquismo operário». Mas revigorar, dar novo sangue, livrar do definhamento, não é o mesmo que mudar a personalidade e o carácter fundamental.
Por outro lado, o anarquismo desembaraçara-se também de certos exageros e erros, fizera pouco a pouco a revisão do seu primitivo marxismo; e com estas correções veio a ganhar o movimento operário revolucionário. Mas, ainda sob este aspeto, a doutrina não mudou de natureza nem de nome — a não ser que as palavras sejam definidas, não pelo essencial do seu conteúdo, mas pelo acessório e pelas excrescências.
Resumindo: o socialismo anarquista, para viver, para ter vigor, tem de buscar apoio no movimento operário, na ação económica das massas, de tirar desse imenso reservatório os elementos de pensamento e ação; e o movimento operário, pensamos nós — e por isso somos anarquistas — tem de beber no ideal socialista anarquista a sua inspiração para ser verdadeiramente revolucionário, para tender a uma real abolição das classes e da exploração e domínio do homem pelo homem.
Daí a importância do papel dos anarquistas nos sindicatos, e também a necessidade da sua ação, como movimento independente. O que não significa de modo algum subordinação do movimento operário, nem que este deixe de ter a direção da sua ação e de si próprio — muito pelo contrário.
Da ação dos anarquistas, dentro e fora do sindicato, ocupar-me-ei em seguida
Os anarquistas afirmaram sempre a necessidade da «ação incessante das massas», a importância do facto, negando o poder milagroso do verbo, a eficácia da pura educação e da pura evangelização teórica; mas é necessário não cair no excesso oposto, na abstração contrária. O facto e a ação só valem em quanto produzem a ideia, em quanto são raciocinados, em quanto criam um pensamento diretor.
Eis aqui uma greve vencida. Dos vencidos, uns tiram deste exemplo maior incentivo, outros deixam-se invadir pelo desânimo: o facto reage diversamente sobre cada um, conforme o temperamento, mas também conforme o estado de esprírito, a educação e as ideias já formadas. De tal derrota tiram as mais contraditórias conclusões os que doutrinam sobre greves: uns concluem que a greve é «arma de dois gumes», que a ação económica operária é insuficiente, e é preciso juntar-lhe a ação parlamentar; outros deduzem que, em face daquele exemplo, urge entrar numa política de conciliação e de paz social, firmar contratos e arbitragens, harmonizar o Capital com o Trabalho; outros ainda inferem que é indispensável acentuar o carácter revolucionário da ação; etc., etc.
Assim o movimento operário organizado toma as mais diversas orientações. Tal movimento, que teve começos ativos e revolucionários, tornou-se pesado, conservador e «paz social», caiu no entesouramento e na luta a dinheiro, no centralismo e funcionalismo excessivos, na mais baixa expressão da luta eleitoral e parlamentar, sem ideal e sem critério, ou mesmo nos piores acordos e conluios com a classe patronal e os governantes. Tal outro está sob o jugo dum partido político e serve-lhe os interesses eleitorais. É por exemplo a história do trade-unionismo inglês e norte-americano e das uniões operárias alemãs.
Eis agora condições de facto especiais. Em primeiro lugar, é claro, a condição comum a todos os movimentos da classe operária, trade-unionismo, corporativismo ou sindicalismo: um certo desenvolvimento industrial e a reunião dos trabalhadores nas oficinas, nos latifúndios e nos centros industriais. Depois, uma adiantada experiência democrática (era, nos anos 70, o caso da Suíça e um pouco o da França). E por fim, não menos importante condição, um desenvolvido espírito de revolta, fortificado por uma prática e uma tradição revolucionárias.
Ante essa situação de facto, essa experiência e esse estado de espírito surge, não em todos, mas em alguns pensadores, uma determinada concepção, um sistema, uma filosofia. Então o terreno está preparado para receber essa semente, mas é entretanto necessário lançá-la, fazer a propaganda, para se ir formando uma minoria consciente, cada vez mais numerosa e influente sobre a massa, cada vez mais capaz de ação e de iniciativa.
Assim é que, dadas aquelas condições de facto, surgiu e se foi sistematizando o socialismo anarquista, sob a influência das doutrinas socialistas francesas, das ideias económicas de Marx e do federalismo de Proudhon, sobretudo nos sindicatos, nos grupos de produtores da Federação Romanda e da Federação Jurassiana. Clarificado e desenvolvido por Bakunin, por James Guillaume, Schwitzguébel, Cafiero, Malatesta, Covelli, Fanelli, Anselmo Lorenzo, Farga Pellicer, etc., o anarquismo tornou-se movimento, foi desde então uma filosofia da ação operária.
Mais tarde, numa situação igualmente favorável, repetindo-se as mesmas condições de facto, — as mesmas ideias fundamentais dos anarquistas da Internacional: luta de classes livre de compromissos partidários, automia, ação direta, livre federalismo, gerência direta da produção pelos próprios produtores, etc., ganharam em França o movimento operário organizado e influíram no de todo o mundo, graças à influência intelectual daquele país. E ainda então vimos os anarquistas em ação e os resultados fecundos da sua obra; vimos o trabalho produtivo de Pelloutier, Tortelier, Pouget, Yvetot, Delesalle, etc., em França. Ao passo que, em terrenos menos bem predispostos e preparados, nos outros países, são quase só os anarquistas os iniciadores e propagadores do sindicalismo revolucionário entre o povo produtor. Nos acontecimentos que precederam e seguiram o histórico 1.º de Maio de 1906 em França repetiu-se o mesmo facto. «Esta vigorosa campanha — acaba de escrever Thuillier, o conhecido militante da União dos Sindicatos de Paris — teve também como efeito fazer voltar uma grande parte dos elementos libertários aos sindicatos, onde eles fizeram depois bom trabalho».
Desta breve exposição resulta o papel dos anarquistas nos sindicatos. Eles são lá dentro os melhores e mais desinteressados guardas da independência sindical e da união de todos os trabalhadores sobre o terreno económico, depois de as terem reclamado durante o predomínio social-democrático. Sendo a concepção anarquista que os trabalhadores devem, não ser dirigidos ou governados, mesmo para o bom fim, mas dirigir-se e emancipar-se a si próprios, nesse sentido a expressão «o sindicalismo basta-se a si próprio», equivalente dessa outra: «a emancipação dos trabalhadores há-de ser obra dos próprios trabalhadores», é afinal a ideia sempre oposta pelos anarquistas à ideia de subordinação do movimento operário a um partido político, à ideia de que o sindicato deve fazer política eleitoral e parlamentar, sendo esta necessária para completar a ação sindical.
Os anarquistas são também os mais ardentes defensores da ação direta de classe, porque a ação direta é, em suma, a tática dos anarquistas em todos os campos, económico, político, intelectual, etc., a que eles consideram bastante.
Os anarquistas, enfim, conservando-se tais, convictos e conscientes, mantendo-se o mais possível livres de compromissos, são nos sindicatos os propagandistas das ideias de autonomia e de federalismo livre e os adversários da centralização, do autoritarismo, do absorvente e refreador funcionalismo bem pago e inamovível, do entesouramento improdutivo.
E devem estar sempre dispostos a combater as tendências autoritárias que se formem dentro do movimento operário, mesmo em torno da palavra «sindicalismo». Porque, mesmo supondo que os sindicalizados abandonassem as designações de socialistas democráticos e socialistas libertários e se declarassem todos «sindicalistas», significando que consideravam o sindicato como o agrupamento essencial sempre e como base da reorganização social, de novo voltariam a constituir-se as antigas tendências, na questão fundamental do método.
Uns suporiam o sindicato a administrar a produção, sob tutel do Estado democrático, dum governo, representando os interesses gerais dos consumidores; seria o sindicalismo social-democrático. Outros combateriam pelo sindicato livre e autónomo, aberto, constituíndo-se e federando-se livremente, organizando diretamente a produção e dispondo livremente dos meios de produzir, sem contudo ser deles proprietário exclusivo: seria o sindicalismo socialista anarquista. Outros encaminhar-se-iam — às vezes sem o sentir… — para o sindicato proprietário exclusivo dos meios de produção, fechado, autoritário, governado por uma burocracia sindical centralizada: seria — que sei eu? — um neo-corporatismo medieval, ou um neo-capitalismo autoritário, com Estado e tudo. Não se trata afinal de meras suposições: são já factos, são já tendências radicadas ou incipientes.
Deu-se o mesmo com o movimento socialista: no seu início, todos se confundiam e acotovelavam em torno do mesmo fim socialista: e foi o método — democrático ou anarquista — que veio a separar as tendências.
Os anarquistas têm, pois, a missão de mostrar que o sindicalismo, para ser verdadeiramente revolucionário, tem de ser socialista e anarquista ao mesmo tempo. Mas isso não quer dizer que substituam pela sua a direção social-democrática, que governem o movimento operário, que imponham a sua filosofia, a sua finalidade, a sua concepção sistemática, mesmo sob o nome de sindicalismo revolucionário, como doutrina ou programa oficial. A organização por tendências seria a divisão do proletariado no único terreno em que ele pode e deve desde já estar unido: o dos seus interesses económicos. As ideias socialistas libertárias devem constituir, no movimento operário, uma tendência livre, que livremente vá ganhando as consciências e livremente se vá traduzindo em factos, por voluntária decisão dos interessados. Nunca perder de vista que o movimento operário é o movimento de classe, que a organização sindical deve agrupar, como tais, todos os assalariados pobres, devendo por isso mesmo ser independente dos partidos.
Raramente os anarquistas podem ser acusados de «separatistas»; e quando de tal se tornam culpados é do campo anarquista que parte a primeira censura. Separatistas e expulsadores têm sido os políticos (não digo os operários) social-democráticos, furiosos quando lhes escapa a força eleitoral e base de apoio que é a organização operária. Os anarquistas, sem interesses partidários a salvaguardar, até calam amiúde o nome do seu ideal e são às vezes levados, por amor à união, a uma excessiva condescendência. Mas, na verdade, o que é necessário é que, em caso de divisão, tenham, livre de tabuletas supérfluas, um terreno de acordo sempre oferecido, com franqueza e lealdade, a todos os trabalhadores. Em quanto as houver, é útil que todas as tendências se encontrem nesse terreno até sob o ponto de vista teórico, para mutuamente se fiscalizarem e contrabalançarem.
O sindicato não é, naturalmente, um grupo de ação e propaganda pura e caracterizadamente anarquists, nem é composto de anarquistas.
E por isso os anarquistas, se querem exercer franca e livremente a sua ação própria, sentem a necessidade de formar, à parte, grupos de ideias e de afinidades.
Essa necessidade é sentida por todos os revolucionários. Não é, por exemplo, resultado dela a constituição cada vez mais desenvolvida de «juventudes sindicalistas»? E se, como há pouco escrevia Dumoulin, militante da C. G. T., o sindicalismo tem como objetivo a luta de classe para suprimir a propriedade individual, tornando-a comum, fora de todo e qualquer centralismo e de toda e qualquer expressão de Estado, essas «juventudes» — dêem-lhes o nome que quiserem — são animadas de espírito libertário, não passam afinal de grupos socialistas-anarquistas de trabalhadores.
Os militantes anarquistas dos sindicatos têm interesse em entrar, não somente nesses grupos de educação técnica e revolucionária, mas ainda nos agrupamentos anarquistas formados também de indivíduos profissionalmente inorganizáveis e de pessoas que procedem das classes médias, mas aderiram intelectualmente e de facto à causa da revolução social.
As suas ideias, que poderão tomar uma direção demasiadamente unilateral num meio exclusivamente obreiro, ainda imbuído de reformismo ou de preconceitos de classe — de uma espécie de orgulho, de exagero obreirista, que não favorece, antes embaraça e deturpa a luta de classes revolucionária — receberão nestes grupos uma influência benéfica, temperar-se-ão, elevar-se-ão ao calor das discussões teóricas; e por sua vez reagirão salutarmente sobre a tendência «intelectualista» de cada «intelectual», embora libertário, embora sincero inimigo do espírito de autoridade e de direção, e sobre os resíduos de preconceitos burgueses, porventura trazidos da classe de origem.
Os operários anarquistas levarão para esses grupos a sua valiosa experiência da luta proletária de cada dia, das necessidades da ação sindical e das aspirações do povo, a sua preocupação das fundamentais questões económicas e de organização; e assim impedirão o resvalo da atividade anarquista para o puro educacionismo, para as questões transcendentes ou secundárias, para um academismo exclusivo.
Esses grupos, em que tendências de origem diversa se temperam, preparando-nos o homem futuro, nem «obreiro» nem «intelectual», mas uma coisa e outra ao mesmo tempo, têm um bem largo campo de atividade.
O seu papel é não pretender dirigir, não ejacular, a jato contínuo, pedantescas admoestações de pedagogo ao movimento operário, mas exercer sobre ele, com idependência e simplicidade amiga, uma crítica cheia de paixão sincera (paixão, digo bem: para longe vá o diletantismo!) e de ardente interesse pela causa da emancipação económica, política e moral de todos.
Mas não devem, evidentemente, limitar-se a uma função de propaganda, de discussão teórica, de crítica. Tem ainda a importante missão, determinada pelo seu ideal, de colaborar, de modo independente na ação operária contra o capitalismo e contra o Estado.
E essa cooperação tem especial valor em certas tarefas de carácter político, (político no sentido largo e justo da palavra), tais como as agitações pró presos, pró vítimas da luta social, os movimentos de protesto de ordem geral, a defesa das elementares liberdades políticas — de imprensa, de palavra, de reunião, de associação, e obra educativa ou agitadora do comício, do jornal e da escola, etc., etc.
Finalmente, na hora da ação coletiva, os grupos de ideias e de afinidades, de reunião mais fácil, de movimentos mais livres, de decisão mais pronta, de maior iniciativa, têm uma utilidade que todos os militantes conhecem. E essa utilidade mais se evidenciará no dia em que o proletariado organizado, fazendo o grosso de obra sob o impulso das circunstâncias, e da iniciativa das maiorias, criar uma situação revolucionária e dar aos grupos homogéneos guiados por uma ideia um vasto campo de ação.
E ponho aqui ponto final. Há lugar para vários outros desenvolvimentos, mas já me demorei em considerações, até demais… Sob pretexto de clareza, não quero tornar-me fastidioso.