Uma Colónia Anarquista

Neno Vasco

7 e 21 de dezembro de 1913


Primeira Edição: dois escritos publicados no jornal A Aurora do Porto, ambos sob este mesmo título, nos números de 7/12/1913 e 28/12/1913. Para uma boa contextualização, ler carta de Neno Vasco a Alves Pereira de 28/10/1913.

Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/neno-vasco/obras-de-neno-vasco/uma-colonia-anarquista/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Uma Colónia Anarquista (I)

Segundo a informação do camarada «Sacrovir», no número passado da Aurora, o grupo Avante pelo Futuro resolveu iniciar uma «Colónia Anarquista».

Cada um dedica os seus esforços à atividade mais conforme às suas concepções particulares e às suas aptidões; e por mais modesta e insignificante que seja tal atividade, sempre é melhor do que nada, se para outra coisa não se sente queda. Sob esse ponto de vista, nada haveria que objetar ao camarada «Sacrovir» nem ao grupo Avante pelo Futuro. Sobretudo se, tendo tomado aquela resolução, a levassem a cabo pelos seus próprios esforços e com os seus próprios recursos e viessem depois dizer-nos, a nós e a todos: «Aqui está a nossa obra em pleno funcionamento. Aqui está o facto, o exemplo».

Aqueles camaradas, porém, começam desde já a tocar trombeta e, o que é prior, a anunciar a sua projetada cooperativa comunista como aquilo que virá, enfim, «mostrar o lado prático das nossas doutrinas», «exemplificar o dial anarquista por atos e obras». Permitam-me, pois, desempenhar o antipático papel de esfriador de entusiasmos, em defesa do ideal anarquista, comprometido nas mirabolantes promessas dessas pequenas empresas.

É certo que os camaradas do grupo Avante pelo Futuro «sabem de antemão que a Colónia não poderá ser, na ampla expressão do termo, o exemplo vivo da sociedade futura, porque, encravada no meio do egoísmo burguês, há-de refletir em parte esse organismo». Mas, acham também que, com a sua Colónia, «poderão demonstrar como se vive, se produz e se consome sem o funcionamento da engrenagem autoritária, da lei e do salariato».

Ora a sociedade atual formiga de exemplos parciais de comunismo e de anarquismo, tão úteis aos nossos escritores para a sua argumentação. O comunismo libertário vive, mais ou menos intensamente, no interior do maior número das famílias, em muitas cooperativas, em mil formas de auxílio mútuo e de associação, artísticas, científicas, humanitárias, operárias. Ai de nós e das nossas ideias se assim não fosse, pois essas manifestações provam a tendência da sociedade para o comunismo e para a anarquia.

Uma «colónia comunista» não trás, pois, novidade, salvo o facto de ser constituída por anarquistas teóricos, e não vem ajuntar grande coisa ao que já existe. É cooperativa mais, cooperativa menos: não vem «mostrar» ou «exemplificar» finalmente o ideal anarquista mais do que outra qualquer. Não funciona, como as outras, senão num cantinho da produção, da troca e do consumo. Na maior parte da vida social, na maior parte da produção, e sobretudo da vida de relações, depende da organização capitalista e autoritária da sociedade.

Como poderá, pois, demonstrar praticamente o funcionamento duma sociedade comunista e anarquista, na localidade e na região, com todas as suas engrenagens, com os seus meios de comunicação e de transporte, com todos os seus serviços públicos?

Muito feliz será se puder viver parcamente, sem reduzir ainda mais a independência material (que os anarquistas querem alargar pela solidariedade moral, pela organização comunista da sociedade), sem aumentar os atritos e estreitezas, sem azedar os ânimos, sem causar a mais terrível e acabrunhadora desilusão, a respeito de colónias e de anarquismo, aos ingénuos que das colónias tanto esperam e do anarquismo formam tão… pueril conceito!

Neno Vasco.
(De «A Aurora» do Porto, 7/12/1913)

Uma Colónia Anarquista (II)

O camarada Sacrovir parece que, no número passado, responde indiretamente às minhas observações. Seja como for, para atalhar a qualquer equívoco ou malentendido, volto ao assunto, embora me desagrade desanimar quem quer que seja nas suas sinceras tentativas libertárias. Não tenho a mania das discussões, não gosto de discutir por «dá cá aquela palha»; se desta vez provoquei a discussão, foi em resumo para: 1.º procurar evitar que um «ensaio», anunciado como demonstração da anarquia, sirva de irrisão aos adversários, quer, embora triunfante, se mostre absolutamente insuficiente para provar a possibilidade duma organização comunista libertária de toda a sociedade, quer venha a fracassar de todo ou a viver miseramente, como tem sucedido em geral; 2.º contribuir para que se não alastre mais um daqueles exageros ou exclusivismos desviadores, de que se ocupava o artigo traduzido de Volontá para o número passado; 3.º pôr os camaradas em geral e os iniciadores em particular de sobreaviso contra uma provável desilusão, que, sendo forte demais por demasiadamente forte ter sido o otimismo, pode levar até ao abandono do anarquismo, que nenhuma culpa tem desses desastres…

Não se trata de viver na «torre de marfim» do puritanismo, de pedir tudo ou nada, de fugir a realizações práticas. É que essas coisas têm, sob o ponto de vista anarquístico, bem pequeno valor prático, demonstrativo ou educativo; e quem lhes exagera tal valor é que é pouco prático, é que nada em plena utopia, é que tem da «prática anarquista» uma concepção bem irreal…

O que as cooperativas dessa espécie e outras miudezas vêm fazer mais positivamente, quase sempre, é afastar forças da tarefa essencial, dispersar energias e atenções, semear desânimos e discórdias e… oferecer um cómodo refúgio aos fatigados e desiludidos, que não ousam confessar o seu cansaço ou desengano e querem, pelo contrário, arrastar os outros atrás de si.

A história das «colónias» ou cooperativas comunistas é, aliás, verdadeiramente desastrosa. Em vez da independência material e da solidariedade moral que nelas esperavam encontrar os fundadores (abstraindo já da ideia de ensaio e de exemplo), as «colónias comunistas» têm produzido sobretudo os atritos forçados, a incómoda e estreita coabitação, o excesso de trabalho, os conflitos amorosos, as rixas e o ceticismo. E o pior é que os magoados vêm amiúde atirar-se depois ao anarquismo — como se este tivesse culpa… dos falsos conceitos que dele se formam!

Os camaradas do grupo Avante pelo Futuro sã́o sinceros, ardentes, entusiastas, pelo que do fundo do coração os felicito; e dizendo que vivem entre montanhas, explicaram e justificaram muita coisa. Falta-lhes um meio operário em que empreguem a sua atividade, uma organização operária na qual trabalhem, etc.; e como têm sede de ação, buscam aplicação para a sua energia.

Devem, naturalmente, ter um plano contreto, um projeto mais ou menos assente de «colónia»; e já que em público falaram da coisa, esperemos que se expliquem sobre os meior de pôr em prática o seu projeto; os recursos que julgam necessários; o número, situação, sexo, etc., dos cooperadores; o modo de produção e de consumo; as coisas que produzirão e que terão de comprar; o problema da habitação; etc.

Neno Vasco.
(De «A Aurora» do Porto, 21/12/1913)


Inclusão: 24/06/2021