A Defesa Acusa
De Babeuf a Dmítrov

Marcel Willard


O PROCESSO DE LEIPZIG
O Segredo de Dmítrov


capa

Como e por que Dmítrov venceu? Como, apesar do estrito isolamento em que estava confinado, apesar das peças

se lhe pregavam, como e por que esforço exemplar de coragem, de energia, de domínio de si, de inteligência, de gênio intuitivo e dedutivo, o herói da defesa ofensiva pôde decidir a sorte de semelhante batalha, merecer tal vitória, contribuir de maneira decisiva para a conquista de tais triunfos?

É esse “segredo” de Dmitrov, é esse “milagre” de Leipzig que o próprio Dmitrov, o Dmitrov da história, ainda maior do que o Dmitrov da legenda, no-lo vai explicar.

Não se deve crer que a luta tenha começado a 21 de setembro de 1933, no momento preciso em que se abriram os debates públicos perante o Tribunal do Império.

Esses debates foram precedidos de sete meses de inquérito policial e judiciário secreto. Que saberíamos desses primeiros combates, dessa preparação estratégica, se Dmitrov vencedor não tivesse sido liberto?

Mas se, hoje, estamos em condições de analisar, parte por parte, as fases principais do inquérito, isso se deve a que Dmitrov soube conservar, tirando proveito da confusão dos vencidos, parte importante de suas cartas, de suas memórias, de suas notas.(1)

Para bem seguir a linha de Dmitrov, é mister recordar claramente os objetivos visados pelo inimigo, ao montar, depois da provocação do incêndio, a provocação do processo.

Esses objetivos, o próprio Dmitrov os enumera num artigo publicado pelo Pravda de 4 de março de 1934 e reproduz, à guisa de prefácio, na edição de suas Cartas, notas e documentos:

Em primeiro lugar:

desculpar os provocadores.

Em segundo lugar:

“Justificar o terror selvagem e as monstruosas perseguições contra o proletariado revolucionário; legitimar perante a opinião pública a destruição barbara de enormes valores culturais, a cruzada contra a ciência, o aniquilamento impiedoso do liberalismo burguês de esquerda, os pogrooms de massas, os assassínios, etc.”(2)

Em terceiro lugar:

“Alimentar uma nova campanha anticomunista. O processo deveria servir de base para um novo processo monstro contra o Partido Comunista Alemão”.(3)

Em quarto lugar:

“O processo deveria fornecer a prova de que o governo fascista combatia ‘vitoriosamente’ o comunismo mundial e tinha salvo a tempo a Europa capitalista do perigo comunista. As cabeças dos quatro acusados deveriam constituir a moeda de sinal que os fascistas empregariam em suas próximas negociatas com os países capitalistas; estes, em compensação pelos ‘méritos históricos’ de Hitler, dar-lhe-iam concessões na questão da igualdade dos armamentos, etc.”(4)

Mas, quando Dmitrov foi preso, dez dias depois do incêndio do Reichstag, que sabia?

Desde a origem, disse-me ele, uma tríplice verdade impôs-se-lhe com evidencia:

  1. Tratava-se de uma provocação governamental.
  2. Os nazis é que tinham incendiado o Reichstag.(5)
  3. Nunca se cogitaria, no decorrer do processo» de buscar os verdadeiros incendiários; era mister que os culpados fossem inimigos do regime, isto é, comunistas.

Partindo desses dados, estabelece as primeiras diretrizes do seu plano de ação, que consiste em repelir politicamente a incriminação de incêndio.

Demonstrar que os comunistas não podiam ser os incendiários, que esse ato só poderia ter sido levado a cabo por provocadores ou por loucos, que o incêndio do Reichstag era um atentado contra a classe operaria alemã e seu Partido Comunista, dessas verdades politicas evidentes é que Dmitrov vai tirar a prova de sua inocência:

“A consequência efetiva e lógica é que eu, pessoalmente, como comunista e, particularmente, como comunista búlgaro dirigente, não podia ter nada que ver com o incêndio e efetivamente nada tinha com ele”.

Só a esse título, completamente accessório, subsidiário, e que Dmitrov consentirá em desculpar-se, pelo que os juristas chamam “meio de fato”. Esse meio de fato era decisivo, uma vez que demonstrava que, durante a noite do incêndio, Dmitrov não estava em Berlim e só soubera do acontecimento na manhã de 28, no trem de Munique.

— “Declarei”, disse-me Dmitrov, “que essa questão, tal como as outras, só tinha para mim significação de segunda ordem. Meu álibi verdadeiro era o fato de, como comunista responsável, não poder ser o incendiário do Reichstag. Mas, se fosse necessário, por motivos jurídicos, esclarecer esse ponto, eu seria capaz de provar que, naquele dia, estava, não em Berlim, mas em Munique, onde tinha encontro com um amigo búlgaro. Por motivos fáceis de compreender, recusei dar qualquer informação sobre o objeto de nossa entrevista e sobre meu amigo. Mas, para o caso de que o fato revestisse qualquer importância no inquérito, propus perguntar para Munique se não es tivera lá nessa data e se não me tinha alojado no hotel Roter Hahn sob o nome de Dr. Hediger”.

Assim, por mais peremptório que fosse esse meio, esse álibi, que devia juridicamente bastar para que fosse dispensado qualquer outro esforço de defesa e com o qual Torgler se teria contentado, Dmitrov só o empregou com reserva. De modo algum aparenta menosprezá-lo. Relega-o porém a segundo plano, para demonstrar perfeitamente que a única prova decisiva, o único álibi decisivo valido aos olhos de um militante, aos olhos de um chefe bolchevique é a prova ou o álibi político e a única defesa que merece um papel objetivo é a defesa política.

A política é o fim: que o jurídico não ultrapasse sua função de meio.

Deve-se dizer que seja justo menosprezar esse meio? Longe disso. Politica e jurídico não se excluem. Não se deve dizer que seja político ignorar o direito.

Em várias ocasiões Dmitrov lembrou-se com insistência de que: “para uma boa defesa política, é mister bem conhecer e utilizar a lei. É mister prestar atenção, paragrafo por paragrafo”, sempre, porém, do ponto de vista político e não da defesa pessoal.

Noutros termos, quando o militante está em presença de uma acusação concreta, deve refutá-la com fatos concretos, porém, “jamais, sem perder de vista o objeto político da defesa”.

Tal a ideia diretriz que dominará toda a defesa de Dmitrov desde o primeiro inquérito policial até o encerramento dos debates.


Notas de rodapé:

(1) A esse respeito, também, Dmitrov mostrou-se fiel à tradição de Marx e de Engels. Engels, com efeito, desde o início processo de Colônia, escrevia a Marx: “É mister, antes de mais nada, conservar as cópias exatas de todos os documentos... com todas as assinaturas que os identificam: esses materiais constituirão brilhante série de peças justificáveis.” (retornar ao texto)

(2) G. Dmitrov: Cartas, notas e documentos da época do minha detenção e do processo de Leipzig, ps. 9-10, E.S.I., 1936. (retornar ao texto)

(3) Idem, p. 10. (retornar ao texto)

(4) Idem, p. 10. (retornar ao texto)

(5) Goering acaba de confessá-lo, em pleno Tribunal de Nuremberg: os incendiários do Reichstag foram realmente os nazistas. Finalidade: eliminação do Partido Comunista Alemão. (Nota dos Editores, janeiro de 1946.) (retornar ao texto)

Inclusão: 05/06/2020