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O partido que, em outubro de 1917, tomou o poder em Petrogrado, surgia diretamente da organização que Lênin construiu a princípios do século. Sem dúvida, o partido mudara substancialmente, transformando-se pelo influxo da onda revolucionária que levou a suas fileiras dezenas de milhares de operários e soldados, lançando milhões de homens à ação política. A pequena organização de revolucionários profissionais se converteu num grande partido revolucionário de massas; este o sentido que há que dar à grande polêmica sobre a organização de ocorreu entre os bolcheviques e mencheviques, resolvendo-se a favor dos primeiros. Na realidade, o partido bolchevique, ao tomar o poder, deu uma solução definitiva à questão teórica da natureza da revolução na Rússia que, desde 1905, subjazia nos conflitos organizativos entre social-democratas.
Em 1903, os bolcheviques e mencheviques não pareciam mostrar mais divergências no que concerne à questão dos meios que permitiriam alcançar o fim supremos, isto é, a conquista do poder pela classe operária e a instauração do socialismo. Não obstante, a polêmica que se originou no II Congresso revela, em definitivo, divergências mais profundas. Karl Marx esperava que a revolução se levasse a cabo antes nos países mais avançados onde uma revolução burguesa, como a francesa de 1789, havia assentado as condições de desenvolvimento do capitalismo ao destruir o poder da aristocracia rural e do absolutismo. Os primeiros discípulos russos de Marx consideraram que a tarefa revolucionária imediata na Rússia era a derrota da autocracia czarista e a conseguinte transformação da sociedade de uma ótica burguesa e capitalista com a instauração de uma democracia política. Os “marxistas legais”, discípulos de Pedro Struve, levaram esta tese até suas ultimas conseqüências, se convertendo então o próprio Struve no apóstolo do desenvolvimento capitalista russo e se unindo ao partido cadete e ao liberalismo político. Embora os membros da equipe da Iskra aceitassem construir um partido operário, as discussões que seguiram à cisão constituíram um claro expoente de sua falta de harmonia quanto aos objetivos imediatos que tal partido deveria se atribuir. Os mencheviques acusam os bolcheviques de abandono das perspectivas de Marx, de tentar organizar artificialmente uma revolução proletária por meio de conspirações apesar de que, numa primeira fase, as condições objetivas só permitem uma revolução burguesa. Os bolcheviques, de seu lado, argumentam que os mencheviques se negam a organizar e preparar uma revolução proletária, postergando-a a um futuro bastante longínquo; esta atitude termina por fazer deles os defensores de uma espécie de desenvolvimento histórico espontâneo que iria conduzir automaticamente o socialismo através de uma série de “etapas” revolucionárias diferentes, burguesa‑democrática em primeiro e proletário‑socialista em segundo, e, por último, que este fatalismo os fazem limitar, no imediato, a ação dos operários e dos socialistas em geral, ao papel de força de apoio para a burguesia em sua luta contra a autocracia e em favor das liberdades democráticas.
De fato, os argumentos que desenvolvem os mencheviques a partir da cisão se assemelham cada vez mais aos utilizados no Ocidente pelos defensores do socialismo reformista, tendo em conta de que, paradoxalmente, não existe na Rússia uma aristocracia operária similar à que, nos países avançados, dá uma base social ao reformismo.
Para todos os social‑democratas russos, a revolução de 1905 foi uma revolução burguesa quanto aos seus principais objetivos, a saber, a eleição de uma assembléia constituinte e a instauração de liberdades democráticas. Mas é não menos claro que tal revolução burguesa foi levada a cabo integralmente pela classe operária, com seus instrumentos de classe, suas manifestações de rua e suas greves, foi o resultado da insurreição dos operários de Moscou. Apesar de ter ocorrido alguns motins de soldados e de camponeses, enquadrados no exército, assim como dos breves clarões de algumas revoltas camponesas, em geral o campo não se mobilizou. O czarismo conservou, em definitivo, o controle do exército e os camponeses que o integravam terminaram por esmagar o movimento operário. Quanto à burguesia, desde o momento em que a autocracia fez as primeiras concessões, se lançou para trás, abandonando a luta apesar de suas aspirações estarem muito longe de estarem completamente satisfeitas. Tanto mencheviques como bolcheviques se lançaram à ação revolucionária com idêntica resolução e sem nenhum tipo de reserva: o líder de um dos motins mais importantes foi o jovem oficial menchevique Antónov‑Ovseienko que encabeçou a insurreição em sua própria unidade. Após a derrota, uns e outros voltam a porem-se de acordo quanto à análise básica e a explicação do fracasso: a burguesia retrocedeu por medo das massas operárias, a passividade dos camponeses foi o principal obstáculo e a arma mais importante da contra-revolução. Sem dúvida, diferem quanto às conclusões que se podem tirar desta primeira experiência revolucionária.
Os mencheviques, de seu lado, não parecem excessivamente surpreendidos pelo fracasso. Posteriormente, Plekhanov sancionou como errôneo o recurso às armas que ocorreu em Moscou. O desenvolvimento dos acontecimentos, em definitivo, confirma sua conhecida opinião de que uma revolução socialista cujo peso recai unicamente sobre a classe operária, exige previamente um crescimento das forças produtivas ao longo de uma fase de desenvolvimento capitalista que só pode se dar depois de uma revolução burguesa. Portanto, é preciso distinguir as duas etapas que a Rússia terá de passar de sua situação semi-feudal à vitória do socialismo: em primeiro lugar uma revolução burguesa e democrática que realizará um trabalho equivalente à revolução francesa de 1789, com vistas à transformação capitalista da sociedade e posteriormente uma revolução socialista encabeçada pelo proletariado que, desta forma, se converterá na classe dominante do ponto de vista numérico antes de sê-lo também do político. Estas duas fases históricas, estas duas etapas revolucionarias, estarão forçosamente separadas por um lapso de tempo mais ou menos longo. Este é a análise que conduz um certo número de mencheviques a defender a idéia de uma aliança dos socialistas com a burguesia liberal numa primeira etapa; assim se justifica a tendência que Lênin chamará “liquidacionista”, dado seu abandono da intenção de construir um partido operário que já não se considera instrumento indispensável da vitória nem sequer na primeira fase.
Para os bolcheviques a revolução de 1905 demonstrou que o proletariado era capaz de acabar simultaneamente com seus dois inimigos, a autocracia e a burguesia, com a condição de contar com o apoio do campesinato, o que faltou em 1905. Lênin manifesta seu acordo com os mencheviques ao reconhecer a necessidade da Rússia passar pela etapa da revolução democrático-burguesa antes da revolução socialista proletária; sem dúvida, a experiência de 1905, em sua opinião, demonstra que, por temor da classe operária, a burguesia é incapaz de leva-la a cabo e isto só pode fazer um proletariado que consiga se aliar com o campesinato faminto de terra. A revolução democrático-burguesa na Rússia não se fará, então, sob a direção da burguesia como ocorreu nos países adiantados; só poderá ser levada a cabo se for dirigida por uma “ditadura revolucionária e democrática do proletariado e campesinato” que “talvez ofereceria a possibilidade de levantar a Europa”, “ajudando-nos na empresa de completar a revolução mundial o proletariado socialista europeu ao se desembaraçar do jugo que lhe impõe a burguesia”[1]. Desta forma Lênin, ao tempo que mantém a distinção entre as duas etapas, introduz em seu esquema dois elementos de transição que lhe permitem situar sua analise em harmonia com as célebres frases de Marx a propósito da “revolução ininterrupta”[2]: em determinadas circunstâncias, a revolução socialista poderia surgir na Rússia e na Europa simultaneamente, como conseqüência da revolução democrático-burguesa russa, o que converte a construção de um partido operário social-democrata russo numa necessidade iniludível.
Trotsky é o único dirigente social‑democrata destacado que desempenha um papel importante na revolução de 1905. Apesar de seus vínculos organizativos com os mencheviques, se opõe de forma radical a suas concepções teóricas; a esta época pertencem os elementos essenciais de sua teoria da “revolução permanente”. Para ele, o traço mais característico da estrutura social russa é o desenvolvimento de uma indústria capitalista patrocinada pelo estado e baseada nos capitais estrangeiros. Portanto existe um proletariado, quando todavia não se pode afirmar a existência de uma autêntica burguesia, o que faz supor que, “num país economicamente atrasado o proletariado pode tomar o poder antes que num país capitalista avançado”[3]. O desenvolvimento da revolução de 1905 demonstrou, por sua vez, “que uma vez instalado no poder, o proletariado, pela própria lógica da situação, se verá impulsionado a administrar a economia como um assunto de estado”[4], o que supõe que a realização completa da revolução democrático-burguesa pelo proletariado implica automaticamente o passo simultâneo para a realização da revolução socialista. As condições exigidas por Lênin para a transição da primeira à segunda etapa, a saber, o apoio dos camponeses em sua luta pela propriedade da terra e o desenvolvimento da revolução nos países avançados, não são já, para Trotsky, senão meros apêndices da vitória final, rechaçando assim a fórmula da “ditadura democrática encabeçada pelo proletariado e apoiada pelo campesinato”. A possibilidade da vitória do socialismo num só país parece tão remota como ao próprio Lênin:
“Sem apoio direto do estado do proletariado europeu, a classe operária russa será incapaz de manter-se no poder e de transformar a supremacia transitória do proletariado em ditadura duradoura”[5].
Do ponto de vista dos historiadores, o fato capital da história da revolução de 1905 é, sem dúvida alguma, o surgimento dos sovietes, graças aos quais triunfaram em 1917 tanto a revolução proletária como o partido bolchevique. Tanto mais interessante é constatar que os sovietes não foram organizados por uma das tendências do movimento operário e que a polêmica entre os socialistas, depois de 1905, parece não reparar neste ponto.
O primeiro soviete apareceu em Ivanovo‑Voznessensk, o “Manchester russo”; teve sua origem num comitê de greve e nas assembléias celebradas diariamente pelos operários durante os 72 dias que durou o conflito[6]. A forma de conselho eleito de delegados, submetidos ao controle direto de seus eleitores e a revogabilidade de seus cargos, fez assim sua aparição na Rússia; a partir daí seria adotada em todos os centros operários. Parece que o soviete de São Petersburgo surgiu da iniciativa dos gráficos, começando em seguida a ampliar seu campo, abrangendo os delegados de fábrica que representam todos os operários da capital, os representantes dos sindicatos não operários e diferentes frações da social-democracia. Este é o centro que dirige a greve geral, assumindo, ao mesmo tempo, a responsabilidade de assegurar a ordem, regulando os transportes e outros serviços públicos cujo funcionamento é imprescindível para seu próprio êxito; depois da volta ao trabalho, o soviete impõe igualmente a jornada de oito horas nas fábricas. Também toma a iniciativa de publicar um jornal diário, Izvestia (As Noticias), organiza a luta contra o imposto, publica o célebre manifesto em que se adverte aos credores estrangeiros que a revolução não pagará os rendimentos dos empréstimos russos, e por último, impõe para fazer frente à inflação crescente, o pagamento dos salários em moeda convertível em ouro. De outro lado, o soviete de São Petersburgo impulsiona e fomenta a organização de sindicatos e organiza grupos operários de autodefesa que reprimem a tentativa de pogrom que pretende realizar os “Cem Negros”[7]. O exemplo que oferece e a publicidade que adquire sua atividade originam a formação de sovietes em todas as grandes capitais: seja qual for a ocasião que permite sua criação ou seu ponto de partida local, se trate de um comitê de greve, de um comitê de ação ou de uma assembléia, os sovietes de 1905 são conselhos formados por delegados dos trabalhadores que se agrupam em torno dos delegados de fábricas, eleitos pelo conjunto de operários organizados ou independentes e que se compõem de representantes cujos eleitores podem invocar a qualquer momento a revogabilidade de seus mandatos. A curto prazo, todos acabam funcionando como autoridades revolucionárias que exercem um poder antagônico ao do Estado, um duplo poder de fato, que se apóia no exercício da autoridade dos trabalhadores, geralmente repressivo para as outras classes da sociedade.
Os mencheviques, cuja propaganda não teve inconvenientes em lançar consignas como “Estado popular”, “autoadministração” ou “comuna”, sustentaram a criação de sovietes, desempenhando neles um papel nada desprezível. De sua perspectiva de revolução burguesa, sem dúvida, não podem considera-los como órgãos de um poder cujo exercício duradouro seja possível. Os mencheviques de São Petersburgo, influenciados por Trotsky, atuam em contradição com os dirigentes da imigração. De fato, a maioria dos mencheviques considera os sovietes como o ponto de arranque do partido de massas ou dos sindicatos à Alemanha que aspiram construir e desenvolver segundo seu esquema que supõe que a sociedade russa terá de alinhar-se segundo as pautas da sociedade capitalista democrática da Europa Ocidental.
Temos visto até que ponto os bolcheviques desconfiam dos sovietes: alguns não vêem neles senão a tentativa de construção de um organismo informe e irresponsável que se enfrenta com a autoridade do partido. Os bolcheviques de São Petersburgo começam por negar-se a participar como tal no soviete de delegados operários e para convence-los será preciso que se exerça o prestigio e a influência de Trotsky sobre Krasin, representante do comitê central. No geral, os que mais simpatizam com os sovietes consideram-nos, no melhor dos casos, como meros instrumentos auxiliares do partido. Nem sequer o próprio Lênin parece ter-lhes dado a importância e o significado que, em 1917, se verá obrigado a reconhecer. Desta forma, após a dissolução do soviete de São Petersburgo, dá a razão aos bolcheviques que se opõem à admissão neles dos anarquistas: em sua opinião, o soviete não é “nem um parlamento operário nem um órgão de autogoverno proletário”, simplesmente se trata de uma “organização de luta que se coloca objetivos determinados”[8]. Em 1907 admite que seria necessário um estudo científico da questão para averiguar se os sovietes constituem na realidade “um poder revolucionário”[9]. No mês de janeiro de 1917, numa conferência sobre a revolução de 1905 só menciona os sovietes de passagem, defendendo-os como “órgãos de luta”[10]. Terão que passar algumas semanas antes de que sua análise se modifique pela influência de Bukharin, do holandês Pannekoek e sobretudo, do papel desempenhado pelos novos sovietes russos.
Também sobre esta questão, Trotsky aparece como uma figura isolada e precursora. Do coração mesmo da experiência do soviete de São Petersburgo extrai suas conclusões, faz um balanço de sua ação e, por último, afirma:
“Sem dúvida alguma, na próxima explosão revolucionária, se formarão conselhos operários como este em todo o país. Um soviete pan‑russo de operários, organizado por um conselho nacional (...) assumirá a direção (...). O futuro soviete deduzirá destes cinqüenta dias todo seu programa de ação (...), cooperação revolucionária com o exército, o campesinato e os setores mais humildes das classes médias, abolição do absolutismo e destruição de seu aparato militar, abolição da policia e do aparato burocrático, jornada de oito horas, distribuição de armas ao povo e sobretudo aos operários; transformação dos sovietes em órgãos revolucionários de governo nas cidades, formação de sovietes camponeses para dirigir, desde o campo, a realização da reforma agrária, eleições para a Assembléia Constituinte”[11].
Em outra ocasião afirma:
“Este plano é mais fácil de formular que de aplicar, mas, se a revolução deve impor-se, o proletariado não pode se furtar a assumir tal papel. Cumprirá com esta tarefa revolucionária sem paralelo na história universal”[12].
Após ter sido praticamente o único a afirmar, como o fez ante seus juizes, que o soviete, “organização típica da revolução”, considerada como “organização do próprio proletariado”, se converteria no “órgão de poder da classe operária”[13], Trotsky permaneceria afastado da polêmica fundamental dos social‑democratas a propósito da participação no governo provisório que iria surgir de uma nova revolução. Os mencheviques se pronunciam contra tal participação, argumentando que é a burguesia a encarregada de dirigir a revolução burguesa e que o papel dos socialistas deve ser permanecer na oposição e recusar qualquer participação no poder, posto que a eles corresponde o fortalecimento das posições da classe operária impedindo ao mesmo tempo um compromisso prematuro na luta pelo socialismo. De seu lado, os bolcheviques afirmavam que, ao renunciar a participar num governo provisório, os social-democratas renunciariam ao mesmo tempo a realização da revolução democrática. Certamente, a história parece zombar deles quando, em 1917, são precisamente os mencheviques que aceitam a participação no governo provisório, enquanto os bolcheviques reprovam tal atitude, como se tratasse de uma traição. Isso se devia a que, nesta época, a construção dos sovietes se converteu na tarefa dos operários e camponeses e este espontâneo e tumultuoso desenvolvimento revolucionário teria superado de maneira definitiva as velhas polêmicas, com efeito idêntico ao que, alguns anos atrás, havia tido a guerra.
A guerra de 1914 vai trazer novas linhas de demarcação nas posições dos social-democratas. Os grandes partidos da II Internacional, os socialistas franceses e os social-democratas alemães – salvo o pequeno grupo internacionalista de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht –, participam na santa aliança; em ambos lados, sustentam a defesa nacional, suspendem a luta pelo socialismo e mesmo qualquer luta operária imediata, a necessidade de submeter previamente pela força das armas o militarismo imperialista do inimigo. De fato, nos países ocidentais, os partidos socialistas optam pela preservação dos vínculos que lhes unem às suas respectivas burguesias, se solidarizando com elas no conflito bélico: a Internacional como organização operária entrou em colapso, posto que seus dirigentes, seja qual for o país ou o sistema de alianças em que estão incluídos, colocam sua solidariedade nacional com o estado acima da solidariedade internacional com os operários dos demais países. Em termos leninistas, durante este processo, o reformismo se converte em “social-chauvinismo”. Em tais condições, não pode portanto nos surpreender que a corrente patriótica tenha sido menos vigorosa na Rússia que no Ocidente: o reformismo não contava ali com uma base social própria e a declaração de guerra é utilizada de imediato e sem nenhum pudor pelo governo czarista para justificar a proibição da imprensa operária de todas as tendências. Os deputados bolcheviques e mencheviques da Duma chegaram a um acordo na hora de votar contra os créditos militares que seus colegas franceses e alemães aceitaram de imediato, por temor de perder na repressão tudo aquilo que ainda consideram como suas “conquistas”.
A social‑democracia russa, sem dúvida, vai sentir em sua própria carne todas as divisões da social‑democracia internacional, se bem que a relação de forças é distinta, dada as características específicas da sociedade e movimento operário russos. Plekhanov condena, como uma “traição”, o boicote socialista aos créditos militares, sustentando ao mesmo tempo o ponto de vista da defesa nacional: igual aos socialistas franceses, opina que a derrota do imperialismo alemão, muralha do capitalismo e militarismo europeus, propiciará uma vitória do socialismo, conciliando desta forma uma contradição que é só aparente e se alinhando com os socialistas alemães que, de seu lado, vêm na derrota czarista, bastião da reação, uma mostra da possível vitória do socialismo, obtida no país onde o partido é mais forte... Junto a ele se alinham a maioria dos mencheviques emigrados, assim como o secretariado estrangeiro; sem dúvida, não consegue arrastar a totalidade dos militantes, pois numerosos mencheviques, que até então se encontravam à sua direita, se negam a adotar tal atitude patriótica.
De seu lado, Lênin, que se refugiou na Suíça após os problemas surgidos durante sua residência na Áustria, redige um manifesto do comitê central do partido em que afirma:
“Não há duvida alguma de que o mal menor, do ponto de vista da classe operária e das massas trabalhadoras de todos os povos da Rússia, seria a derrota da monarquia czarista, que é o mais bárbaro e reacionário dos governos, o que oprime o maior número de nacionalidades e a maior proporção da população da Europa e Ásia”[14].
Ao reparar no afundamento da II Internacional, o comitê central bolchevique, retomando os princípios que lhe serviram para construir sua organização e com o fim de os propor a todos os socialista, declara:
“Que os oportunistas preservam as organizações legais ao preço de trair suas convicções; os social-democratas, ao contrário, utilizarão seu espírito organizativo e seus vínculos com a classe operária para criar as formas de luta legais, tendentes ao socialismo e à maior coesão proletária, que correspondem à crise. Criarão tais formas de luta ilegal não para combater junto com a burguesia patriota de seu país, mas para lutar ombro a ombro com a classe operária de todos os países. A Internacional proletária não sucumbiu nem irá. As massas operárias criarão uma nova internacional apesar de todas as dificuldades”[15].
No mês de fevereiro de 1915, se celebra em Berna uma conferência de grupos bolcheviques imigrados em que participam alguns recém-chegados da Rússia como Bukharin e Piatakov, dita conferência se inclina pela “conversão da guerra imperialista em guerra civil”.
Desta forma e por iniciativa dos bolcheviques que se opõem ao “defensismo” dos partidos da II Internacional, surge uma corrente “derrotista”, partidária da construção de uma III Internacional. A capitulação da II Internacional frente à guerra criou as condições de uma cisão definitiva do movimento operário mundial. Sem dúvida, serão necessários alguns meses para que os novos princípios e posturas triunfem, dentro da nova relação tanto das forças como dos preconceitos e dos antigos pontos de vista.
Em primeiro lugar, dentro da emigração russa, se escalam múltiplas posições, entre o defensismo de Plékhanov e o derrotismo de Lênin. Tanto Martov como muitos outros mencheviques se negam a admitir que a vitória dos Habsburgos ou dos Hohenzollern constitua um fator mais ou menos favorável para a causa do socialismo que a dos Romanov. Denunciam o caráter imperialista da guerra, o terrível séqüito de atrozes sofrimentos que significa para os trabalhadores de todos os países e afirmam que os socialistas devem acabar com a guerra mediante a luta por uma paz democrática e sem anexações; sobre esta base, prosseguem, se pode reconstruir a unidade dos socialistas de todos os países, cuja condição prévia há de ser a negativa a apoiar os créditos de guerra nos países beligerantes.
Então, Trotsky está muito próximo de Martov. Desde o verão de 1914, começa a atacar violentamente os social‑democratas alemães e franceses com um folheto que leva por título “A Internacional e a guerra”. Nele afirma:
“Nas atuais condições históricas, o proletariado não tem interesse algum em defender uma “pátria” nacional anacrônica que se converteu no principal obstáculo ao desenvolvimento econômico. Ao contrario, deseja criar uma nova pátria mais poderosa e estável, os Estados Unidos republicanos da Europa, como base dos Estados Unidos do mundo. Na prática, ao beco sem saída imperialista do capitalismo, o proletariado só pode enfrentar, como programa do momento, a organização socialista da economia mundial”[16].
Os mencheviques internacionalistas de Martov e os amigos de Trotsky vão se encontrar, junto com alguns antigos bolcheviques, em Nashe Slovo, o jornal russo que se edita em Paris sob a direção de Antónov‑Ovseienko.
As posturas se definem através das polêmicas. Desde novembro de 1914, Trotsky afirma:
“O socialismo reformista não tem nenhum futuro porque se converteu em parte integrante da antiga ordem e no cúmplice de seus crimes. Aqueles que esperam reconstruir a antiga Internacional, supondo que seus dirigentes poderão fazer esquecer sua traição ao internacionalismo com uma mútua anistia, estão obstaculizando de fato o ressurgimento do movimento operário”[17].
Em sua opinião, a tarefa imediata é “reunir as forças da III Internacional”. De seu lado, Rosa Luxemburgo acaba de adotar uma postura análoga: a ala revolucionária da social-democracia alemã se organiza na ilegalidade. Não obstante, Martov está preocupado pela evolução de Trotsky e não crê que a nova Internacional possa aspirar a um papel, que não seja o de seita impotente. No mês de fevereiro de 1915, Trotsky narra, nas páginas de Nashe Slovo, seus desacordos com os mencheviques e sua ruptura, em 1913, com o bloco de Agosto. Nashe Slovo se converte no núcleo mesmo do internacionalismo socialista, situado na encruzilhada de todas as correntes internacionalistas russas: em torno de Antónov‑Ovseienko, de Trotsky e de Martov se encontram antigos bolcheviques otzovistas como Manuilsky, antigos conciliadores como Sokólnikov, militantes que romperam com o menchevismo como Chicherin e Alexandra Kolontai, amigos de Trotsky como Yoffe, internacionalistas cosmopolitas entre os que se contam o búlgaro‑romano de educação francesa Christian Rakovsky, Sobelsoön, chamado Karl Rádek, oriundo da Galitzia, meio polaco, meio alemão – e também a italo-romana Angélica Balabanova.
Trotsky pressiona Martov para que rompa com os “social‑chauvinistas”. Lênin acusa Trotsky de querer preservar os vínculos que o unem a eles. No mês de julho, Trotsky escreve que os bolcheviques constituem o núcleo do internacionalismo russo. Martov rompe então com ele e abandona o jornal. No mês de setembro, 38 delegados de 12 países, incluídos os das nações beligerantes, se reúnem na localidade suíça de Zimmerwald. Nesta ocasião, Lênin defende a tese derrotista: transformação da guerra imperialista em guerra civil e constituição de uma nova Internacional. A maioria, que é mais pacifista que revolucionária, não o segue; se adota, por unanimidade, um manifesto redigido por Trotsky, em que se leva a cabo um chamado a todos os trabalhadores para por fim à guerra. Em 1915, quando deputados bolcheviques se encontram encarcerados, os mencheviques aceitam participar na Santa Aliança e seu líder Chjeidze parece retratar-se dos acordos tomados em Zimmerwald. Vera Zasúlich e Potrésov, os velhos chefes mencheviques, apóiam Plékhanov. Trotsky segue titubeando e se pergunta, em maio de 1916, se os revolucionários “que não contam com o apoio das massas” não se vêem, por isso, “obrigados a constituir durante um certo período a ala esquerda de sua Internacional”[18].
Lênin e Trotsky seguem polemizando em torno do “derrotismo”, que Trotsky não encontra nenhuma vantagem decisiva, fora as acusações de sabotagem que se fazem àqueles que estão firmemente dispostos a prosseguir a luta revolucionária sem preocuparem-se com o resultado da guerra; também discutem a propósito dos “Estados Unidos da Europa”, consigna que Lênin considera contemporizadora, e que corre o risco de frear a luta revolucionária que se leva a cabo em cada país, ao implicar, aparentemente, que a revolução não pode triunfar mais que simultaneamente em todos os países da Europa. Como demonstrou Isaac Deutscher, as diferenças entre os dois homens são mínimas e se alimentam fundamentalmente da desconfiança surgida das antigas querelas. O diário russo de Nova Iorque Novy Mir, em que, junto com Trotsky, colaboram a ex-menchevique Kolontai, o bolchevique Bukharin e o revolucionário russo‑americano Volodarsky, constitui, a princípios de 1917, um fiel expoente desta fusão de todos os internacionalistas russos – incluídos os bolcheviques –, que os “periodistas” vão converter em consigna fundamental, e que Bukharin, em oposição a Lênin, quer transformar em primeira pedra para a edificação de uma nova Internacional.
Durante certo tempo, todas as organizações social-democratas pareceram desaparecer. A tendência patriótica parece arrastar inclusive revolucionários profissionais como o operário Voroshilov, que se alista no exército czarista chegando a ser suboficial. Os bolcheviques e mencheviques internacionalistas são perseguidos com dureza. Os defensistas evitam por em perigo com sua atividade a União Sagrada que preconizam. No mês de novembro de 1914, o partido bolchevique é decapitado pela detenção, numa conferência, de seus delegados e do burô russo do Comitê Central. Todos são julgados, condenados e deportados. Kamenev, ante o tribunal, mantêm uma atitude firmemente internacionalista, mas não abandona sua solidariedade com o derrotismo tal como o define o manifesto do Comitê Central.
Até a primavera de 1916, Lênin e Zinoviev não conseguem, da Suíça, restabelecer o contato com o pouco que sobrou da organização. Em torno de Shliapnikov se reconstruiu um “burô russo” e este, por sua vez, restabeleceu pessoalmente a ligação com o operário Zalutsky e com o estudante Skriabin, aliás Mólotov. Começam a publicar alguns jornais ilegalmente em Petrogrado, Moscou e Jarkov. O metalúrgico Lutovinov consegue, em janeiro de 1917, reagrupar os militantes da região do Donetz e organizar uma conferencia regional. As condições de trabalho são extremamente precárias; cada vez que em Moscou se consegue reconstruir uma direção esta é imediatamente desarticulada e detidos seus membros. Quando o movimento operário começa a se refazer a partir de 1916, os grupos proletários que se constituem costumam ser autônomos: assim ocorre em Moscou com o de Tverskaia, com o comitê do partido do raio de Pressnia e, em Petrogrado, com a organização inter‑raios que sustenta o principio da reconstrução de um partido aberto a todos os internacionalistas. Esta última organização, resolutamente avessa ao defensismo menchevique mas inimiga igualmente dos princípios organizativos dos bolcheviques, conseguiu estabelecer, durante uns meses um precário contato com Trotsky e a redação de Nashe Slovo. No conjunto seguem sendo muito escassas as possibilidades de ação; serão precisos três anos de matanças nas trincheiras, de sofrimentos na retaguarda e de irrefreável ira popular para que com a revolução de fevereiro e a irrupção das massas até então passivas na rua, os reagrupamentos que estavam se gestando na imigração tomem corpo na Rússia.
Notas:
[1] Lenin, Obras Escogidas, Ed. Progreso t. 1, pág. 535-536. (retornar ao texto)
[2] lbidem, pág. 540. (retornar ao texto)
[3] Trotsky, 1905, Resultados y Perspectivas, Ed. Ruedo Ibérico, t II, pág. 171. (retornar ao texto)
[4] lbidem, pág. 199. (retornar ao texto)
[5] Ibídem, pág. 237. (retornar ao texto)
[6] Anweiler, Die Rätebewegung in Russland, págs. 49-52. (retornar ao texto)
[7] Ibídem, págs. 53-58. (retornar ao texto)
[8] Ibídem, pág. 100. (retornar ao texto)
[9] Ibídem, pág. 103. (retornar ao texto)
[10] Ibídem, pág. 103. (retornar ao texto)
[11]Trotsky, Historia del Soviet (Istoria Sovieta Rabóchij Deputátov), citada por Deutscher, El profeta armado págs. 145-146. (retornar ao texto)
[12] Ibídem. (retornar ao texto)
[13] Trotsky, «Discurso ante el tribunal, 19 de septiembre de 1906», citado por Fourth International, marzo de 1942. pág. 85. (retornar ao texto)
[14] Cahiers du bolchevisme nº 24, agosto de 1925, pág. 1511. (retornar ao texto)
[15] Ibídem, pág. 1512. (retornar ao texto)
[16]Citado por Deutscher, op, cit:., pág, 203. [17] Ibidem. pág205. [18] Ibídem. pág. 221. (retornar ao texto)
[17] Ibidem. pág205. (retornar ao texto)
[18] Ibídem. pág. 221. (retornar ao texto)
Inclusão | 19/08/2006 |