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Primeira Edição: jornal diário A Batalha – ANO I, Nº228 | Terça Feira, 14 de outubro de 1919
Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/neno-vasco/obras-de-neno-vasco/a-casa-dos-trabalhadores-e-as-oito-horas/
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
O dia de oito horas de trabalho, ou dum modo mais geral, o encurtamento da tarefa diária é uma das reivindicações operárias imediatas mais fecundas em resultados morais e materiais.
Pelas oito horas se travaram, nos Estados Unidos, as grandes lutas corporativas de 1887, que trouxeram, com a conquista da regalia ambicionada, a negra tragédia de Chicago, a imolação no altar do Moloch insaciável da plutocracia, de onze vítimas que mais tarde um governador de Estado teve a corajem de provar e proclamar inocentes, a custo da sua própria carreira política…
Para manter em todo o mundo o objetivo dessas batalhas proletárias iniciadas num primeiro de maio, e comemorar aquela tragédia sangrenta de 11 de Novembro, é que o mundo operário instituiu a grande manifestação internacional do Primeiro de Maio – data de luto e de luta, evocação de heróis da grande guerra de classes, mortos em combate, parada e tenteamento de forças recrutadas.
Depois, nunca os trabalhadores organizados abandonaram a sua reivindicação mais querida. De tal mofo que, tendo os imperialismos rivais prometido às massas, de cuja anuência ou passividade haviam precisado, um rico folar de vitória, o advento duma era nova, e tendo-se produzido, com a revolução russa, a mais terrível das ameaças contra o privilégio capitalista, a burguesia internacional decidiu-se a legalizar a reforma – sujeita a adiamentos, restrições e sofismas, letra morta, em suma, enquanto a não tornar um facto indestrutível o direto esforço organizado e permanente dos trabalhadores.
Mas porque coloca o proletariado essa reforma acima das instáveis e precárias melhorias suscetíveis de realização efetiva em regime capitalista?
Porque essa reivindicação exprime um já elevado grau de dignidade e de consciência moral. Ela traduz as aspirações do trabalhador a uma mais humana vida do espírito. Ela é o índice da revolta consciente contra o caráter mais brutal da escravidão.
Pouco importa que o escravo seja bem pago: se todas as suas horas pertencem ao patrão, é um escravo miserável e sem alma, cuja vida brutal se limita às restritas funções vegetativas da besta de carga e do burro de nora.
Menos horas de labuta cotidiana são mais horas consagradas às suaves intimidades da família, ao embelezamento do lar, à cultura e recreio do espírito.
Uma faina diária mais breve é o organismo menos fatigado e mais são, uma prole mais robusta, a tuberculose e o alcoolismo reduzidos. É a taberna substituída pelo lar, pela biblioteca e pela associação.
Um esforço monótono e contínuo menos prolongado é o corpo menos lasso, a atenção menos cansada, os acidentes e catástrofes menos frequentes.
Finalmente, sob o ponto de vista económico, a redução de horas de trabalho é, para a classe trabalhadora, a diminuição de desocupados pelo aumento de pessoal nas indústrias, e a elevação dos salários pela escassez de concorrentes no mercado de braços; ao passo que, para a classe patronal, é a necessidade de contrabalançar esses efeitos, a carestia da mão de obra, com o desenvolvimento da maquinaria, os constantes aperfeiçoamentos técnicos, a concentração e melhor organização das indústrias – o que, por sua vez, proporciona ao proletariado motivo e ocasião de reclamar novas suavizações da fadiga e novas ampliações da liberdade, e põe à disposição da sociedade fontes cada vez mais abundantes de riqueza e bem-estar, à disposição dos produtores possibilidades e facilidades cada vez mais largas de emancipação e de reorganização social…
Oh! a rotina, a cupidez, a avidez impaciente cdo ganho, a estupidez e ignorância patronais, o apego ao privilégio, tudo isso resiste obstinadamente, tornando inevitável e incessante a luta. E o único comentário cínico das harpias burguesas à nobilíssima reivindicação proletária é feito nesta frase infame:
– Menos horas na fábrica, mais horas na taberna!
Nos Estados Unidos, na Inglaterra, na Austrália, verificou-se, pela estatística, a veracidade da proposição contrária: menos horas na fábrica são menos horas na tasca, e mais tempo no lar, na biblioteca e na associação.
E isto era bem fácil de prever. O trabalhador exausto pede ao álcool a chicotada que excita e dá uma aparência de energia. Em casa, mal lhe sobeja o tempo para comer e atirar-se para cima do catre, sem forças. A mulher é também amiúde arrebatada pela fábrica. O lar é nu e triste, sem um conforto, sem um adorno, sem um atrativo.
A sua renovação só vem com os legítimos e necessários ócios, duramente conquistados à cobiça patronal. O produtor repousado ganha gosto ao ninho, tem vagar para cuidar da higiene do corpo e da habitação, cultivar uma flor, adornar uma parede, arquitetar uma comodidade. Esses preciosos cuidados são já em si um entretenimento.
Depois vem o alargamento das suas curiosidades e sentimentos artísticos e intelectuais. Prende-o a leitura, chama-o o teatro. A arte e o livro afirmam-lhe a alma.
Vai à associação, ao sindicato, levado pelo interesse e pela sedução da ideia. Lá encontra um ambiente adequado ao seu estado de espírito, um convívio grato aos seus sentimentos de homem do trabalho, o calor das grandes paixões sinceras e o estímulo dos mais fecundos exemplos. E se lá encontra também o conforto convidativo da luz, do ar e da arte, ei-lo definitivamente roubado às consolações dúbias do botequim e às ilusórias fustigações do álcool.
E é esse nobre chamariz que os trabalhadores conscientes devem oferecer aos seus irmãos da oficina e do campo. Um socialista francês ficou assombrado ao encontrar na Itália, em cidades cinco, seis vezes menores do que Paris, Casas do Povo, verdadeiros Palácios do Trabalho, que o proletariado francês ainda não soube edificar. Elas atestam quanto pode a iniciativa arrojada, coadjuvada pela fé e tenacidade de muitos.
Pois bem! Entre nós, graças à conceção arrojada de Eduardo de Freitas, surgiu a mesma ideia generosa, que é preciso a todo o custo realizar e generalizar. Vastas e luminosas Casas dos Trabalhadores, com amplas salas para assembleias, bibliotecas, conferências, concertos, espetáculos! A música, o teatro, a arte declamatória e didática, todas as artes, servidas pelos artistas sindicados, enchendo os merecidos ócios do trabalhador, enriquecendo-lhe o cérebro, burilando-lhe o sentimento! Grandiosa e tentadora empresa!
Essas realizações não estorvarão, mas pelo contrário favorecerão e consolidarão a nossa obra essencial. Nós temos que construir um mundo novo em todas as suas partes, e atrair, preparar, educar os seus obreiros.
O empreendimento tenta as coragens e as vontades: os trabalhadores saberão levá-lo a cabo e dar uma primeira prova palpável da sua força.