A Defesa Acusa
De Babeuf a Dmítrov

Marcel Willard


A CARTA DE LÊNIN SOBRE A DEFESA(1)


capa

Em junho de 1904, certo número de militantes do Partido Operário Social-Democrata(2) da Rússia são presos.

E eis que, no mesmo mês, é promulgada uma lei de instrução criminal visando os acusados políticos, a qual, em certo número de casos, substitui por um processo judiciário as medidas administrativas.

Contra essas novas formas de repressão, que tática nova é preciso adotar?

É conveniente responder ao juiz?(3)

Ou seria melhor negar-lhe toda a competência e recusar-se a defender-se?

Será preferível limitar essa recusa à formação de culpa e fazer, na alegação final, uma profissão de fé política?

Ou não haverá inconveniente em participar da instrução do processo e dos debates e em usar, perante o tribunal, todas as possibilidades de agitação?

Deve-se ou não apelar para o concurso de um advogado e que papel atribuir-lhe?

Deve-se declarar membro do Partido ou simplesmente confessar-se adepto das ideias que ele exprime?

A Lênin é que os prisioneiros se dirigem para pedir conselhos.

Lênin responde-lhes a 19 de janeiro de 1905 e é essa carta famosa que foi publicada em 1924 no Proletarskaia Revolutsia(4).

Que modéstia do grande estrategista nessa resposta! Que prudência de sábio! Que lição para os espíritos suficientes ou confusos!

Não expõe suas reflexões senão para abrir um debate, que a experiência ulterior dos prisioneiros alimentará, evitando assim dar, ainda que fosse, uma tentativa de solução aos problemas cujos dados formula.

Formula-os, porém, com um realismo, uma clarividência, um rigor dialético tais que os vinte anos de repressão, de terror branco, os dez e poucos anos de opressão fascista que se lhes seguiram, apenas puderam confirmar a orientação decisiva que ele dava à pesquisa de uma solução prática.

A estratégia recomendada por Lênin deve ser ajustada àscondições concretas do momento, particularmente à natureza do tribunal, às possibilidades da defesa.

1. Das duas uma:

Ou a defesa é impossível, e, portanto, não utilizável para a agitação politica. É, por exemplo, sufocada pela lei ou pelo juiz. Também é o caso em que se choca com uma acusação irrefutável, comprovada com documentos, com testemunhos que nos confundem.

“Isso também depende dos acusados: Se estão fatigados, doentes, se não há entre eles homens de envergadura para fazer frente aos juízes...”(5)

Pode, então, ser oportuno recusar qualquer participação na instrução e nos debates, boicotar o Tribunal. Nunca, porém, se [lacuna no original] praticar essa estratégia de recusa sem lhe ter, preliminarmente, proclamado as razões e sem a ter feito preceder de uma declaração de princípios, de um “protesto aberto, determinado, enérgico”.

Se, ao contrário, existe uma possibilidade de defesa polidamente utilizável, convém fazê-la valer, participar ativamente da formação de culpa e dos debates, travar a batalha com todas as armas possíveis.

“Seria evidentemente um erro privar-se da ocasião de fazer uma agitação contra o próprio tribunal”(6).

É o caso mais geral.

É mister que cada intervenção do militante seja digna de se transformar numa declaração do Partido e reverta em benefício de sua propaganda.

Vê-se que, em todas as hipóteses, mesmo as mais desfavoráveis à defesa, Lênin tem como desejável e necessária uma exposição de princípios, que convém preparar com o maior cuidado.

A esse respeito, não há melhores exemplos do que a defesa de Karl Marx, perante a corte criminal de Colonia e os discursos de Dmitrov perante o Tribunal do Império. O primeiro destes documentos foi publicado em 1895, com um prefacio de Engels. Quanto aos segundos, seus planos preparatórios, felizmente conservados por Dmitrov, constituíram objeto de uma publicação recente(7).

2. Será oportuno reconhecer-se membro do Partido ou de organização politica legal ou semilegal?

O militante deve considerar como regra absoluta afastar deliberadamente qualquer pergunta concernente à organização.

Um combatente feito prisioneiro não deve prestar informações ao inimigo.

Prestar-lhe informações implica em fornecer-lhe novos meios de nos dizimar, de nos enfraquecer.

Implica em entregar-lhe armas que ele ainda não pôde tomar, é armá-lo ainda mais e desarmar-nos.

Prestar-lhe informações é trair.

É preciso, portanto, declarar que, por motivos fáceis de compreender, nos absteremos de tratar das relações orgânicas, mas que professamos tais opiniões e como tal falaremos.

“Recuso examinar minhas relações orgânicas, silêncio sobre isso, não quero falar formalmente em nome de uma organização. Mas, como social-democrata, falo-vos do Partido e solicito-vos considereis minhas declarações como uma tentativa de expor precisamente as opiniões social-democratas que foram defendidas em todas as publicações social-democratas”(8).

É evidente que um chefe conhecido e reconhecido, um Dmítrov, um Rakosi, um Thaelmann, um Antikainen, não poderá esconder sua qualidade de chefe.

Mas o princípio exposto por Lênin é valido tanto para eles como para os militantes de base.

“Nada dizer, absolutamente, que possa informar o adversário sob a vida interna e a atividade da organização”.

Principio que não tolera nenhuma exceção.

Eis porque Dmítrov a ele se conformou estritamente, de modo que nem a polícia, nem o juiz que presidiu ao processo., nem a Corte de Leipzig puderam decifrar ou utilizar os endereços e os números de telefone cuidadosamente disfarçados, que tinham sido apreendidos em sua casa e de modo que suas ligações, sua atividade de militante ilegal permaneceram secretas.

3. Qual deve ser o papel do advogado?

Lênin, que conhecia bem (e não por acaso!) a corporação dos advogados, considerava-a, em seu conjunto, como essencialmente reacionaria. Sabia que, no melhor dos casos, um advogado, mesmo inteligente, honesto e liberal, é sempre levado pela sua formação profissional a tudo sacrificar ao sucesso de sua causa, à libertação ou à condenação no grau mínimo de seu cliente.

Nada há de injurioso nisso: é normal que um advogado escrupuloso, colocado entre seu dever de técnico, desejoso de assegurar uma defesa eficaz e seu cuidado de não entravar o sistema, na sua opinião “desajeitada”, do acusado que assiste, seja inclinado, “por construção”, a resolver esse caso de consciência em beneficio da eficacia técnica e em função do resultado que fixa como sua tarefa.

Só quando se tratar de um defensor mais militante do que advogado, é que poderá mais facilmente compreender e secundar o objetivo de seus camaradas, limitando-se a pôr ao seu serviço os recursos de seu talento e de sua experiência jurídica. E, ainda assim, esse advogado revolucionário, ou melhor, esse advogado revolucionário nunca deve deixar de defender-se a si mesmo contra sua deformação profissional e sua formação burguesa.

E quantos desses advogados conheci eu, inscritos num partido revolucionário, que, por não ter sentido ou assimilado seu papel, cederam, mais ou menos inconscientemente, o passo ao jurídico sobre o politico e, assim, crendo servi-los, desserviram seus camaradas acusados!

Além disso, Lênin tem enorme razão quando põe os militantes de sobreaviso contra as deformações liberais dos melhores advogados, ainda que inscritos no Partido Social-Democrata.

Mas, num sem número de casos, pelo menos quando o Partido é ilegal, não é a advogados revolucionários (que os poderes autocráticos ou ditatoriais expulsam de seus palácios de justiça) ou não apenas a eles (quando seu número é insuficiente ou sua experiência medíocre) que os acusados poderão confiar sua defesa.

Escolherão (quando tiverem direito à escolha) advogados liberais e, dentre eles, os mais inteligentes.

Mas, então, que o militante o saiba, não deve apelar para seu concurso ou aceitá-lo sem lhes ter apresentado suas condições. E a primeira delas é esta: que se limitem estritamente à sua junção de juristas.

E, para evitar que façam “manobras inconvenientes devem fiscalizar seu zelo, “mantê-los seguros nas mãos”, aplicar-lhes “os rigores do estado de sítio”.

Demos, agora, a palavra a Lênin, que, crua, porém justamente, definiu as relações do acusado politico e de seus defensores:

“Declarar-lhes antecipadamente: se te permitires, porcalhão, a menor inconveniência ou te lançares para o oportunismo politico (falar da incultura, do erro do socialismo, do repúdio da violência pelos social-democratas, do caráter pacífico do seu ensinamento e do seu movimento, etc... ou qualquer coisa desse gênero), interromper-te-ei imediatamente em publico; eu, o acusado, tratar-te-ei de miserável, declararei repelir tua defesa, etc... Levar à prática essas ameaças. Só contratar advogados inteligentes, não precisamos de outros; declarar-lhes antecipadamente: Limita-te exclusivamente a criticar e confundir as testemunhas e os procuradores na exclusiva verificação dos fatos e na estrutura da acusação; limita-te exclusivamente a desacreditar os aspectos do tribunal”...

“Os juristas são as pessoas mais reacionarias, dizia, creio eu, Bebei. Conhece teu lugar, amigo. Não sejas mais que jurista, mete a ridículo as testemunhas da acusação e do procurador, lança o Tribunal contra o juri dos países livres, mas não toca nas convicções do acusado e evita cuidadosamente emitir teu pensamento ou dizer o que pensas de seus atos”(9).

O papel dos advogados evoluiu, certamente, alguma coisa a partir de 1905. Produziu-se uma diferenciação.

Pôde-se ver alguns se revelarem militantes exemplares, que pagaram corajosamente seu tributo à repressão.

Por outro lado, pôde-se constatar a covardia de inúmeros “defensores”, que traíram sua missão, de lombo curvado perante as autoridades a que servem sua cumplicidade vergonhosa com a acusação.

Na maioria dos países fascistas, as tribunas de advogado, “depuradas” de seus elementos revolucionários e mesmo liberais, são juradas, submissas ao regime. E raros são os advogados, conformistas porém honestos, que preferem seu dever profissional à sua própria segurança.

Vale dizer que os militantes que comparecem perante os tribunais e as cortes marciais desses países, onde, sistematicamente, se recusa a admissão dos advogados estrangeiros, nem sequer têm o direito de escolher seu defensor.

E, à falta de defensor escolhido, atribui-se lhe um advogado ex-officio que, na maioria dos casos (para não dizer sempre) é um homem de confiança do poder.

Que fazer com esses partidários da acusação?

Recusá-los? Utilizá-los?

A essa questão, Dmitrov é que responderá pela palavra e pelo exemplo. Comentaremos adiante essa experiência peremptória.

O que, porém, não mudou de 1905 para cá, o que todo militante inculpado deve considerar como regra absoluta é que, entregue a si mesmo ou assistido por um defensor, ainda que escolhido, honesto e cuja defesa seja leal, o militante não deve contar senão consigo mesmo e só consigo mesmo para assegurar sua defesa política.

Esta regra não tolera nenhuma exceção.

Assim, quando Dmitrov pôde, em Berlim, durante a instrução de seu processo, contratar a defesa de um advogado escolhido, recomendado, conhecido por suas convicções não conformistas, não deixou de precisar-lhe, desde a primeira entrevista, que essa defesa deveria ter um caráter exclusivamente jurídico e que ele, Dmitrov, conduziria sua defesa política.

Deve ficar claro que o que varia, conforme o caráter, a atitude e os atos do defensor, é a natureza e a intimidade da colaboração entre o militante e ele, é a harmonia da dupla defesa politica e jurídica, é a combinação de sua dupla tarefa.

Mas o jurídico deve sempre permanecer subordinado ao politico. E é o militante que — com o conselho, no melhor dos casos, do técnico que se supõe digno de sua confiança — deve traçar a linha e conservar a direção.

Se se pudesse resumir nalgumas palavras o ensinamento sempre atual, mais atual do que nunca, da carta de Lênin, poder-se-ia formulá-lo assim:

Autodefesa politica e, subsidiariamente, jurídica.

De modo algum defesa pessoal.

Essa estratégia exige tanta elasticidade quanto firmeza.

A primazia do político, o sacrifício da defesa pessoal em prol da ofensiva politica, de modo algum postulam o desprezo dos fatores técnicos, dos meios de processo.

Ao contrário: sobretudo na ausência do defensor escolhido, o militante deve aprender e assimilar bem todos os recursos da lei, todas as possibilidades da defesa.

No fim de sua carta ao Comité Central, Lênin, tão modesto em suas conclusões quanto pujante em sua dialética, repetia que suas “reflexões antecipadas” não pretendiam resolver o problema.

“É preciso esperar", dizia ele, “que a experiência nos tenha esclarecido alguma coisa. E, na elaboração dessa experiência, os camaradas terão, na maioria dos casos, que se inspirar nas circunstancias concretas e no instinto do revolucionário(10).

Ora, durante trinta anos, a experiência invocada por Lênin foi levada a cabo por combatentes que, mesmo sem terem lido os conselhos do mestre, se inspiraram nele, objetivamente, graças ao seu “instinto de revolucionário”.

E é precisamente a experiência de Dmítrov, que confirma, entre todas, o ensinamento de Lênin, que o ilustra e adapta às condições atuais da repressão, das quais as praticas hitlerianas oferecem o tipo acabado.

Mas Dmítrov teve precursores, êmulos e discípulos. De Marx aos ferroviários de Bucareste, aos operários de Wuppertal, dos velhos bolcheviques de Rakosi, de Louise Michel a Anna Pauker. Seus exemplos, que vamos confrontar, nos permitirão estudar um pouco antes os princípios da autodefesa, de anatomizar-lhe a ossatura, da qual a lição de Leipzig constitui a coluna vertebral.

E é essa ossatura que cabe, a cada militante aprisionado, a cada refém dos regimes de terror, animar com sua carne, com seu sangue, com seu “instinto de revolucionário”.

São esses princípios que seu realismo bolchevique deverá saber ajustar firme e elasticamente às “circunstancias concretas”, que nem sempre nem por toda a parte são as mesmas.

A luta ilegal e legal contra a opressão, a resistência contra as violências repressivas do fascismo formam, forjam e temperam, cada dia, novos combatentes, preparam novos quadros para as gerações que surgem.

Cada revolucionário que enfrenta o juiz, o carrasco, é porta-voz responsável e porta-bandeira nas fileiras inimigas do grande exército proletário. Acrescentam uma pedra à fortaleza, um saco de terra à trincheira, de onde sairá a contraofensiva irresistível.

Nem todos têm o gênio de Marx, de um Lênin, nem todos têm a audácia, a autoridade de um Dmítrov; todos, porém, quaisquer que sejam sua experiência do combate e sua cultura, podem acrescentar alguma coisa à herança, enriquecer com seu próprio fundo o patrimônio coletivo, que se transmite, aumenta e completa de idade em idade.

Podem, nesse sentido, continuar os grandes mestres.

Mas talvez o esforço a despender seja menos penoso se tiverem presente ao espírito os grandes exemplos do passado, e, se assimilarem bem os ensinamentos dos nossos heróis, de nossos mestres, sem dúvida estarão melhor preparados para vivê-lo, para ilustrá-lo, para rejuvenescê-lo.

É para seu uso e para esse fim que nos propomos, aqui, popularizar alguns grandes exemplos, extrair ensinamentos do simples relato de alguns desses processos tipos, de alguns casos históricos de autodefesa, mostrando-lhes os aspectos positivos e negativos.


Notas de rodapé:

(1) Esta carta é conhecida sob o nome de Carta a Stassova, do nome de um de seus destinatários, a camarada Absoluto, que outra não era, sob um de seus pseudônimos, senão Helena Dmitriyevna Stassova. (retornar ao texto)

(2) O Partido Operário Social-Democrata, da Rússia, fundado em 1898, era o Partido Socialista, formado na tradição marxista. Depois do congresso de 1903, os elementos minoritários, reunidos em fração oposicionista, constituíram o Partido menchevique. A maioria deu origem ao Partido bolchevique. (retornar ao texto)

(3) Adiante veremos que, antes dessa época, os social-democratas russos tinham constituído regra observar silêncio absoluto durante toda a formação de culpa. (retornar ao texto)

(4) Vide Lênin: Obras completas, t. VII, Carta a H. D. Stassova e aos presos de Moscou, ps. 76-79, E.S.I., Paris, 1928. (retornar ao texto)

(5) Obra citada, p. 79. (retornar ao texto)

(6) Obra citada, p. 79. (retornar ao texto)

(7) G. Dmitrov: Cartas, notas e documentos datantes de minha detenção e do processo de Leipzig, traduzido do alemão por Marcel Willard, E.S.I., Paris, 1936. (retornar ao texto)

(8) Lênin, Obra citada, p. 77. (retornar ao texto)

(9) Obra citada, ps. 77-78. (retornar ao texto)

(10) Obra citada, p. 79. (retornar ao texto)

Inclusão: 05/06/2020