A Defesa Acusa
De Babeuf a Dmítrov

Marcel Willard


OS PRECURSORES
ANDRÉ MARTY


capa

Poucas são, dentre as figuras contemporâneas, tão populares, poucos são os heróis revolucionários mais odiados, mais caluniados peias oligarquias do capital.

Quem não conhece o legendário marinheiro do Mar Negro, o homem que, estendendo a mão de filho de comunardo aos trabalhadores bolcheviques atacados, incarnou a fraternização do exército com a classe operaria, estabeleceu, com o risco de sua vida, um laço vivo entre as duas Comunas, a Comuna francesa de março e a Comuna soviética de outubro? Não é esta a oportunidade de rememorar a epopeia da revolta. A intervenção ofensiva dos exércitos aliados, da esquadra francesa no Mar Negro, sem nenhum pretexto, nem declaração de guerra. O bombardeio e os massacres de Kherson e Odessa. Graças à resistência militar e ao trabalho dos bolcheviques, as unidades da infantaria e da esquadra francesa, uma após outra, fraternizaram com eles. O mecânico principal do torpedeiro Le Protet, André Marty, foi a alma do motim naval. O resto sabe-se: a evacuação de Sebastopol, a entrada das tropas vermelhas, a partida precipitada da esquadra, as promessas não cumpridas dos oficiais, depois, após o pânico, uma vez esses senhores em lugar seguro, as represálias dos conselhos de guerra...

Marty, denunciado, fora preso a 16 de abril de 1919, transferido para terra, depois encarcerado a bordo do cruzador Waldeck-Rousseau, cuja equipagem se revoltaria três dias mais tarde, depois embarcando no Protet ameaçado de morte e transportado para Constantinopla.

Marty, animador, mas também historiador da revolta, relatou as respostas dos amotinados da engenharia, julgados a 10 de julho:

“Como o presidente reprovasse o sapador Lesueur (que foi condenado à morte, depois encarcerado na casa central de Nimes até janeiro de 1925, uma vez que sua pena fora comutada) sua simpatia pelos bolcheviques, ‘eu também', respondeu Lesueur, ‘sou um operário como eles; vejo e ajo de acordo com minhas opiniões’”(1). Outro, Terion, também foi corajoso; era acusado de ter declarado a um tenente que os soldados estavam cansados de ser arrastados como carneiros e não tardaria a que se trocassem os papéis:

— “Nada renego, replicou ao presidente, do que disse. Aceito antecipadamente vosso veredito, porque não tendes competência para discutir esse assunto e é perder tempo querer assegurar a defesa. Pediram voluntários no exército do Danúbio para a Rússia. Ninguém se apresentou. Fomos enviados para lá à força. Em vista da tarefa abjeta que nos faziam cumprir, era natural que sacudíssemos o jugo que nos oprimia e expuséssemos perante todo o mundo a ignomínia de nossos dirigentes. Fraternizamos, e, se tivéssemos sabido da trapaça de vossas promessas, teríamos ficado lá com as armas e as bagagens que aí estão”.(2)

Quanto ao próprio Marty, era levado a 11 de junho perante o conselho de guerra reunido a bordo do Paris, na baía de Constantinopla, acusado de ter mantido ligações com o “inimigo” e de “ter formado um complot visando apossar-se à força do torpedeiro Protet e passar-se para o inimigo entregando-lhe o barco”.(3)

Seu defensor, que se lhe tinha apresentado como advogado na Corte de Apelação de Paris, cedo se revelou um verdadeiro inimigo. Chegou a pedir o exame mental de seu “cliente”! É claro, o laudo médico concluiu pela responsabilidade plena e inteira de Marty, responsabilidade que Marty reivindicava alto e bom som.

A 4 de julho, em sessão pública, apesar das interrupções do presidente, Marty falou pela segunda vez durante duas horas. Infelizmente, não temos o texto dessa declaração pela qual se solidarizou com todos os marinheiros e soldados acusados de se terem recusado a combater a Revolução, e legitimou sua revolta histórica.

As únicas palavras que seu singular defensor, que nem mesmo sequer o fora visitar, se achou no dever de dirigir-lhe foram as seguintes: “Não esqueça que está jogando a cabeça!”

Absolvido da imputação de entendimento com o inimigo, Marty foi condenado a cinco anos, por incitação dos marinheiros à deserção e por complot contra a autoridade do comandante, a vinte anos de trabalhos forçados, à degradação militar e a vinte anos de interdição de residência.

Algemado, transferido para Toulon, Marty é arrastado de prisão em prisão, e só verá abrirem-se-lhe as portas da central de Clairvaux, em 1923, graças à ação libertadora do proletariado, que o elegerá quarenta e duas vezes.

Em setembro de 1925, em consequência de um artigo sobre os escândalos da Maritime de Toulon, o governo radical ainda o faz condenar por sua atividade contra a guerra do Marrocos, não obstante, desde 1924, os eleitores do Seine-et-Oise o terem escolhido para deputado.

Sua ação contra a guerra, sua ação em favor da revolução chinesa e dos soldados e marinheiros, valem-lhe novas condenações. Em 1927, estava detido na prisão da Santé, quando foi publicada, a 23 de agosto, num semanário inglês, The Referee, uma entrevista do marechal Foch. O marechal afirmava nela que, se, em fevereiro de 1929, o tivessem escutado, ter-se-iam fornecido munições e materiais de guerra aos Estados vizinhos da Rússia Soviética e, assim, se teria acabado, de uma vez por todas, “com a ameaça bolchevique”. Mas, acrescentava, “os acontecimentos que se seguiram mostraram quanto eu tinha razão”: era um apelo direto para uma nova cruzada contra a URSS.

Marty, que jogara a vida e a liberdade na gloriosa revolta que pusera fim à primeira dessas cruzadas, reagiu a essa provocação, escrevendo, de sua cela, ao marechal, pedindo-lhe que tivesse pudor. Sua carta severa termina assim:

“e no dia em que quiserdes recomeçar o crime de 1919, faremos tudo, com o apoio integral do nosso Partido Comunista, para que, dessa vez, os soldados e os marinheiros não se contentem com recusar-se a marchar, e ponham suas armas ao serviço dos operários e dos camponeses, a fim de abater, pela revolução social, vosso regime capitalista de guerra, de lama e de sangue”.

Foi a 26 de agosto de 1927 que a carta foi publicada pelo Humanité: a 25 de agosto, três dias depois da pujante manifestação do proletariado parisiense, em honra de Sacco e Vanzetti.

No dia seguinte, era aberto novo inquérito e Marty privado do tratamento político, trancado numa masmorra. Marty, apoiado pelos trabalhadores, exigia sua volta ao setor político e a obtinha.

Entrementes, o ministério, afobado, negara autenticidade à entrevista do marechal. Tentava-se abafar a questão. Sobretudo, nada de tribunais. Nada de testemunhas oficiais. A aplicação silenciosa das “leis celeradas” entre as quatro paredes discretas de uma câmara correcional.

A 7 de dezembro de 1928 é que Marty, encarcerado desde o mês de janeiro, comparece perante a décima segunda Câmara sob a acusação ritual de ter incitado militares à desobediência “com o fito de propaganda anarquista”.

A autenticidade da entrevista é confirmada, sem desmentido possível, pelo redator do jornal londrino que a publicara. Depois dos depoimentos de Marcel Cachin, de um soldado e de dois marinheiros do Mar Negro, dá-se a palavra a Marty, que não hesita em contra-atacar: a entrevista era verídica, isso era o essencial e, portanto, o governo é que mentira. O marechal falara do passado com vistas ao futuro. “Eu também”, diz Marty, renovando a senha e o grito de esperança dos sublevados:

— “Em minha carta, o ponto no qual não insisti bastante, nessa evocação do passado, foi a esperança imensa que nos enchia o peito quando nos amotinávamos, quando víamos os camaradas tombarem, uns fuzilados pelas costas, outros atirados à prisão; a esperança de que, quando chegássemos à França, senhores dos nossos barcos, a revolução estalasse para ajudar a Revolução russa... O marechal Foch dissera: ‘destruirei o proletariado russo’”. Respondi-lhe: “Bem, Senhor marechal, aceitamos a luta e, no dia em que quiserdes recomeçar, o proletariado francês recomeçará. Era perfeitamente claro”.

Era difícil, com efeito, formular mais claramente, perante a opinião das massas, a questão da guerra contra a U R S S e sua transformação em guerra civil.

— “Nunca, nem as prisões nem as forças armadas abafarão o movimento revolucionário do proletariado francês, que deu tantos exemplos no passado. Se, um dia, o marechal Foch, ou qualquer outro, se o imperialismo francês quisesse levar à prática suas ameaças, se quisesse tentar de novo afogar no sangue a Revolução russa, repetir, na Rússia e, em maior escala, o massacre da Comuna, nesse dia, Senhores Juízes, ainda que Marty estivesse em vossas prisões, a Revolução surgiria na França e abateríamos a sociedade capitalista”.

Quatro anos de prisão, três mil francos de multa. Menos de três meses depois, os trabalhadores de Putteaux respondiam à décima segunda câmara, fazendo de Marty seu deputado.

Não foi apenas perante os juízes que Marty sempre se comportou como bolchevique: ninguém melhor do que ele, nem com mais autoridade, mais tenacidade, soube enfrentar seus carcereiros.

Todos os que foram seus companheiros de cadeia, em Nimes, na Santé, em Clairvaux, nas quatorze prisões por onde passou, foram, graças a ele, mais respeitados. Nunca Marty aceitou nenhum favor que fosse recusado a seus camaradas. Nunca cedeu no que concerne aos seus direitos e aos seus camaradas, que conhecia admiravelmente. Impôs-se por toda parte, em todas as prisões, junto a todos os diretores, como defensor reconhecido, indiscutido, de todos os prisioneiros políticos e militares, os quais sabia agrupar num bloco indivisível.

Nunca se sentiu só entre as quatro paredes de sua cela: sua ação sabia associar não apenas seus codetidos, mas as massas operárias, que o ouviam, o compreendiam, o apoiavam.

Os habitantes da aldeia de Clairvaux não esquecerão tão cedo o “jornal falado” do qual tomara a iniciativa e que, por um porta-voz, os mantinha a par dessa luta e da luta universal do proletariado, Quantas vezes, durante a estada de Marty, se ouviram os prisioneiros da Santé e de Clairvaux cantar sob sua direção a Internacional! Nenhum militante francês foi, ao mesmo tempo, mais caluniado e mais respeitado.

Herdeiro da tradição francesa dos Babeuf, dos Blanqui, dos Varlin, filho e continuador dos comunardos, discípulo dos bolcheviques, André Marty sempre soube mostrar às massas como se defende um militante revolucionário, como se comporta um chefe comunista em frente das forças inimigas que acreditam tê-lo preso nas mãos.


Notas de rodapé:

(1) André Marty: A revolta ão mar Negro, p. 369. Nova edição, B.E., 1932. (retornar ao texto)

(2) Idem, ps. 369-370. (retornar ao texto)

(3) Idem, p. 383. (retornar ao texto)

Inclusão: 05/06/2020