O feitiço contra o feiticeiro

Neno Vasco

Maio de 1919


Primeira Edição: jornal A Aurora do Porto, 1 de Maio de 1919

Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/neno-vasco/obras-de-neno-vasco/o-feitico-contra-o-feiticeiro/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Cada beligerante se pretendia, contra o outro, o defensor exclusivo da civilização e da democracia. E o estribilho da luta da liberdade contra o imperialismo foi entoado em todos os tons.

Cá deste lado das trincheiras, muito nos badalou o sino rachado das liberdades em perigo e das miríficas promessas. E agora que os ingénuos assistem boquiabertos ao cair das máscaras, aliás tão mal afiveladas, temos o feitiço virado contra o feiticeiro.

Os paladinos da democracia mostram-se como a expressão mais retinta do imperialismo e da reação burguesa, e a europa oriental e central, livre do cancro czarista e kaiserista, regenerada pelo socialismo, é agora o baluarte da civilização nova contra a barbárie plutocrática.

Em vão esta tenta ainda, com a voz mal segura, entoar a velha ária da defesa da liberdade — a que nos deu uma feroz ditadura militar — e da civilização — que nos arrastou à hecatombe — contra a tirania e selvajaria bolchevistas. A cantilena está desafinada. A pateada generaliza-se na plateia imensa. O gado, que se deixou conduzir ao matadouro, escoiceia agora, indómito, desenfreado. O feitiço virou-se contra o feiticeiro, o armador foi recolhido na sua própria armadilha.

E circunstância a acentuar: a revolução foi iniciada pelo país e pelo partido que mais intransigentes e unânimes se mostraram contra a guerra e a união sagrada. Em Zimmerwald, a extrema esquerda era constituída pelos bolchevistas russos.

A revolução russa sacudiu energias, deu o exemplo formidável, animou as oposições em todos os países, reanimou o socialismo. Ela foi o facho incendiário de todas as explosões, na Bulgária, na Hungria, na Áustria, na Alemanha.

Ainda agora acabo de o reconhecer, duma maneira retumbante, o testemunho insuspeito de Lloyd George: “os alemães ao passo que ruía a front que sustentavam em França, tendo o país ameaçado por uma invasão, com as forças vencidas, o desastre eminente, sustentavam na frente russa um exército de um milhão de homens, porque estavam tão envolvidos que não podiam desembaraçar-se.”

E obrigados a distrair do ocidente este exército colossal, os imperialistas alemães, viam ainda estas tropas contaminadas de bolchevismo, apesar de escolhidas de prepósito entre as populações mais atrasadas, entre os bávaros. São precisamente os bávaros regressados da Rússia que fazem da Baviera o foco extremista da Alemanha!

De modo que, sob todos os pontos de vista, foi a revolução russa que venceu a guerra, e é ela que há de acabar de vencer contra todos os beligerantes. Ceci tuera cela.

E em todos os países, o contágio russo foi acolhido e favorecido pelos Zimmerwaldistas, pelos antiguerristas, pelos inimigos da união sagrada, e contrariado pelos majoritários, pelos socialistas governamentais, pelos social-patriotas, que levam por vezes o seu despeito até ao desvairamento e acção policiesca. A luta entre espartaquistas e majoritários, o dualismo Ebert-Liebknecht repete-se em todos os países.

Mesmo nos países “vencedores”, como a Inglaterra e a França, o fermento revolucionário é o mesmo, parte dos mesmos elementos e encontra as mesmas resistências, francas ou disfarçadas, decididas ou hesitantes.

Na Itália, a revolução acha o terreno preparado pela intransigente oposição à guerra, que conquistou para o socialismo um prestígio enorme. Foi o partido socialista italiano o convocador de Zimerwald e Kienthal, e ainda agora rompeu definitivamente com a chamada segunda internacional, para aderir à terceira fundada pelos revolucionários russos.

A questão, entre socialistas, nunca foi saber se conviria mais a vitoria dos aliados ou dos impérios centrais, ou melhor, qual seria o menor dos males.

A grande questão era saber a política, o método a seguir para a aproveitar, em inteira vantagem do verdadeiro socialismo, a crise revolucionária que a conflagração mundial havia de provocar, segundo as esperanças de todos.

Hoje, diante dos factos evidentes, está a demonstração feita, pode ser retirada a conclusão.

Como desenha no Avanti! um artista do lápis, as duas florinhas solitárias de Zimerwald e Kienthal vão pulando numa ampla e ridente primavera.

A trémula luzinha do início, sacudida pelo vendaval da guerra, prestes a extinguir-se sob a rajada da reação militarista e patrioteira, fez-se fogacho, labareda, incêndio.

E ei-lo que saúda a nova aurora numa alegria crepitante!


Inclusão: 24/06/2021