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Todas as memórias dos militantes bolcheviques, ao se referir ao período anterior a 1914, dão muita importância à chamada “campanha dos seguros” que se iniciou na raiz da promulgação da lei de 23 de julho de 1912 sobre o seguro de enfermidade. O partido põe em relevo todos os pontos débeis do texto legal, com o fim de mobilizar os operários que, em primeiro lugar, conseguirão o direito a ter assembléias sobre as questões de seguridade social, mais adiante o de eleger delegados que os representem na administração dos fundos e, por último, a emenda do texto que concerne às condições que devem reunir os beneficiários. Esta será a única ocasião que tiveram os militantes de intervir legalmente nas assembléias operárias, levando a cabo, em todas as fábricas, uma ação pactuada.
Para uma agitação de tipo sindicalista, em que o bolchevique possa se dirigir ao conjunto dos operários, se precisa de toda uma série de circunstâncias favoráveis que, às vezes, o mesmo se esforça em criar. Shliapníkov, operário de uma fábrica de São Petersburgo, leva a cabo em sua oficina uma campanha a favor da “igualdade na retribuição dos operários da mesma profissão ou que executem idêntico trabalho, medido pelo número de peças” [20]. A pesar da amplitude da escala de salários não ser demasiado grande, esta consigna unificadora costuma se converter no ponto de partida da agitação bolchevique dentro da empresa. Numa etapa posterior, se trata de estender a agitação e de tentar por em marcha determinados movimentos. Mas levar a cabo esta política sem quadros, sem sede fixa da seção sindical e sem possibilidade alguma de organizar uma assembléia geral, é impossível dentro do marco legal. Sem dúvida, tem-se que se dirigir aos operários e isto não é possível antes de uma preparação minuciosa para a qual os bolcheviques contam com uma técnica muito depurada: salvo exceções, como a constituída pela campanha dos seguros, só podem se fazer ouvir em reuniões relâmpago; estas últimas devem ser preparadas com todo cuidado; no momento preciso, se deve atracar numa porta durante um descanso, no refeitório, ou numa escada, durante a saída. Os oradores, por cuja segurança se vela com estas medidas, devem, sem dúvida, estar atentos ao aviso de perigo para poder empreender a fuga. A “tomada da palavra” costuma ser breve, o orador, em geral, vem de fora e, às vezes, deve se mascarar com boné ou um lenço para não ser identificado e denunciado. Os militantes da fábrica têm a missão de preparar o agrupamento do auditório e de velar pela segurança de seu camarada: nestes preparativos, devem multiplicar as precauções por temor das delações e tratar de no possível não se fazerem notar durante a intervenção, enquanto mantêm a vigilância.
Quando o militante se encontra com operários simpatizantes, é preciso levar a discussão, que já é perigosa, ao campo das idéias. Para isso, devem se evitar os lugares públicos, muito concorridos e geralmente cheios de mexeriqueiros. Igualmente perigosa é a reunião que se realiza num domicilio privado, pois, quanto menos conhecidas sejam as direções dos militantes, menos informação terá a policia. Esta é a razão de que as chamadas “reuniões volantes” se façam em dias festivos, numa obra abandonada ou num armazém na hora em que permanece deserto. Se precisa-se de reuniões com maior assistência, se organizam excursões ao bosque aos domingos enquanto uma série de vigilantes protegem a assembléia dos passantes indiscretos.
O operário que ingressa no partido está já familiarizado com os métodos clandestinos. Por conseguinte, vai imergir um pouco mais neles. Seu nome e sua direção serão conhecidos apenas por um responsável e tanto ele como seus camaradas utilizam um nome de guerra que há de mudar tantas vezes quanto necessário para despistar a policia. Na base, na oficina ou fábrica, se encontra a célula, que também costuma se chamar “comitê” ou “núcleo”. Seus efetivos se ampliam apenas pelo sistema de consenso unânime da designação de cada candidato, que deve ser examinado por todos os membros antes de ser admitido na organização.
Piatnitsky descreveu minuciosamente a pirâmide do partido em Odesa, antes de 1905: por cima dos comitês de base, existem raios, sub-raios e por último o comitê de cidade, cujos componentes são recrutados na totalidade pelo sistema antes descrito. Cada comitê compreende uma série de militantes responsáveis que se designam funções específicas e que não mantêm contato além de com seus homólogos do nível inferior ou superior: desta forma se reduzem os contatos verticais ao mínimo com o fim de acrescentar a autonomia e de evitar que a queda de um individuo isolado provoque uma cadeia de detenções em toda a organização. Enquanto isso seja possível, os militantes não devem verem-se fora das reuniões: sem dúvida existem dias e horas, fixados em segredo, mediante os quais e só em casos de absoluta necessidade os militantes podem tomar contato, geralmente num café, com a aparência de um encontro casual. O comitê de Odesa se reúne em domicílios particulares: é o encarregado de controlar toda a organização e seus membros por intermédio dos raios e sub-raios, designando além disso os oradores que irão tomar a palavra nas reuniões da fábrica e os responsáveis dos grupos de estudo que os militantes devem formar ao seu redor.[21]
A organização de Moscou em 1908 é, por sua vez, mais complexa e mais democrática: na base, se encontram as assembléias de fábrica, dirigidas por uma comissão eleita, no nível superior funcionam alguns sub-raios e, sobretudo, oito raios, dirigidos por um comitê eleito pelas assembléias de fábrica. Tal comitê está assessorado por comissões especializadas: a organização militar compreende um departamento técnico cujo responsável só é conhecido em todo o partido pelo secretário; existe além disso uma seção especial que se encarrega da propaganda antimilitarista, dirigida aos futuros recrutas, e do contato com os operários mobilizados, um departamento para os estudantes, outro para conferencistas e jornalistas que se dedica a utilizar suas respectivas competências e inclusive a cria-las, distribuindo a uns e outros, segundo as necessidades, nos diferentes raios ou em determinada comissão de fábrica; por último o comitê conta com uma comissão financeira.[22]
O centro mesmo do partido está constituído pelo aparato técnico, cujas numerosas e delicadas funções exigem especialização, competência e segredo. É necessário conseguir passaportes, elemento fundamental de toda atividade ilegal: os melhores, naturalmente, são os autênticos, isso é, aqueles que correspondem a uma pessoa viva e honrada; estes são os chamados “de ferro”. Sem dúvida, a imensa maioria dos utilizados pelo partido são falsos, fabricados pelos próprios militantes. Durante a guerra, Shliapníkov possui um passaporte no nome de um cidadão francês que, de vez em quando, lhe torna merecedor das atenções da policia, desejosa de adular o súdito de um país aliado. Kirilenko ingressa no exército com identidade falsa e chega a ser oficial. Uma das mais importantes tarefas encomendadas ao aparato técnico, cujos responsáveis são Piatnitsky e o georgiano Avelú Enukidze, constitui o transporte e difusão da literatura que vem do estrangeiro: os envios passam a alfândega em maletas de fundo duplo mas também se utilizam redes de contrabando; os encarregados deste trabalho são contrabandistas profissionais que recebem uma remuneração, ou militantes ou simpatizantes que organizaram, por sua conta, uma via de acesso, utilizada, se for o caso, por diferentes organizações políticas clandestinas.
As imprensas ilegais são, talvez, os instrumentos mais problemáticos. Devem ser instaladas num lugar isolado ou então num muito concorrido, geralmente se aproveita para isso um sótão, as vezes o fundo de uma loja, de forma que as obrigadas idas e vindas não atraiam excessivamente a atenção. É necessário comprar a máquina e, para isso, aceitar condições de pagamento muito duras, já que a venda ilegal é perigosa também para o comerciante. Às vezes a máquina deve ser transportada, peça por peça, ao lugar indicado. Os impressores membros do partido são os encarregados de fornecer o material barato e os tipos de imprensa que, durante longos meses, foram roubados em pequenas quantidades. O problema do papel, de sua compra e de seu transporte, suscita enormes dificuldades tanto à ida como à volta – em tais ocasiões, utilizar uma padaria ou uma quitanda como disfarce, facilita não pouco a operação. A circulação do material impresso no país ou no estrangeiro constitui uma operação de envergadura: costuma se deixar a maleta em confiança; se contrata então um transportador e se dá uma direção falsa, que muda no caminho, para leva-lo a um armazém ou a uma garagem desocupada; poucos minutos depois de ter sido efetuado o transporte, tudo desapareceu.
A atividade dos partisans ou boiéviki, de cujos líderes um parece ter sido Stalin, havia suscitado vivas polêmicas no partido. De fato, as “expropriações” pareciam constituir a parte mais essencial de sua atividade, implicando o perigo de uma degeneração que desmoralizaria sem dúvida a importantes setores de militantes, ameaçando desacreditar o partido inteiro.
Na realidade, o financiamento das atividades do partido colocava um grave problema pois as cotizações em nenhum momento foram suficientes. Um informe do comitê de Baku indica que, em determinados períodos, as contribuições dos militantes não cobriam nem 3% dos ingressos. Sem dúvida, Yaroslavsky[23] se refere a comitês locais como o de Ivanovo‑Voznessensk e o de Lodz, onde as cotas constituíam 50% dos ingressos. A maior parte, no geral, provêm das periódicas subscrições levadas a cabo entre intelectuais e profissionais liberais e fiscalizadas por uma comissão financeira especial. Desta forma e, por intermédio de Máximo Gorki, os bolcheviques receberam as importantes doações de um rico simpatizante e, graças à mediação Krasin, as oferecidas, pelo industrial Morozov. Um dos mais violentos conflitos entre mencheviques e bolcheviques surgiu, precisamente, da disputa que se originou sobre a doação ao partido de uma soma enorme, legada por um estudante simpatizante que tinha se suicidado e, uma de cujas irmãs testamentárias havia contraído matrimônio com o bolchevique Taratuta[24]. Schapiro cita entre os mais importantes apoios financeiros o estudante Tijormikov, companheiro de Mólotov na Universidade de Kazã[25]. Por último, algumas expropriações contribuíram notavelmente para encher os cofres do partido. Não obstante, na generalidade dos casos, escasseava o dinheiro e revolucionários profissionais passavam às vezes vários meses à espera de um salário que, segundo Yaroslavsky, podia oscilar entre 3 e 30 rublos por mês no máximo[26].
Apesar da insistência com que os bolcheviques sublinhavam na sua propaganda a necessidade da aliança entre operários e camponeses, o trabalho de organização dos mujiks apenas foi iniciado antes da revolução, salvo no caso de alguns núcleos isolados de operários agrícolas. Certos grupos de operários se limitaram a difundir de vez em quando folhetos e panfletos no campo.
O trabalho dirigido aos estudantes revestiu proporções mais amplas nas cidades universitárias, pois nelas existiam seções social-democratas estudantis e grupos socialistas onde se enfrentavam os estudantes pertencentes às diferentes frações: os bolcheviques estavam introduzidos dentro destes grupos, que lhes serviam para aumentar seus efetivos, procedendo, sempre que isto era possível, na mesma forma dentro dos círculos de estudantes de ensino médio. Em 1907, um grupo de jovens, encabeçados por Bukharin e Sokólnikov, convoca um congresso pan‑russo de estudantes social‑democratas. Sem dúvida, tal organização desaparece no ano seguinte; até 1917 não haverá novas tentativas de constituição de uma organização de juventude vinculada à linha bolchevique. Por então, parece se impor o ponto de vista de Krúpskaya: a companheira de Lênin desejava que se constituísse uma organização de jovens revolucionários, dirigida por eles mesmos, apesar do risco que poderiam vir de seus erros, o que, em sua opinião, era preferível a ver tal organização se asfixiar sob a tutela de uma série de “adultos” carregados de boas intenções. Mas, dada a situação da juventude russa, tal concepção excluía a possibilidade de construir uma organização de jovens puramente bolchevique.
Não obstante, o núcleo da organização bolchevique, a “corte de ferro” composta por militantes profissionais, é recrutado entre gente muito jovem, operários ou estudantes, numa época e condições sociais que, certamente, não permitem uma prolongação excessiva da infância, sobretudo nas famílias operárias. Os que renunciam a toda carreira e toda ambição que não seja política e coletiva, são jovens de menos de vinte anos que, de forma definitiva, empreendem uma fusão completa com a luta operária. Mikhail Tomsky, litógrafo que ingressa no partido aos 25 anos, é uma exceção no conjunto, apesar dos anos que passou lutando como independente, pois, de fato, na sua idade, a maioria de seus companheiros levam muitos anos de militância no partido. O estudante Piatakov, pertencente a uma grande família da burguesia ucraniana, se faz bolchevique aos 20 anos, depois de ter militado durante certo tempo nas fileiras dos anarquistas. O estudante Rosenfeld, chamado Kamenev, tem 19 anos quando ingressa no partido, e este é o caso também do metalúrgico Schmidt e do mecânico de precisão Iván Nikitich Smirnov. Aos 18 anos aderem o metalúrgico Bakáiev, os estudantes Bukharin e Krestinsky e o sapateiro Kaganóvich. O empregado Zinóviev e os metalúrgicos Serebriakov e Lutovínov são bolcheviques desde os 17 anos. Svérdlov trabalha de aprendiz de uma farmácia quando começa a militar aos 17 anos, como o estudante Kuibyschev. O sapateiro Drobnis e o estudante Smilgá ingressam no partido aos 15 anos, Piatnitsky aos 14 anos. Todos estes jovens, quando ainda não passaram da adolescência são já velhos militantes e quadros do partido. Svérdlov, aos 17 anos, dirige a organização social-democrata de Sormovo: a policia czarista, ao identifica-lo, lhe pôs o apelido de “guri”. Sokólnikov, aos 18 anos, já é secretário de um dos raios de Moscou. Rikov só tem 24 anos quandp se converte, em Londres, no porta-voz dos komitetchiki e ingressa no comitê central. Quando Zinóviev passa, por sua vez, a fazer parte do comitê central, aos 24 anos, já é conhecido como responsável dos bolcheviques de São Petersburgo e redator do Proletario. Kámenev tem 22 anos quando é enviado como delegado a Londres; Svérdlov só tem 20 quando atende à conferência de Tammerförs. Serebriakov é o organizador e um dos vinte delegados das organizações clandestinas russas que em 1912 acodem a Praga, tem então 24 anos.
Estes jovens acodem em ondas sucessivas, seguindo o ritmo das greves e dos momentos culminantes do movimento revolucionário – os mais antigos começaram a militar por volta de 1898 e se fizeram bolcheviques a partir de 1903; depois deles veio a geração de 1905 e anos consecutivos; por último, uma terceira avalanche se integra a partir de 1911 e 1912. A vida destes homens se mede por anos de presídio, de ação clandestina, de condenações, deportações e exílios. Piatnitsky, que nasceu em 1882, milita desde 1896. Após ser detido em 1902, foge, se une à organização “iskrista” e mais adiante emigra. Trabalha no estrangeiro até 1905. Volta à Rússia neste mesmo ano, se integra na organização de Odessa até 1906, mais adiante na de Moscou de 1906 a 1908. É detido, consegue de novo evadir-se, vai para a Alemanha e assume ali um importante cargo no aparato técnico até 1913. Durante este tempo aprende o oficio de eletricista. Volta clandestinamente à Rússia em 1913, encontra trabalho numa fábrica e é detido e deportado de novo até 1914. Sem dúvida, há outras biografias ainda mais impressionantes: Sergio Mrachkovsky nasce na prisão onde se encontram seus pais, presos políticos, passa ali sua infância antes de voltar já adulto e desta vez, por vontade própria; Tomsky, em 1917, tem 37 anos e conta com dez anos de prisão ou deportação. Vladimir Miliutin foi detido oito vezes, em cinco ocasiões foi condenado à prisão por duas deportações; Drobnis purgou seis anos de prisão e condenado a morte três vezes.
A moral destes homens é de uma solidez a toda prova: oferecem o melhor deles mesmos, com a convicção de que só desta forma podem expressar todas as possibilidades que fervem em suas jovens inteligências. Sverdlov, clandestino desde os 19 anos e enviado pelo partido para organizar os operários de Kostroma no Norte, escreve a um amigo: «As vezes adoro Nijni‑Novgorod, mas, em definitivo, estou contente de ter partido, porque ali não teria podido abrir as asas que creio possuir. Em Novgorod aprendi a trabalhar e cheguei aquí com a posse de uma experiência: conto com um amplo campo de ação onde empregar minhas forças”[27]. Preobrazhensky, principal líder do partido ilegal do Ural durante o período de reação, é detido e julgado. Quando Kerensky, seu advogado, tenta negar as acusações que lhe imputam, se põe de pé num salto, o desautoriza, afirma suas convicções e reivindica a responsabilidade de sua ação revolucionária. Naturalmente é condenado: só depois da vitória da revolução o partido descobrirá que este homem, revolucionário profissional desde os 18 anos, é um economista de enorme valia.
Os revolucionários estudam: alguns, como Piatakov, que escreve um ensaio sobre Spengler, durante o período em que a policia o acossa na Ucrânia em 1918, ou como Bukharin, são relevantes intelectuais. Os outros, embora menos brilhantes, estudam também sempre que podem, já que o partido é uma escola, e isto não só em sentido figurado. Em suas fileiras se costuma aprender a ler e cada militante se converte no chefe de estudos de um grupo em que se educa e se discute. Os adversários do bolchevismo costumam zombar deste gosto pelos livros que, em determinados momentos, converte o partido numa espécie de “clube de sociología”; sem dúvida, à preparação da conferência de Praga contribui com toda classe de garantias de efetividade a escola de quadros de Longjumeau, integrada por varias dezenas de militantes que escutam e discutem 45 lições de Lênin, trinta das quais versam sobre economia política e dez sobre a questão agrária, além disso, se repartem com aulas de história do partido russo, de história do movimento operário ocidental, de direito, de literatura e de técnica jornalística. Naturalmente, nem todos os bolcheviques são poços de ciência, mas sua cultura os eleva muito acima do nível médio das massas; em suas fileiras se contam alguns dos intelectuais mais brilhantes de nossa época. Sem duvida alguma, o partido educa e, de todos os lados, o revolucionário profissional dista muito do burocrata precoce descrito pelos detratores do bolchevismo.
Trotsky, que conhecia bem estes homens e levou o mesmo tipo de vida, apesar de não ser bolchevique ainda, escreveu sobre eles:
“a juventude da geração revolucionária coincidia com a do movimento operário. Era o momento dos homens de 18 a 30 anos. Os revolucionários de maior idade eram contados nos dedos da mão e pareciam anciãos. O movimento desconhecia por completo o arrivismo, se nutria de sua fé no futuro e seu espírito de sacrifício. Não existia rotina alguma, nem fórmulas convencionais, nem gestos teatrais, nem procedimentos retóricos. O patético que começava a surigr era tímido e torpe. Inclusive palavras como “comitê” e “partido” eram novas ainda, conservando sua auréola e despertando nos jovens ressonâncias vibrantes e comovedoras. Quem ingressava na organização sabia que prisão e deportação o esperavam, dentro de uns meses. O brio do militante se traduzia em resistir o maior tempo possível sem ser detido, em comportar-se dignamente ante à policia, apoiar o quanto pudesse os camaradas detidos, ler o maior número de livros na prisão, se evadir o quanto antes da deportação para ir ao estrangeiro e fazer ali uma provisão de conhecimentos, com o fim de voltar e retomar o trabalho revolucionário. Os revolucionários acreditavam no que ensinavam, nenhuma outra razão poderia tê-los levado a empreender sua via crucis”[28].
Certamente, nada pode explicar melhor as vitórias do bolchevismo e, sobretudo, sua conquista, lenta a principio, mais tarde fulminante, daqueles que Bukharin denomina o “segundo círculo concêntrico do partido”, os operários revolucionários que constituem suas antenas e alavancas, como organizadores dos sindicatos e comitês do partido, como focos de resistência e centro de iniciativas; são líderes e educadores infatigáveis, a favor de cuja ação o partido pode se integrar com a classe e dirigi-la. A história esqueceu os nomes de quase todos eles: Lênin os chama quadros “à la Kayúrov”, do nome do operário que o esconde em 1917 durante uns dias e que sempre depositará sua confiança. Sem a existência destes homens, é impossível entender o “milagre” bolchevique.
Qualquer estudo do partido bolchevique seria incompleto se não incluísse a descrição daquele que o fundou e encabeçou até sua morte. Certamente, Lênin se identifica de certo modo com o partido: mas, sem dúvida, suas características pessoais rompem tal analogia. Em primeiro lugar, praticamente ele é o único representante de sua geração, pois seus primeiros companheiros de luta, Plekhanov, mas velho que ele e Mártov, de sua mesma idade, dirigem os mencheviques. Seus lugar-tenentes da primeira época, Krasin e Bogdanov, se distanciaram. No momento da conferência de Praga, os mais antigos de seus colaboradores imediatos, Zinóviev, Kamenev, Svérdlov e Noguín, têm todos menos de 30 anos. Lênin conta então 42 anos; entre os bolcheviques, é o único a pertencer à geração anterior à Iskra, isto é, dos pioneiros do marxismo russo. Os homens jovens da direção bolchevique são, sobretudo, seus discípulos.
Este não é o lugar adequado para abordar uma análise da capacidade intelectual de Lênin, de sua cultura, de seu enorme potencial de trabalho, da agilidade de seus raciocínios, da lucidez de sua análise e da profundidade se suas perspectivas. Limitemo-nos a sublinhar que convencido como estava da necessidade do partido como instrumento da historia, apaixonadamente empreendeu sua construção e consolidação, durante todo o período que precedeu ao estouro de 1917 apoiando-se para isso, nas perspectivas e dados que oferecia o próprio movimento de massas, no tempo que fazia festa de uma excepcional confiança na solidez de sua própria análise e intuição. Convencido totalmente de que os conflitos ideológicos são inevitáveis, Lênin afirma, numa carta dirigida à Krasin, que “constitui uma completa utopia, esperar uma solidariedade absoluta dentro do comitê central ou entre seus membros”. Luta para convencer, tão seguro está na certeza de que o próprio desenvolvimento político dos acontecimentos será a melhor confirmação de suas teses. Esta é a razão porque termina por aceitar, sem muito ressentimento, uma derrota que considera puramente provisória, como a sofrida frente aos komitetchiki no congresso de 1905, na véspera de uma revolução de que espera a destruição de todas as rotinas. Até o final do mesmo ano, cede ao impulso dos militantes que desejam uma reunificação, prematura em sua opinião, limitando de antemão as possíveis perdas pela concentração de seu esforço em conseguir, dentro, do partido unificado, que a eleição de membros do comitê central se faça segundo o principio de representação proporcional das tendências. Entre 1906 e 1910, redobra sua ação para convencer aos dissidentes de sua fração, deixando, por último, que eles mesmos tomem a iniciativa da ruptura. Em 1910, se inclina ante à política dos “conciliadores”, defendida por Dubrovinsky, que considera um elemento de grande valia e que espera convencer rapidamente pela experiência.
Não obstante, sobre questões que considera fundamentais, se mantêm na mais absoluta intransigência – a seu ver, o trabalho ilegal constitui uma das pedras de toque que confirmam a natureza revolucionária da ação empreendida – de vez em quando, chega a um acordo ou se retrata, e não só quando, por se encontrar em minoria, deve dar exemplo da disciplina que exige quando conta com a maioria. Seu objetivo não é ter razão apenas, mas fabricar o instrumento que lhe permitirá intervir na luta de classes e ter razão à escala histórica, “a escala de milhões”, como costuma repetir; para conservar sua fração composta por estes homens cuidadosamente eleitos durante anos, sabe esperar e mesmo dobrar-se; sem dúvida, jamais oculta que não vacilaria nem um momento em começar tudo de novo se seus adversários insistissem em por o essencial em cheque. Na polêmica ideológica ou tática, parece interessar-se particularmente pela exacerbação das diferenças, forçando as contradições até o limite, revelando os contrastes e esquematizando e até mesmo caricaturizando o ponto de vista de seu oponente. São estes os métodos de um lutador que busca a vitória e não o compromisso, que quer chegar a desmontar o mecanismo de pensamento de seu antagonista para reduzir os problemas a elementos que sejam compreendidos com facilidade por todo o mundo. Sem dúvida, nunca perde de vista a necessidade de conservar a colaboração, na empresa comum, daquele com quem está mantendo o duelo dialético. Durante a guerra, Bukharin e ele não chegavam a um acordo sobre o problema do estado; Lênin lhe pede então que não publique nenhum trabalho sobre esta questão para não acentuar os desacordos sobre extremos que, em sua opinião, nem um nem outro estudaram suficientemente. Lênin argumenta sempre, cedendo às vezes, mas jamais renuncia a convencer no final, pois só assim — apesar do que teriam podido alegar seus detratores — obteve suas vitórias e se converteu no chefe indiscutível da fração, construída com suas próprias mãos e cujos homens escolheu e educou pessoalmente. De outro lado, tal atitude lhe parece perfeitamente normal, como o demonstram as palavras que dirige aos que se preocupam pelos conflitos surgidos entre companheiros de armas:
“Que os sentimentais se lamentem e gemam: Mais conflitos! Mais diferenças internas! Ainda mais polêmicas! Nós respondemos: jamais se formou uma social‑democracia revolucionária sem o surgimento continuo de novas lutas”[29].
Por isto, a imensa autoridade que possui sobre seus companheiros, não é a do sacerdote nem a do oficial, mas do pedagogo e a do camarada, a do mestre e a do veterano — familiarmente se costuma o chamar “O velho”— cuja integridade e perspicácia se admira e cuja experiência e conhecimentos são muito estimados; de outro lado, é evidente sua marca na história recente e todo mundo vê nele o construtor da fração e do partido. Sua influência se baseia na vigorosa força de suas idéias, de sua têmpera de lutador, de seu gênio polêmico, antes que no conformismo ou no acatamento de uma severa disciplina. Todos os seus companheiros, de Krasin a Bukharin, manifestarão um verdadeiro problema de consciência se enfrentar com ele. Sem dúvida, não deixam de fazê-lo, pois se trata de um dever, ele mesmo o afirma, “o primeiro dos deveres de um revolucionário” é criticar seus dirigentes: os discípulos não seriam portanto dignos de seu mestre se não se atrevessem a combater seu ponto de vista quando pensam que está equivocado. Além do mais, um partido revolucionário não se constrói com robôs. Esta é a opinião de Lênin quando escreve a Bukharin que, se prescindissem das pessoas inteligentes mas pouco disciplinadas e não conservassem mais que os imbecis disciplinados, o partido iria a pique. Aqui está o motivo porque, tanto a historia do partido, como a da fração, não sejam, desde 1903, senão uma larga sucessão de conflitos ideológicos que Lênin supera sucessivamente com um prolongado alarde de paciência. A este respeito, é extremamente difícil separar o estudo da personalidade de Lênin do de sua fração, cuja unidade de critério surge da discussão, quase permanente que se opera, tanto sobre as questões fundamentais como a propósito da tática a seguir em cada momento.
De outro lado, o êxito na empresa de organização se explica pela capacidade de Lênin para agrupar, mediante a luta no campo das idéias, elementos tão díspares, caráter tão opostos e personalidades tão contraditórias como Zinóviev, Stalin, Kámenev, Svérdlov, Preobrazhensky e Bukharin: “o exército de ferro” que pretendia ser — e de fato foi — o partido bolchevique, surgia não só daquele “maravilhoso proletariado” de que se referia Deutscher, mas também da mente do homem que havia escolhido este meio para construí-lo.
Mas isto explica igualmente a solidão de Lênin. Em última instância nenhum militante do partido se encontra à altura das capacidades de seu líder: sem dúvida Lênin conta com auxiliares, discípulos, colaboradores, companheiros, mas, salvo a exceção de Trotsky — cuja própria personalidade é talvez suficientemente clarificadora do fato de não ter sido bolchevique e de não ter aceitado a hegemonia de Lênin até 1917 — não estabelecerá com ninguém uma camaradagem de igual para igual. Esta é uma das razões de que, mais adiante, os velhos bolcheviques o consideram insubstituível, e isto, apesar de que, como disse Preobrazensky, não era tanto “timoneiro mas cimento da massa”. Se, como Bukharin, admitimos que as vitórias do partido se deviam tanto a sua “solidez marxista” como a sua “flexibilidade tática”— esta era a opinião dos velhos bolcheviques‑, teremos que reconhecer assim que, sob esta dupla face, Lênin era o único motor e que, com o tempo, escaldados por suas sucessivas derrotas, seus adversários bolcheviques haviam aprendido a ceder ante ele. Este é o momento em que a etapa revolucionária, ao submergi-lo nesta história em que são protagonistas “milhões e milhões”, o priva definitivamente da possibilidade de formar a geração dos que talvez teriam podido medir-se com ele vitoriosamente. Em qualquer caso, esta é a hipótese que sugere a história do partido até a morte de Lênin, morte que tornou possível que, de seu pensamento antidogmático por excelência, nascesse o dogma do “leninismo”, que terminará por suplantar o próprio espírito “bolchevique” que havia sabido criar.
IV - O Partido e a Revolução >>>
Notas:
[20] Shliapníkov, «A la veille de 1917», Bull. com., dic. 1923, página 598 (retornar ao texto)
[21] Piatnitsky, op. cit., págs. 100-101. (retornar ao texto)
[22] ibídem, págs. 136-138. (retornar ao texto)
[23] Yaroslavsky, op. cit., pág. 163. (retornar ao texto)
[24] Schapiro, The Communist Party Of The Soviet Union, págs. 107-108. (retornar ao texto)
[25] Ibídem, pág. 130. (retornar ao texto)
[26] Yaroslavsky, op. cit., pág. 164. (retornar ao texto)
[27] Citado por Bobrovskaia, Le premier président de la république du travail, pág. 14. (retornar ao texto)
[28] Trotsky, Stalin, pág. 73. (retornar ao texto)
[29] Lenin, Sochineniya, 3ª ed., vol, XII, pág. 393. (retornar ao texto)
Inclusão | 19/08/2006 |
Última atualização | 22/03/2016 |