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Nas mãos de Lênin, o partido se converteu num instrumento histórico insuperável. As dezenas de milhares de militantes ilegais que, após as jornadas revolucionárias de fevereiro de 1917, voltavam a tomar contato, estavam a ponto de constituir uma organização que as amplas massas operárias e, em menor medida, as camponesas, considerariam como própria. Tal organização iria dirigir sua luta contra o governo provisório, conquistar o poder e conserva-lo. Portanto, apesar da luta entre frações e da repressão, Lênin e seus companheiros triunfaram aonde outros marxistas que, a principio, gozavam de condições mais favoráveis, haviam fracassado: pela primeira vez em toda a existência dos partidos socialistas, um deles iria vencer.
Existe toda uma historiografia cujos sentimentos sobre o bolchevismo oscila entre a admiração cega e a calúnia sistemática, que se obstina em apresenta-lo como uma nova ideologia, surgida de uma tacada, da inteligência de Lênin: o comunismo, revolucionário ou stalinista e, no próprio partido bolchevique, como uma organização de tipo completamente novo, uma espécie de precoce III Internacional que, desde sua origem, se enfrenta com o reformismo da II, encarnado na Rússia pelos mencheviques e na Alemanha pelo partido social-democrata de Bebel e Kautsky. Não obstante, tal concepção não é senão uma reconstrução artificial da história da organização e das idéias, uma montagem realizada a posteriori. Para todos os defensores de tal tese, Que Fazer? constitui a Bíblia de um bolchevismo que tem todas as características de uma nova corrente, quando nada permite supor que tenha constituído tal importância para os bolcheviques ou para o próprio discurso intelectual e teórico de Lênin. Esta obra examina as condições russas, as tendências da classe operária russa; de fato, preconiza uma solução russa especificamente, sem que suas análises ou conclusões tenham a pretensão, naquela época, de estender sua validez a outros países. No prefácio que, para uma coleção de seus artigos e ensaios Lênin redigiu em setembro de 1917, afirma:
“O erro fundamental dos que hoje polemizam contra Que Fazer? está na absoluta dissociação que estabelecem entre este trabalho e um determinado contexto, superado há tempo, do desenvolvimento de nosso partido. Que Fazer? não é senão um resumo da tática e da política de organização do grupo da Iskra entre 1901 e 1902. Nada mais que um resumo; nem mais nem menos. Só a organização que promoveu a Iskra podia ter criado um partido social-democrata como o existente na atualidade nas circunstâncias históricas que a Rússia atravessou de 1900 a 1905. O revolucionário profissional cumpriu sua missão na história do socialismo proletário russo”[1].
Desde o mês de novembro de 1905, Lênin já tinha rogado este anátema definitivo sobre todos aqueles que reduziam seu pensamento a um esquema mecanicista e abstrato, pretendendo opor esquematicamente a espontaneidade e a consciência nos mesmos termos do Que Fazer?, como se esta obra tivesse um valor universal e um alcance eterno:
“A classe operária russa é instintiva e espontaneamente social-democrata [isto é, revolucionária, P. B.] e mais de dez anos de trabalho dos social‑democratas tem contribuído para transformar tal espontaneidade em consciência de classe[2].
Que Fazer? insiste igualmente na absoluta necessidade de organizar o partido de forma clandestina, fazendo isto condição indispensável de sua existência. Sem dúvida, tais afirmações não excluem a possibilidade de uma ação e de uma propaganda legais se as circunstâncias históricas assim permitem. Portanto, uma vez que a revolução de 1905 deu aos operários a liberdade de organização e de expressão para os partidos políticos, incluídos os socialistas, os bolcheviques não vacilaram em aproveitar-se disto. Não obstante, Lênin considera “liquidadora” a concepção do setor de mencheviques que aceitam os limites impostos pelo inimigo de classe para limitar sua ação, se resignando a não desenvolve-la através dos meios legais. De fato, a nova lei limita a atividade dos partidos e não concede aos revolucionários liberdade de ação e de expressão relativas senão como contrapartida à conservação de seu absoluto controle sobre eles: o regime czarista se limita a tolerar, coagido pelos acontecimentos, uma série de liberdades que constituem antes de tudo uma válvula de escape. “Fazer o jogo” e se limitar estritamente ao legal supõe aceitar os controles que o próprio regime fixou, proscrevendo aquele setor de crítica revolucionária que considera “subversiva”. Sem dúvida, não é questão de renunciar, com este pretexto, a utilização das facilidades que outorga a lei, já que unicamente a propaganda legal pode alcançar amplos setores operários. Deve, portanto, ser utilizada ao máximo, é esta é a razão por que mais adiante Lênin primeiramente fará do jornal e do diário legal, a primeira preocupação de seu grupo em todas as ocasiões em que tal instrumento resulte viável.
A este respeito, resulta significativo o exemplo da Pravda, já que este diário “operário” constitui, pouco antes da guerra de 1914, a peça chave do desenvolvimento do partido bolchevique. O jornal é lançado depois de uma campanha de agitação nas fábricas destinada a conseguir uma subscrição pública. A Pravda assume então à função desempenhada originariamente pela Iskra para umas centenas de leitores, ao difundir informações e consignas que, desta vez, se dirigem a dezenas de milhares de operários de vanguarda. Os co-responsáveis operários da Pravda são, desta vez, os enlaces do partido e as antenas de que este dispõe para conhecer o estado de ânimo do proletariado: graças a suas informações se produz uma homogeneização da experiência operárias que assenta as bases indispensáveis de uma consciência coletiva. Num só ano, publica 11.114 “informes de co-responsáveis” uma média de 41 por número. A Pravda, é, por definição, um diário operário e, ao estar em grande medida redigido pelos próprios trabalhadores, eles sentem que lhes pertence: eles são os que fazem a maior parte das contribuições que constituem “o fundo de ferro”, criado para fazer frente a todas as multas e seqüestros com que a repressão pode golpear o jornal.
O diário devia indicar, como a própria lei exigia, direção e responsáveis: não pode escapar às demandas e queixas que o Estado e os inimigos de classe não deixam de recorrer na tentativa de acabar precisamente com sua existência legal. De total de 2.770 números, 110 são objeto de demanda judicial. As multas que lhe foram impostas somam 7.800 rublos, isto é, o dobro da quantidade da recolhida como fundo inicial; se celebram 26 juízos contra o jornal, e seus redatores são condenados a um total de 472 meses de prisão[3]. Certamente é um balanço negativo para um jornal que, apesar de tudo, se esforça em não atrair sobre si a repressão, embora a polícia chegue ao extremo de introduzir em seu comitê de redação um de seus agentes, encarregado de criar com seus artigos desculpas para proibir a publicação.
Em tais condições, a liberdade de expressão do jornal se vê seriamente entorpecida; ao submeter-se à lei, lhe fica impossível lançar as consignas que considera corretas, sobretudo quando estas se referem aos operários e camponeses que se encontram no exército. O jornal deve se manter contra vento e maré dentro dos estritos limites fixados pela lei se não quiser correr o risco de se ver silenciado definitivamente pelos seqüestros, condenações e múltiplas sanções econômicas que podem abater-se sobre ele. Os panfletos, folhetos e jornais legais servem para difundir o resto das consignas e para dar as explicações necessárias, mas proibidas, que, por atentar contra a “segurança” do Estado, não podem ser publicadas senão por meios de expressão ilegais. Nas condições políticas da Rússia Czarista, mais ainda que no âmbito liberal das democracias ocidentais, resulta absurdo mesclar ambas opções. Um jornal legal pode ser proibido, seqüestrado, perseguido e sancionado. Um militante “legal” é sempre um individuo conhecido pela polícia e esta pode detê-lo e por fim à sua atividade com qualquer pretexto. Se toda a organização for pública e legal, a polícia conheceria tanto seus militantes como seus principais mecanismos, e o Estado poderia assim, a qualquer momento, por fora da lei algumas de suas atividades ou mesmo o conjunto de seu funcionamento. Por isso, é de todo modo imprescindível que o partido operário disponha de militantes, recursos, imprensa, jornais e locais clandestinos que, eventualmente, substituam o “setor legal” durante um período de reação, numa época que seu próprio caráter legal lhes permita safar-se das limitações que exigiria a atividade pública. O caráter autocrático do Estado russo e a arbitrária onipotência da polícia foram, pois, os autênticos responsáveis de que os social-democratas russos construíssem seu partido em torno a um núcleo clandestino; as “liberdades democráticas” não têm ainda tradição suficiente, em 1912, para parecerem normais e eternas, fazendo os revolucionários esqueceram a que preço tiveram que conquista-las e o quão facilmente poderiam perde-las.
Sem dúvida, a ilegalidade não é um fim em si. O verdadeiro problema consiste na construção, utilizando ao máximo todas as possibilidades, de um partido operário social-democrata, isto é, de um setor consciente da vanguarda que, armada com o conhecimento das leis do desenvolvimento social, faça avançar entre os operários a consciência de classe, os organize e os conduza à batalha, quaisquer que sejam as condições gerais que terá a luta. Tais projetos são os que mantêm os bolcheviques, após o período de boicote, quando se dispõem a participar regularmente nas eleições, apesar da trucagem das leis eleitorais seja escandaloso. Seu objetivo não é de modo algum uma vitória parlamentar, mas – e as memórias de Badaiev nos confirmam – a utilização da publicidade que, cara à propagação das idéias socialistas e à construção do partido, proporciona a tribuna parlamentar.
Chegado a este ponto, é indispensável estabelecer a comparação entre o partido social-democrata russo e o alemão, aferrado a sua legalidade, a suas importantes conquistas, a seus quarenta e três diários, a suas revistas, a suas universidades, a seus fundos de solidariedade, a suas “casas do povo” e a seus deputados, embora, em definitivo, todas estas realizações contribuem para aprisiona-lo. De fato, o medo de uma repressão que poderia por em perigo as melhoras conseguidas converte o partido social-democrata alemão no refém voluntário das classes possuidoras; o mesmo limita a ação de suas juventudes e proíbe Karl Liebknecht que leve a cabo qualquer tipo de propaganda antimilitarista “ilegal”, embora nenhum socialista se atreva a negar a necessidade de tal propaganda na Alemanha de Guilherme II, pois ela poderia encolerizar a burguesia e desatar uma nova onda de repressão policial.
Sem dúvida, a crise de 1914 revelará de forma inequívoca o abismo que separa ambas organizações em relação às atitudes que adotam sobre seus respectivos governos, frente à guerra. Anteriormente a esta data, Lênin manifestou seu acordo, em determinados pontos, com a crítica que leva a cabo a esquerda alemã e sobretudo Rosa Luxemburgo; sem dúvida, existem entre eles diferenças suficientemente numerosas e importantes para demonstrar que, naquela época, não existia uma fração coerente da esquerda na social-democracia internacional: só a analise histórica do passado permite opor, na história da social-democracia a tendência revolucionária Lênin-Luxemburgo ao reformismo de Bebel e Kautsky. O partido social-democrata alemão, antes de 1914, constitui aos olhos de Lênin e dos bolcheviques, o partido operário por excelência, o modelo que pretendem construir na Rússia, tendo em conta as condições específicas do país. Lênin, após desmentir de forma clara e categórica a interpretação inversa de suas intenções, repetirá em diferentes ocasiões:”Onde e quando eu pretendi ter criado uma nova tendência na social-democracia internacional distinta da linha de Bebel e Kautsky? Onde e quando se manifestou diferenças entre Bebel e Kaustky, de um lado, e eu de outra?”[4]. O velho bolchevique Shliapnikov afirma que, na propaganda levada a cabo no campo operário, os bolcheviques se referiam continuamente aos social-democratas alemães como modelos. Piatnitsky descreveu sua admiração de bolchevique emigrado ante o funcionamento da organização social-democrata alemã e narra seu assombro ante as críticas que, em privado, se formulavam diante dele, sobre determinados aspectos de sua política. Tanto maior foi o rancor dos bolcheviques depois do mês de agosto de 1914, quando se viram obrigados a reconsiderar sua apreciação da linha Bebel-Kautsky e a admitir que Rosa Luxemburgo, que Lênin considerou desde então como “a representante do marxismo mais autêntico”, havia sido mais lúcida que eles sobre este ponto. Não obstante, Lênin chegou a duvidar da autenticidade do número de Vorwärts que publicava a declaração emitida pela fração social‑democrata do Reichstag ao votar os créditos de guerra e considerou inclusive a hipótese de que se tratava de uma falsificação levada a cabo pelo estado maior alemão...
Após sua volta, em abril de 1917, durante a conferencia do partido bolchevique, Lênin será o único a votar a favor de sua moção de abandono do termo «social‑democrata» no nome do partido: certamente, tal atitude é a prova de que não temia ficar isolado em sua própria organização, mas também de que, antes de 1914, não havia desejado nem preparado uma ruptura com a II Internacional e os grandes partidos que a integravam. Sua atitude demonstra igualmente até que ponto, três anos depois de agosto de 1914, se encontrava muito adiante de seus próprios camaradas sobre esta questão.
Assim mesmo e quaisquer que tenham sido as responsabilidades de Lênin e de sua fração na cisão de 1903, vimos que não a haviam desejado, nem previsto, nem preparado, que lhes surpreenderam intensamente e que, sem ceder a seus princípios, não por isso deixaram de trabalhar para conseguir uma reunificação que, certamente, esperavam colocar sob sua bandeira, mas que, sem dúvida, não podia dar origem senão a um partido mais amplo e menos homogêneo, que o constituído durante todos aqueles anos pela fração “dura” dos bolcheviques.
Desde 1894, Lênin afirmava em sua polêmica com o populista Mijailovsky:
“É rigorosamente certo que não existe entre os marxistas unanimidade completa. Esta falta de unanimidade não revela a debilidade mas a força dos social-democratas russos. O consenso daqueles que se satisfazem com a unânime aceitação de “verdades reconfortantes”, essa terna e comovedora unanimidade, tem sido substituída pelas divergências entre pessoas que precisam de uma explicação da organização econômica real, da organização econômica atual da Rússia, uma análise de sua verdadeira evolução econômica, de sua evolução política e da do resto de suas superestruturas”[5].
A vontade de reunificação que surge imediatamente antes de 1905, se explica tanto pela confiança que deposita em suas próprias teses, como pela convicção de que os inevitáveis conflitos que surgem entre os social‑democratas podem ser solucionados no seio de um partido que seja como a sede de todos eles:
“As divergências de opinião no interior dos partidos políticos ou entre eles, escreve Lênin em julho de 1905, se solucionam em geral não apenas com as polêmicas, mas também com o desenvolvimento da própria vida política. Em particular, as divergências a propósito da tática de um partido, costumam se liquidar pela adesão dos defensores das teses errôneas à linha correta, já que o próprio curso dos acontecimentos retira da própria tese seu conteúdo e interesse”[6].
A este respeito, manifesta uma grande confiança quanto à evolução ulterior dos mencheviques, ao escrever no final de 1906:
“Os camaradas mencheviques passarão pelo purgatório das alianças com os oportunistas burgueses, mas terminarão por voltar à social-democracia revolucionária” [7].
Segundo afirma Krúpskaya, em 1910,
“Vladimir Illich não duvidava em absoluto que os bolcheviques ficariam com a maioria no seio do partido e que este terminaria por adotar a linha traçada por eles, sem dúvida, era necessário que tal decisão afetasse o partido inteiro e não somente sua fração”[8].
A conferência de Praga de 1912 condenará unicamente os liquidadores, inimigos do trabalho ilegal. A colaboração com os “mencheviques do partido” se explica portanto, não só como uma manobra tática, mas também como reflexo da convicção, expressada desde 1906, de que “até a revolução social, a social-democracia apresentará inevitavelmente uma ala oportunista e uma ala revolucionária”[9]. Esta é a postura que defende Inés Armand em Bruxelas: com a única ressalva dos liquidadores, todo social‑democrata tem lugar num partido onde, na Rússia como no Ocidente, devem coexistir elementos reformistas e revolucionários, pois só a revolução, em sua classe de expressão definitiva do “desenvolvimento da vida política”, poderá separá-los nitidamente.
Desde a época de Stalin, a maioria dos historiadores e comentaristas insistem sobre o regime autoritário e fortemente centralizado do partido bolchevique, e costumam ver nele a chave da evolução da Rússia durante mais de 30 anos. No referente à forte centralização do partido, certamente não faltam citações com que podem cimentar suas teses. Não obstante, as referências de sentido oposto são igualmente abundantes: na boca de Lênin, como na de muitos outros personagens, se pode colocar muitas concepções insólitas, apenas utilizando frases separadas de seu contexto. Na realidade, o propósito fundamental de Lênin foi construir um partido de ação e, deste ponto de vista, nem sua organização, nem sua natureza, nem seu desenvolvimento, nem seu próprio regime interno podiam ser concebidos independentes das condições políticas gerais, do grau de liberdades públicas existente e da relação de forças entre a classe operária, o Estado e as classes possuidoras.
Entre 1904 e 1905, em sua polêmica com os mencheviques, quando todos os socialistas se encontram ainda na clandestinidade, Lênin afirma:
“Nós também estamos a favor da democracia quando esta é verdadeiramente possível. Na atualidade não seriam mais que uma farsa, e isso não desejamos, pois queremos um partido sério, capaz de vencer o czarismo e a burguesia. Forçados à ação clandestina, nos é impossível realizar a democracia formal dentro do Partido (...) Todos os operários conscientes da necessidade de acabar com a autocracia e de lutar contra a burguesia, sabem perfeitamente que, para vencer o czarismo, precisamos neste momento de um partido clandestino, centralizado, revolucionário e fundido em um só bloco. Sob a autocracia, com suas selvagens repressões, adotar o sistema de eleições, isto é, a democracia, significaria, simplesmente, ajudar o czarismo a acabar com nossa organização”[10].
Assim mesmo em A bonita jaula não alimenta o pássaro, precisa:
“O operário consciente compreende que a democracia não é um fim em si, mas um instrumento para a libertação da classe operária. Damos ao partido a estrutura que melhor responde às necessidades da luta neste momento. O que necessitamos hoje é uma hierarquia e um rigoroso centralismo”[11].
No III Congresso, quando o movimento revolucionário cresce a olhos vistos, insiste:
«Em condições de liberdade política, nosso partido poderá se basear por completo no principio de eleição e de fato assim o faremos (...). Inclusive sob o absolutismo, o principio de eleição poderia ter sido aplicado muito mais amplamente”[12].
A conferência de Tammerförs decide aplicar integramente à organização do partido os principios do “centralismo democrático” e “os mais amplos direitos de eletividade, conferindo aos organismos eleitos plenos poderes para a direção ideológica e prática; também aprova a aplicação do principio de revogabilidade dos mandatos assim como o que lhes exige absoluta publicidade e rigorosa informação de sua atividade”. No prefácio de Doze anos, Lênin, a propósito da polêmica sobre Que fazer? Recorda que
“a pesar da cisão, o partido utilizou o momentâneo fulgor de liberdade para introduzir em sua organização pública uma estrutura democrática, dotada de um sistema de eleição assim como uma representação no congresso proporcional ao número de militantes organizados”[13].
Segundo os bolcheviques, o “regime interno” é um reflexo, no partido, das condições gerais da luta de classes; sem dúvida, também constitui um fator autônomo. Lênin coloca este problema em sua própria fração, ao enfrentar-se com os Komitetchiki, que, segundo o testemunho de Krúpskaya, não admitem nenhum tipo de democracia interna e se negam a qualquer inovação, por sua impotência para adaptar-se a condições novas: são hostis a introduzirem-se nos comitês de operários pois crêem que em seu seio não vão poder trabalhar, pretendem controlar minuciosamente toda a atividade e manter uma hierarquia e centralização rígidas. Lênin lhes recorda que “não é o partido que existe em função do comitê, mas este em função do partido”. “Freqüentemente penso que nove décimas partes dos bolcheviques são profundamente formalistas. É preciso recrutar sem medo jovens com maior amplitude de critério e esquecer as práticas embaraçosas, o respeito pelos graus, etc. (...) Há que se dar a cada comitê de base, sem impor demasiadas condições, direito a redigir folhetos e os distribuir. Cometeram-se algum erro, não teria demasiada importância, o corrigiríamos “amavelmente” no Vpériod. O próprio curso dos acontecimentos ensina com nosso mesmo espírito”[14]. Krúpskaya lembra que Lênin não se inquietou demasiado por não ter sido escutado pelos komitetchiki: “Sabia que a revolução estava em marcha e que obrigaria o partido a admitir os operários em seus comitês”[15].
A clandestinidade é evidentemente favorável ao centralismo autoritário na medida que a eleição não tem mais sentido entre homens que se conhecem e podem controlarem-se mutuamente. Não obstante, seus efeitos se amortizam pois contribui a fazer menos tensas as relações entre os diferentes graus da hierarquia, deixando aos comitês locais uma importante margem de iniciativa. Os grupos que distribuem panfletos chamando à greve e convocando uma manifestação em 15 de novembro de 1912 em São Petersburgo estão integrados por social-democratas vinculados à fração bolchevique; mas se nos atermos ao testemunho de Badaiev, nesta ocasião não se advertiu a nenhum organismo responsável do centro ou da capital nem a nenhum membro do grupo parlamentar[16]. Os dirigentes bolcheviques tardaram vários dias em saber quem havia assumido a responsabilidade de tais consignas; sem dúvida, apoiaram a greve, apesar de que, em sua opinião, estava muito mal preparada, dada a popularidade que havia alcançado entre os operários. Tais incidentes se dão com farta freqüência. Piatnitsky, por exemplo, que desempenha há anos importantes funções no aparato clandestino, não pode, em 1914, conseguir a direção de um responsável bolchevique em Samara, cidade em que havia encontrado trabalho. De fato, ali bolcheviques e mencheviques se fundiram; então, após conseguir o contato por seus próprios meios, Piatnitsky tomará a iniciativa de reorganizá-los de forma independente, convencendo-os com a mera utilização de suas informações pessoais e sem nenhuma classe de “mandato”[17].
Uma das críticas que mais freqüentemente se tem feito ao sistema de organização dos bolcheviques era que favorecia a ação devastadora dos agentes provocadores da policia que conseguiam se introduzir na organização. Alguns exemplos são claro expoentes de tal tese: o médico Jitomirsky é agente da Okhrana quando, em 1907, é encarregado de estabelecer o enlace entre a Rússia e a emigração. Em 1910, os jornais impressos na Suíça ou Alemanha chegam com toda regularidade nas mãos da polícia: o responsável de seu transporte, Matvéi, leva anos à serviço da policia secreta. Não obstante, é preciso admitir que os provocadores da policia conheciam perfeitamente a forma de entrar no partido e que o sistema repressivo russo era responsável, em maior medida que o funcionamento do partido, da utilização por parte da policia de militantes que gozavam da confiança de seus camaradas e que, em geral, haviam aceitado na prisão desempenhar o papel de informantes.
O exemplo mais significativo o constitui sem dúvida Malinovsky. Se trata de um militante operário, secretário do sindicato dos metalúrgicos de São Petersburgo de 1906 até 1909, bom orador e bom organizador, que entra a serviço da policia em 1910, talvez para evitar o cumprimento de uma sentença que lhe havia sido imposta anteriormente por um delito comum. Se une aos bolcheviques em 1911, sua atividade como militante o torna tão popular que se apresenta às eleições de deputados para a Duma e é eleito, contribuindo além do mais, neste cargo, a organizar a cisão da fração social-democrata. Durante todo este tempo continua informando regularmente ao chefe da policia, revelando os pseudônimos, os locais e as reuniões previstas. Malinovsky é o responsável da detenção de Ríkov e Noguin, antes da conferência de Praga, e da de Svérdlov e Stalin em 1914. Lênin o propôs como membro do comitê central em 1912 e, até o final, o defende das acusações dos mencheviques, inclusive depois de sua inexplicável demissão como deputado em maio de 1914. Só os arquivos da Okhrana darão, após a vitória revolucionária de 1917, uma completa informação de sua atividade. Depois de ter sido feito prisioneiro na guerra, voltou à Rússia por sua própria vontade. Uma vez ali foi julgado, condenado à morte e executado.
Independente do aspecto espetacular da aventura, há que reconhecer que as estruturas, os métodos e os princípios de ação da organização a protegiam, até certo ponto, da atividade de um agente de tal envergadura. Lênin, com seu testemunho no juízo, contribuirá não pouco para levar o assunto a seus justos limites ao declarar:
“Do ponto de vista da Okrana, valia a pena não escamotear nenhum meio para introduzir Malinovsky na Duma e no comitê central. Quando o conseguiu, Malinovsky se transformou num dos elos da larga cadeia que unia nossa base legal com os dos grandes órgãos representativos das massas do partido, a Pravda e a fração social-democrata da Duma. O provocador devia manter esses dois organismos para conservar nossa confiança. Malinovsky podia provocar a queda e, de fato assim o fez, de numerosos camaradas. Sem dúvida, não foi capaz nem de deter, nem de controlar, nem de dirigir a atividade do partido, cuja importância crescia sem cessar, estendendo sua influência sobre as massas, sobre dezenas e centenas de milhares de indivíduos”. Lênin conclui então: “Não me surpreenderia em absoluto que um dos motivos do abandono de Malinovsky, houvesse sido que de fato estava mais vinculado à Pravda legal e à fração parlamentar, que levavam a cabo um trabalho revolucionário, do que a Okrana estava disposta a tolerar”[18].
A originalidade do partido bolchevique não reside nem em uma determinada concepção ideológica, nem num regime particularmente centralizado. A social‑democracia alemã naquela época está tão centralizada e têm uma organização tão estrita como a do partido russo; Piatnitsky, especialista em organização do aparato russo, descreve com admiração a organização socialista de Leipzig e o funcionamento semiclandestino dos núcleos dirigentes que os militantes chamam, em sua “gíria”, “carbonarias”. A “disciplina de fração” — a Fraktionzwang — se aplica, com o máximo rigor, a todos os níveis de atividade do partido alemão, mais severamente, se possível, que no partido russo, como conseqüência da legalidade e do poder financeiro do aparato que não deixa lugar algum à iniciativa pessoal. A crise 1914 servirá para desvelar a raiz das diferenças entre os dois partidos: a social‑democracia alemã vota os créditos militares e apóia seu governo na guerra, enquanto os bolcheviques fazem chamados tendentes a transformar a guerra imperialista em guerra civil. A social‑democracia alemã, ao adaptar-se ao regime político e social, se converteu num partido reformista, enquanto o partido bolchevique, ao permanecer irremediavelmente hostil a ela, manteve suas perspectivas e sua política revolucionárias.
A primeira razão de que exista tal diferença é, em primeiro lugar, que os social‑democratas russos viviam e militavam num contexto social infinitamente mais explosivo que o da Europa Ocidental: o desenvolvimento combinado da sociedade russa havia convertido o proletariado industrial numa classe social fundamentalmente revolucionária; a esta característica se refere Deutscher ao afirmar acertadamente:
“A classe operária russa de 1917 foi uma das maravilhas da história. Pequena em número, jovem, inexperiente e carente de toda educação, era, não obstante, rica em paixão política, em generosidade, em idealismo e ostentava singulares aptidões para o heroísmo. Possuía o dom de sonhar com o futuro e de morrer heroicamente na luta”[19].
O bolchevique Preobrazhensky levou a cabo igualmente uma penetrante análise deste fenômeno:
“A vanguarda de nossa classe operária, escreveu, é o produto do capitalismo europeu que, ao aparecer num país novo, construída em centenas de empresas formidáveis, organizados segundo os últimos aperfeiçoamentos da técnica ocidental”.
Sob os czares, não havia possibilidade alguma de que os militantes operários levem uma existência tranqüila na sociedade russa. Os sindicatos são dissolvidos quando cobram uma existência real e os mencheviques mais “legalistas”, inclusive os liquidadores, recebem da policia golpes tão duros como os bolcheviques mais extremistas. No sistema, não há lugar para os burocratas, nem sequer para os honrados desertores, já que, o militante que desejar abandonar a luta não teria para ganhar a vida outra solução que a de se converter espião da polícia. A integração é impossível sem capitulação aberta: o reformismo que, no Ocidente, teria surgido como estado de ânimo antes de materializar-se como tendência no seio das organizações operárias e, mais adiante, como setor privilegiado, não tem na Rússia nenhuma raiz. As condições em que se dá a luta política e social convertem os militantes numa elite generosa, valente e pura. Devem multiplicar os ardis e iniciativas para salvaguardar a organização e conservar o contato com os operários. Rotina alguma pode se consolidar e é imprescindível aproveitar as oportunidades.
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Notas:
[1] Citado por Brian Pearce: «Building the bolshevik party», en Labour Review, nº 1, 1960, pp. 28-29. (retornar ao texto)
[2] Citado por Pearce, ibídem, pág. 27. (retornar ao texto)
[3] Yaroslaysky, Histoire du P. C. de l’U.R.S.S., pág. 197. (retornar ao texto)
[4] Lenin, Oeuvres Choisies, t. 1, pág. 464. (retornar ao texto)
[5] Lenin, Selected Works, vol, IX, pág. 92 (retornar ao texto)
[6] Lenin, Sochineníya, 3ª ed., vol. VIII, págs. 13-15. (retornar ao texto)
[7] Ibídem, vol. X, pág. 170. (retornar ao texto)
[8] Krúpskaya, Ma vie avec Lénine, pág. 142. (retornar ao texto)
[9] Citado por Trotsky, Ecrits, t. 1, pág. 322. (retornar ao texto)
[10] Citado por Zinóviev. Histoire du P. C. R., págs. 103-104 (retornar ao texto)
[11] Ibídem, págs. 105-106. (retornar ao texto)
[12] Citado por John Daniels, Labour Review nº 2, 1957, pág, 48 (retornar ao texto)
[13] Citado por Brian Pearce, op, cit, pág. 29. (retornar ao texto)
[14] Citado por John Daniels, op. cit., pág, 48. (retornar ao texto)
[15] Krúpskaya, op. cit., pág. 77. (retornar ao texto)
[16] Badaiev, Les bolcheviks au Parlement tsariste, pág, 49. (retornar ao texto)
[17] Piatnitsky, Souvenirs d' un, bolchevik, pág. 148 (retornar ao texto)
[18] Badaiev, op. Cit., pág 215. (retornar ao texto)
[19] Deutscher. El profeta armado (retornar ao texto)
Inclusão | 19/08/2006 |
Última atualização | 22/03/2016 |