O Congresso anarquista de Paris

Neno Vasco

24 de agosto de 1913


Primeira Edição: A Lanterna de S. Paulo (Brasil), N.º 209, 20 de setembro de 1913

Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/neno-vasco/obras-de-neno-vasco/o-congresso-anarquista-de-paris/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Lisboa, 24 de Agosto

Realizou-se em Paris, nos dias 15 e 17, um congresso bastante raro: o dos comunistas anarquistas de língua francesa. Raro, com efeito, porque os anarquistas não costumam reunir-se em assembleias solenes para satisfazer vaidades, que não têm, ou para satistazer gozar festas e passeios, que as suas posses não permitem. Quando se juntam, é porque assim o exige terminantemente a situação, é porque há questões urgentes e importantes a resolver. E era o caso do congresso de Paris.

Três pontos fundamentais estavam indicados à discussão; a separação ruidosa dos individualistas; a atividade dos anarquistas nos sindicatos operários; a organização regional e geral das forças do comunismo ou socialismo libertário. E o Congresso discutiu-os e encontrou-lhes a solução justa e necessária.

O primeiro ponto foi, por assim dizer, o escopo principal do Congresso. A separação entre os «individualistas» (palavra que se presta a confusões, por oferecer múltiplos sentidos) e os comunistas já existia de facto; mas o público (sobretudo a grande imprensa com a sua habitual má-fé e também a sua ignomínia) confundia-os sob a designação comum de «anarquistas», que uns e outros aliás reivindicavam. Ora depois de tristes exemplos de degeneração «amoralista» do individualismo pseudo-anarquista, era necessário clamar bem alto, bem ruidosamente, que o falso anarquismo dos Bonnots nada, absolutamente nada tinha que ver com o anarquismo social de Bakunin, Korpotkin, Reclus, Malatesta. Os amoralistas, burgueses manqués, propagadores contraditórios dum ceticismo social, todo construído sobre a areia movediça da dialética, não têm sequer direito ao qualificativo de anarquistas, que historicamente pertence aos que, desde a famosa Internacional, defenderam um anarquismo social, de ação popular, visando à indispensável emancipação coletiva das massas.

Para essa separação ruidosa vinha bem um congresso, com a sua retumbância, aumentada pela raridade – e o de Paris, apesar de perturbado a princípio por alguns intrusos individualistas – deu boa conta do recado. «O congresso – declara o manifesto que lhe resume os trabalhos e conclusões – separou nitidamente o movimento comunista revolucionário anarquista das teorias erróneas e das práticas ilusórias do individualismo.»

Quanto às relações do anarquismo com o sindicalismo, as conclusões do Congresso foram as que se têm vindo elaborando cada vez mais limpidamente. Os sindicatos, agrupando no terreno económico, para a luta direta contra os patrões, os trabalhadores de diferentes opiniões, não podem realizar a tarefa dum partido revolucionário homogéneo e devem traduzir lealmente, sinceramente, o estado de espírito e as aspirações dos associados. Nenhum partido tem o direito de se apoderar da organização sindical, e os anarquistas menos do que outros. Não é a direção que estes devem conquistar: o que eles devem fazer é educar e impulsionar. O movimento revolucionário deve partir de baixo, não dos funcionários; e o papel dos anarquistas é propagarem as suas ideias, como sindicados entre os sindicados, para que estes atuem por iniciativa própria, sem esperar ordens nem prodígios de messias. E o Congresso conclui incitando ardentemente todos os anarquistas a penetrarem nos sindicatos filiados na C.G.T., pois que o sindicalismo, não bastando embora para tudo, é o mais poderoso meio de emancipação possuído pela classe operária.

Quanto à organização anarquista, assentou-se na oportunidade e urgência de fundar uma «Federação Comunista Revolucionária Anarquista de língua francesa», constituída por grupos autónomos, federados entre si diretamente ou regionalmente, conforme as necessidades da propaganda, e baseada num acordo livre e voluntário, o mais solto e maleável possível. Cada grupo contribui para os gastos comuns com uma cota fixa; mas, dentro do grupo, as cotizações individuais são voluntárias: deste modo alia-se engenhosamente a voluntariedade à necessidade duma receita certa.

Esta organização geral vem a propósito, não só para continuar e intensificar a obra da Federação Comunista Anarquista de Paris, de algumas federações regionais recentemente instituídas e dos grupos dispersos, mas ainda para tornar os anarquistas conhecidos uns aos outros, garanti-los contra os intrusos, degenerados e falsos camaradas e corporizar o ideal anarquista aos olhos do público, que não mais o confundirá com as infiltrações burguesas dos amoralistas e com os paradoxos e abstrações de pessoas estranhas ao movimento.

De outros assuntos se ocupou ainda o Congresso – tais como a luta contra o nefasto parlamentarismo; a solidariedade entre camaradas e o auxílio às vítimas da repressão; o antimilitarismo e a luta contra a guerra; a educação infantil; o neo-maltusianismo; os meios de propaganda.

Afirmando ideias gerais «o Congresso declara que: Comunista, visa ao desaparecimento do regime capitalista baseado sobre a propriedade individual, para serem postas em comum todas as riquezas, assim como todos os meios de produção; revolucionário, só espera uma transformação social dum movimento de conjunto preparado por uma educação sem artifícios nem compromissos, apoiado numa organização poderosa, facilitado por um treinamento metódico, determinado pelas circunstâncias e executado por minorias atuantes, em contacto com as multidões deserdadas e capazes, com a sua perspicácia, energia e exemplo, de arrastar estas pelas estradas rubras da revolta; anarquista, não trata de conquistar o poder, mas de o despedaçar, não quer apoderar-se do Estado, mas suprimi-lo.» Tal é a conclusão do manifesto, cuja redação foi confiada ao ilustre militante Sebastião Faure, membro deste notabilíssimo congresso, que marcará época e teve a presença ou a adesão de todos os propagandistas libertários de valor, em França, Grave, Pierrot, Girard, Martin, Dooghe, Malato, etc.

Paulo Raclus, digno herdeiro intelectual dos grandes Eliseu e Elias Reclus, mandou de Bruxelas uma carta de aplauso, cujo final merece registo, como sendo a expressão das conclusões em que o socialismo anarquista vai assentando, quanto à concepção da sociedade futura, sem quebrar a tradição teórica da Internacional.

«Omeio pelo qual subsistirá esse individualismo – escreve Paulo Reclus, empregando este último vocábulo no seu bom sentido – é o comunismo de todas as necessidades primordiais e vulgares, transportando-se a luta para os domínios artísticos e inventivos. Se há empenho em esboçar uma organização desse comunismo, podem conceber-se os sindicatos de trabalhadores agrupados segundo as principais atividades, das quais se contam pelo menos seis categorias: alimentação, educação, força motriz, habitação, vestuário, relações; escolhendo-se por eleição, sorteio ou turno, os gerentes momentâneos que repartirão os pedidos dos consumidores e calcularão a intensidade da produção. Da comuna à região geográfica, do agrupamento de homens da mesma língua ao conjunto do globo, a antonomia e a deferação dos sindicatos assegurando a marcha normal da sociedade; mas o papel desses grupos ou dos seus gerentes não pode ser senão fragmentário, transitório e privado de qualquer autoridade que não seja moral apenas, pois se o consenso unânime deixa funcionar o que é útil, é por iniciativa individual que se produz o progresso.»

São as mesmas conclusões indicadas por Kropotkin (La Science Moderne et l’Anarchie, pag. 90 e seguintes). As comunas autónomas para os grupos territoriais e as vastas federações de ofício para os grupos por funções sociais – eis a organização essencial, destinada a satisfazer as grandes necessidades da sociedade. Não se trata, é claro, de corporações fechadas, exclusivas e obrigatórias, e cada um tem sempre o direito de aceitar ou recusar as vantagens das grandes associações, de entrar ou sair, de usar dos meios de produção pertencentes a todos. E ao lado dessa organização primordial, «os grupos por afinidades pessoais – grupos sem número, infinitamente variados, duradouros ou efémeros surgindo conforme as necessidades do momento para todos os fins possíveis – grupos que vemos já aparecer na sociedade atual, fora dos agrupamentos políticos e profissionais». Outra não tem sido igualmente a concepção de Malatesta, desde a Internacional.

O Congresso anarquista foi um grande triunfo. E a ele assistiram, pelo pensamento, todos os anarquistas do mundo, como na sua carta de adesão escreveu Kropotkin, instigando a bela assembleia a estudar as necessidades da luta presente e a prever as formas da sociedade nova.


Inclusão: 24/06/2021