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Vimos como, durante mais de seis meses, se tinham preparado as testemunhas e os depoimentos, como, à falta de comunistas, à falta de operário autentico, se tinha apelado para criminosos de direito comum, morfinômanos, tarados, espiões, deputados nazis.
Os papéis tinham sido bem distribuídos, as lições bem aprendidas.
Excessivamente bem.
E era precisamente esse excesso de cuidado que iria trair o artifício; a própria perfeição do círculo é que denunciaria o compasso.
O famoso “círculo diabólico” das testemunhas de acusação estava tão bem fechado, que bastaria a Dmitrov traçá-lo publicamente para suscitar a confusão e o escândalo nas fileiras inimigas.
Já a 28 de outubro, Dmitrov tinha lançado fogo à ofensiva:
“As testemunhas desempenham, neste caso, papéis que lhes foram distribuídos”.
Mas foi a 31 de outubro, depois de ser ouvida a testemunha Lebermann, que Dmitrov fechou a acusação dentro do seu próprio círculo:
“O círculo das principais testemunhas contra nós, acusados comunistas, fechou-se hoje. Começado pelos deputados ao Reichstag do Partido nacional-socialista, por jornalistas nazis, completou-se hoje por um ladrão”.(1)
A princípio, o tribunal não se animou a acreditar em seus ouvidos; a imprensa, porém, tinha ouvido. O presidente não se animou a compreender: o mundo, tinha compreendido.
No mesmo dia, os juízes passavam de mão em mão esse famoso círculo, o “círculo diabólico”, no qual, com sua própria mão, em três cores, Dmitrov tinha explicado geometricamente seu pensamento.
Os depoimentos encontravam-se confrontados, opostos uns aos outros, seus autores caracterizados (deputados ou jornalistas nazis, criminosos de direito comum, ladrão e morfinômano). O desenho e a legenda eram tão claros que bastava um golpe de vista para apreender-lhe o alcance terrível: esboçando sinópticamente as contradições e a simetria demasiado visível dos testemunhos, o “círculo diabólico” evidenciava a forgicação. Melhor ainda: a marca da fábrica!
Com efeito, o desenho incluía dois círculos concêntricos:(2) o círculo exterior revelava o esquema dramatúrgico dos encenadores do processo, que haviam cometido o erro de serem demasiado “conscienciosos”, de serem falhos de fantasia, de não esquecerem nenhuma das combinações possíveis, as quais deveriam unir, comprometer, acusar as personagens: Torgler com Lubbe, Torgler com os búlgaros, os búlgaros com Lubbe.
E o círculo interior continha um ponto de interrogação e um ponto de exclamação, cuja ironia não escapou indefinidamente ao próprio presidente Bunger: era impossível designar melhor o cenarista, o regente, o inspirador misterioso da provo cação e do espetáculo, aquele que, desde 12 de outubro, Dmitrov chamava, por oposição ao lamentável Fausto Van der Lubbe, de Mefistófeles do incêndio.
Oh! se tivesse sido possível abafar o escândalo, surrupiar as palavras e o desenho de Dimitrov! Mas era impossível porquanto todos os grandes jornais do mundo iriam falar dele. E eis porque, no dia seguinte, o Voelkischer Beobachter punha em evidencia o propósito que o presidente tinha deixado passar. O presidente Bunger, dócil, afobado, iria tentar obter perdão por sua lentidão de espírito, por sua fraqueza, por sua derrota, pronunciando contra Dmitrov a terceira exclusão dos debates.
Tarde demais: o golpe tinha atingido o alvo e no momento preciso em que podia produzir maior efeito. A acusação, já muito desmantelada, ruía agora sob o peso do ridículo perante a opinião popular. O círculo diabólico ficava marcado com ferro em brasa na fronte do Mefistófeles-Goering.
Já o dissemos, Dmitrov tinha o gênio de perceber, no mesmo instante, o ponto fraco e seu tiro preciso, rápido, nunca falhava. Em vão o presidente se agitava, batia a campa, ameaçava, dava murros na mesa, cortava ou retirava a palavra: estava dita a palavra morta, o alvo atingido e Dmitrov não se sentava de novo sem que tivesse atingido seu fito, furado o balão demasiado bem cheio.
Algumas dentre as perguntas e observações de Dmitrov ficaram como s ou legendarias. O segundo Livro Pardo(3) relata algumas delas.
A uma testemunha, que tinha em mira esmagar Torgler, Dmitrov deixa dizer tudo o que tinha a dizer e lança-lhe intempestivamente:
— “Quem vos soprou essas declarações?”
Ao comissário Heisig, que tinha interrogado Van der Lubbe e, em seu relatório, pretendia que o desgraçado holandês lhe falara correntemente em língua alemã, pergunta:
— “Era por seus próprios lábios que Van der Lubbe falava correntemente alemão? Foi com seus próprios lábios e com sua própria voz que ele declarou o que serve de base para a acusação?”
Quando o nazi Kroyer afirma ter visto e ouvido, no Reichstag, Popov e Torgler discutirem um com o outro:
— “Em que língua?” pergunta-lhe simplesmente Dmitrov, que recorda assim ao Tribunal, ao público, que Popov não sabe alemão e Torgler ignora o búlgaro.
Foi Dmitrov quem, por instinto, reconheceu e denunciou a psicopatia da testemunha Grothe e a anomalia mental de Van der Lubbe.
É ainda Dmitrov quem, com uma palavra desdenhosa, envergonha o espião amador ou profissional:
— “A formação de culpa durou 8 meses; o processo, 2. Será que a acusação não tem provas suficientes para ter recorrido a semelhantes meios?”
Foi ele, enfim, quem confundiu o inspetor Scranowitz, quando este, depois de ter declarado perante o Tribunal, pela primeira vez, que tinha visto os três búlgaros no Reichstag, é forçado a bater em retirada, alegando que é possível que se tivesse enganado, mas que efetivamente viu homens que se lhes assemelhavam:
— “Quando eu vi o inspetor Scranowitz pela primeira vez, tomei-o por um terrorista macedônio que tinha na consciência o assassínio de dez comunistas e se parecia muito com Scranowitz. Só mais tarde é que reconheci que esse homem era um respeitável funcionário”.
As lições tinham sido bem ensinadas: as testemunhas, bons discípulos, tinham-nas recitado bem. Bastava, porém, um choque como esse, uma mordidela no ponto desejado, no momento desejado, para que a testemunha perdesse a compostura e o mecanismo, tão bem engendrado, se desarranjasse.
Notas de rodapé:
(1) Idem, fac-símile n. IV. (retornar ao texto)
(2) Idem, fac-símile n. IV. (retornar ao texto)
(3) Dmitrov contra Goering (Segundo Livro Pardo), páginas 200 e segs. Ed. du Carrefour. (retornar ao texto)