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Jenny e Laura tinham, um dia, por brincadeira, apresentado a seu pai uma série de perguntas cujas respostas deviam constituir uma espécie de “confissão”. Extraímos desse questionário, redigido em inglês, que se refere aos anos de 1860, a 1865, as respostas de Marx relativas às suas predileções literárias.
Sua principal aversão? Martin Tupper.
Sua ocupação favorita? Correr livrarias.
Seus poetas favoritos? Shakespeare, Esquilo, Goethe.
Seu prosador favorito? Diderot.
(KARL MARX, Homem, pensador e revolucionário, p. 175, E.S.I., 1928).
Marx não permitia, a ninguém, pôr em ordem, ou melhor em desordem, seus livros e seus papéis. Na realidade, a desordem era apenas aparente; tudo estava em seu lugar; ele achava sempre sem dificuldade o livro ou o caderno de que necessitava. Mesmo no decorrer de uma conversa, interrompia, se muitas vezes para mostrar no próprio livro a citação que acabava de fazer ou o número que acabava de indicar. Ele e seu gabinete eram um só e os papéis e os livros obedeciam-lhe como se fossem seus próprios membros.
Na maneira de colocar os livros não tinha nenhum respeito à simetria; os “in-quarto”, os “in-oitavo”, as brochuras confundiam-se com os outros. Mas não os arrumava segundo o tamanho, mas de acordo com o conteúdo. Seus livros serviam-lhe de instrumentos de trabalho em lugar de objetos de luxo. “São meus escravos, — dizia ele, — e têm de servir-me como eu quiser”. Maltratava-os sem cuidado com o formato, com a capa, com a beleza do papel ou da impressão, dobrando canto de folhas, enchendo as margens de marcas de lápis e acentuando as passagens históricas. Não escrevia notas, mas de vez em quando fazia um ponto de interrogação ou de exclamação quando acontecia que o autor passasse da medida. O sistema de que se servia para sublinhar permitia-lhe encontrar muito facilmente a passagem procurada. Tinha o habito de reler, depois de alguns anos, seus cadernos de notas e as passagens marcadas nos livros, para melhor conservá-las na memória, que era notável. Exercitara a memória desde jovem, segundo o conselho de Hegel, aprendendo de cor versos escritos em línguas que ignorava.
Conhecia de cor Henri Heine e Goethe que citava frequentemente na conversa. Lia os poetas de todas as literaturas europeias. Todos os anos relia Ésquilo no original. Considerava Ésquilo e Shakespeare os dois maiores gênios dramáticos de todos os tempos. Consagrara a Shakespeare — pelo qual tinha uma admiração sem limites — estudos aprofundados. Conhecia todas as suas personagens, sem exceção. Toda a família Marx professava uma espécie de culto pelo grande dramaturgo inglês; suas três filhas o sabiam de cor. Depois de 1848, querendo aperfeiçoar-se no conhecimento da língua inglesa que já lia correntemente, procurou e classificou todas as expressões peculiares de Shakespeare, Fez a mesma cousa com uma parte da obra do polemista inglês William Cobbett pelo qual tinha uma grande estima. Dante e Robert Bruns escavam entre seus poetas favoritos. Sentia grande prazer em escutar suas filhas declamar ou cantar as sátiras ou as poesias de amor do poeta escocês.
Cuvier, trabalhador infatigável e um dos mestres da ciência, instalara, no Museu de Paris, do qual era diretor, toda uma série de gabinetes de trabalho para seu uso pessoal. Cada um deles era destinado a uma espécie de ocupação particular e continha os livros, instrumentos e material anatômico necessários. Quando se sentia fatigado de um trabalho, Cuvier ia para outro gabinete e se entregava a uma outra espécie de estudo. Essa simples mudança de ocupação intelectual era para ele, dizem, um repouso. Marx era um trabalhador tão infatigável quanto Cuvier, mas não possuía meios como este, para instalar vários gabinetes de trabalho. Descansava andando de um lado para outro no quarto; seus passos, da porta à janela, haviam marcado o tapete, muito gasto, formando um sulco tão nítido como uma pista.
De tempos em tempos, estendia-se no divã e lia um romance; lia ao mesmo tempo até dois e três, andando de um lado para outro. Era, como Darwin, grande ledor de romances. Gostava principalmente dos do século dezoito e particularmente o Tom Jones de Fielding. Os autores modernos que mais o divertiam eram Paul de Kock, Carlos Lever, Alexandre Dumas pai e Walter Scott. Considerava, Old Mortality, desse último autor, uma obra magistral. Gostava de contos alegres e de histórias de aventuras. Seus romancistas preferidos eram Cervantes e Balzac. Considerava Don Quixote a epopeia da cavalaria agonizante, cujas virtudes iam tornar-se, no mundo burguês nascente, um objeto de deboche e de ridículo. Tinha uma tal admiração por Balzac que se propunha escrever uma obra critica sobre a Comédia humana, desde que tivesse terminado sua obra de economia. Balzac não foi somente o historiador da sociedade de seu tempo, mas também o criador dos tipos proféticos que, na época de Luis Felipe, existiam apenas em estado embrionário, e não se desenvolveram completamente Senão depois de sua morte, sob Napoleão III. Marx lia correntemente todas as línguas europeias e escrevia em três delas: alemão, francês e inglês, com o espanto dos donos dessas três línguas. “Uma língua estrangeira é uma arma na luta pela existência”, costumava dizer. Tinha para aprender todas as línguas uma rara facilidade que foi herdada pelas suas filhas. Na idade de 50 anos começou a estudar russo, e ainda que essa língua não tivesse nenhuma relação etimológica com as outras línguas modernas que ele conhecia, sabia dela bastante ao fim de seis meses para poder ler no original os poetas e escritores russos que ele mais amava: Puchkine, Gogol e Chtchedrine. O que o levou a estudar o russo foi o desejo de ler os documentos redigidos pelas comissões de inquéritos oficiais, documentos cuja divulgação o governo do Tzar impedia pelas suas espantosas revelações. Amigos devotados os haviam mandado a Marx, que foi, certamente, o único economista da Europa ocidental que deles tomou conhecimento.
Além dos poetas e romancistas, Marx tinha ainda um outro gênero de distrações: as matemáticas de que particularmente gostava. A álgebra era para ele um conforto moral e lha servia de refúgio nos momentos mais dolorosos de sua existência movimentada. Durante a última doença de sua mulher, era-lhe impossível se ocupar, como diariamente o fazia, de seus trabalhos científicos; só podia fugir à impressão que os sofrimentos de sua companheira exerciam em seu espírito, refugiando-se nas matemáticas. Foi durante esse doloroso período de sua vida que redigiu um trabalho sobre cálculo infinitesimal, trabalho de um grande valor segundo os matemáticos que o conhecem e que se propõem publicá-los em suas obras completas. Marx encontrava nas matemáticas superiores o movimento dialético em sua forma ao mesmo tempo mais lógica e mais simples. Segundo ele, uma ciência só é verdadeiramente desenvolvida quando pode utilizar-se das matemáticas.
A biblioteca de Marx, que contava mais de mil volumes, cuidadosamente reunidos no decorrer de uma longa vida consagrada às pesquisas científicas, não lhe bastava, entretanto, e por isso foi ele, durante muitos anos, frequentador assíduo do British Museum, cujo catálogo muito apreciava. Seus próprios adversários eram obrigados a reconhecer a extensão e a profundeza de seu saber, não somente em seu domínio especial, a economia politica, mas também no terreno da história, da filosofia e da literatura universal.
...Marx percebia as coisas à maneira do Deus de Vico; não via somente a superfície das coisas, penetrava no interior delas, estudando todos os elementos em suas ações e reações recíprocas, isolando cada um deles e estudando a história de seu desenvolvimento. Depois da própria coisa ele passava ao meio e observava o efeito deste sobre aquela e reciprocamente.
Remontava à origem da coisa, seguia-lhe o desenvolvimento assim como as repercussões as mais distantes. Não via um fenômeno em si, sem relação com seu meio, mas um mundo complexo, em movimento perpétuo e queria exprimir toda a vida desse mundo em suas ações e reações diversas e em vias da transformação perpétua. Os escritores da escola de Flaubert, e de Goncourt, se queixavam da dificuldade que há para se reproduzir exatamente a realidade e, entretanto, o que eles querem escrever é apenas a superfície de que fala Vico, impressão que as coisas produzem em seu espírito. Seu trabalho literário não passava de um brinquedo de criança em comparação com o trabalho realizado por Marx. Era preciso uma potência intelectual extraordinária para sentir a realidade e uma arte menos extraordinária para descrevê-la. Nunca Marx estava contente com seu trabalho, sempre mudava alguma cousa e sempre pensava que a exposição era inferior à representação. Um estudo psicológico de Balzac, que Zola vergonhosamente plagiou, A obra-prima desconhecida, causou uma profunda impressão sobre Marx porque nesse livro se descreviam os sentimentos que ele próprio experimentara. Via-se um pintor genial de tal maneira atormentado pela necessidade de tornar as cousas tal como elas se refletem em seu cérebro que dá a seu quadro retoques perpétuos tantas vezes e de tantos modos que, no fim, nada mais resta senão uma massa informe de cores que, entretanto, a seus olhos vedados, é a representação a mais perfeita da realidade.
...Marx trabalhava sempre com uma extrema consciência. Não citava nunca um fato ou um numero sem que pudesse apoiar-se sobre as melhores autoridades do assunto. Não se contentava com informações de segunda mão, mas ia sempre à própria fonte, fosse qual fosse o trabalho que isso lhe pudesse custar. Era capaz de correr ao British Museum para verificar, no próprio livro, o fato mais insignificante. Nunca seus criticos puderam acusá-lo da menor inexatidão e provar que, na sua demonstração, ele se apoiava em fatos que não resistiam a exame rigoroso. O hábito de remontar às fontes levou-o a ler escritores os menos conhecidos e que só por ele são citados. O Capital contem uma tal quantidade de citações de escritores desconhecidos que se poderia pensar que o autor teve prazer de exibir conhecimentos. Mas não é assim. “Exerço a justiça histórica, dizia Marx, dou a cada um aquilo que lhe pertence”. Considerava, realmente, que era de seu dever citar o escritor — por mais desconhecido ou insignificante — que tivesse sido o primeiro a exprimir uma ideia ou que tivesse encontrado para essa ideia a expressão mais exata.
...Quando suas filhas eram ainda pequenas, Marx as levava para passear contando-lhes histórias de fadas que nunca acabavam, contos que ele inventava andando e que alongava segundo a duração do passeio, de maneira que as garotas, escutando-o, esquecessem o cansaço. Marx possuía uma imaginação poética incomparável: suas primeiras obras literárias foram poesias. A senhora Marx guardava cuidadosamente as obras da juventude de seu marido, mas não as mostrava a ninguém. Os pais de Marx haviam sonhado para o filho a carreira de escritor ou de professor, mas rebaixou-se, segundo a opinião deles, consagrando-se à agitação socialista e ocupando-se de economia politica, ciência que, nessa época, era pouco apreciada na Alemanha. Marx prometeu às suas filhas escrever para elas um drama sobre os Gracos. Infelizmente, não pôde cumpri sua palavra. Seria interessante ver como ele, que era chamado “o cavaleiro da luta de classes”, trataria esse terrível e grandioso episódio da luta de classes no mundo antigo, Marx tinha na cabeça um grande número de projetos que nunca pôde realizar. Propunha-se, entre outras coisas, escrever uma lógica e uma história da filosofia; esta fora na juventude, seu estudo favorito. Ter-lhe-ia sido necessário viver cem anos para executar seus projetos literários e poder dar ao mundo uma parte dos tesouros que seu cérebro continha.
(PAUL LAFARGUE, KarI Marx, Neue Zeit, 1891; KarI Marx, homem, pensador e revolucionário, pgs. 112-124, E.S.I.)
Shelley via na Revolução Francesa uma etapa para a renovação da sociedade. Marx, que conhecia e compreendia os poetas tão bem quanto os filósofos e os economistas, gostava de repetir: “A verdadeira diferença entre Byron e Shelley reside nisto: aqueles que os compreendem e os amam consideram uma felicidade que Byron tenha morrido com trinta e seis anos, porque ele se teria tornado um burguês reacionário se vivesse mais tempo; lamentam, pelo contrário, que Shelley tivesse morrido com vinte e nove anos porque ele era inteiramente revolucionário e teria pertencido sempre à vanguarda do socialismo.”
(EDOUARD AVELING e ELEONORA MARX. AVELING, Shelley socialista, “in” Neue Zeit, 1888, p. 541).
Algumas vezes, as crianças cantavam canções negras e dançavam quando suas pernas estavam menos cansadas do exercido prolongado. Era absolutamente proibido falar de política ou de nossa miséria de refugiados durante o passeio. Pelo contrario, falava-se muito de arte e de literatura; Marx tinha assim ocasião de mostrar sua prodigiosa memória. Declamava longas tiradas da Divina Comédia que sabia quase inteiramente de cor. Recitava também cenas de Shakespeare, auxiliado pela sua mulher, que conhecia, ela também, perfeitamente esse autor; quando se encontrava num estado de exaltação particular, imitava Seidelmann no papel de Mefistófeles, Marx admirava Seidelmann que vira e escutara em Berlim quando estudante, e o Fausto era a obra poética que preferia. Não direi que Marx declamasse bem — ele forçava um pouco — mas acentuava sempre a propósito e salientava o sentido da frase; numa palavra: impressionava fortemente; o efeito cômico produzido pelas palavras do começo, lançadas com muita violência, desapareciam desde que se sentia que Marx penetrara profundamente o espírito do personagem, compreendera inteiramente o papel e o dominava na perfeição.
(W. LIEBKNECHT, “Pelos Campos e Terras”. Karl Marx, homem, pensador e revolucionário, p. 157, E.S.I.)
Quanto a mim, de todas essas inúmeras e maravilhosas histórias que Mohr(1) me contava, a de que eu mais gostava era a história de Hans Rockle. Durava meses e meses; compunha-se de toda uma série de histórias. É pena que não se tenha encontrado ninguém para pôr no papel essas histórias tão cheias de poesia, de espírito e de humor. Hans Rockle era um mágico à la Hoffmann, com uma loja de brinquedos e que nunca tinha dinheiro no bolso. Em sua loja, encontravam-se objetos os mais extraordinários: homens e mulheres de pau, gigantes e anões, reis e rainhas, mestres e companheiros, animais de quatro patas e pássaros tão numerosos quanto os da arca de Noé, mesas e cadeiras, equipagens e caixas grandes e pequenas. Se bem que fosse um mágico, Hans não podia nunca pagar suas dívidas ao diabo nem ao açougueiro e assim teve que, muito contra vontade, vender ao diabo todas as cousas que possuía, peça por peça. Depois de muitas, muitas aventuras e quiproquós, essas coisas voltavam sempre à loja de Hans Rockle. Algumas dessas aventuras provocavam calefrios ou faziam ficar em pé os cabelos da cabeça como nos contos de Hoffmann; outros eram cômicos, mas todos contados com uma vivacidade, um espírito e um humor inesgotáveis.
Mohr fazia também a leitura para os filhos. Como às minhas irmãs, ele leu para eu ouvir todo Homero, os Nibelungen, Gudrune(2), Don Quixote e as Mil e Uma Noites, Shakespeare era a Bíblia da casa; aos seis anos, eu já conhecia de cor cenas inteiras de Shakespeare.
Quando fiz seis anos, Mohr me deu de presente de aniversário um romance, o primeiro que li, o imortal Peter Simple(3). Esse primeiro romance foi seguido de toda uma série de
Marryat e de Cooper. Meu pai lia todos esses livros comigo e discutia cuidadosamente a respeito de seu conteúdo com sua filhinha. E quando a filha — entusiasmada pelas histórias marítimas de Marryat — declarava que queria, também, tornar-se um capitão (quaisquer que fossem as tarefas de um capitão) e perguntava ao pai se podia “vestir-se de homem” e engajar-se num navio de guerra, ele assegurava que podia, sem dúvida, que apenas era preciso não dizer nada a ninguém até que os planos estivessem inteiramente amadurecidos. Mas, antes que esses planos amadurecessem, veio a exaltação por Walter Scott e soube, com terror, que uma parenta distante me uniria com o odiado clã dos Campbell(4). Então surgiram planos para levantar os Highlands e fazer reviver a revolta dos vinte e quatro. Devo acrescentar que Marx relia sempre Walter Scott; ele o admirava e o conhecia quase tão bem quanto a Balzac e Fielding. Enquanto Marx falava desses livros e muitos autores à sua filha, mostrava-lhe onde encontrar aquilo que havia de mais belo e de melhor nessas obras e ensinava-a a pensar, — sem que ela se apercebesse disto, porque resistiria — ensinava-a a esforçar-se em pensar por si mesma e compreender.
(ELEONORA MARX-AVELING: Reminiscências. Texto fornecido pelo Instituto Marx-Engels-Lenine).
A diferença apareceria plasticamente, por assim dizer, se se comparassem os escritores preferidos dos dois homens. Para Marx, eram Homero, Dante, Shakespeare, Cervantes e entre os modernos, Balzac. Para Lassalle: Hutten, Lessing, Fichte, e, entre os modernos, Platen. São dois géneros de tipos literários totalmente diferentes. Num, espíritos que registam de maneira tão objetiva a imagem de uma época inteira, em que o resíduo objetivo está dissolvido mais ou menos, em parte, tão totalmente, que os autores desaparecem atrás de suas criações como numa obscuridade mística. No outro, espíritos que, como um deles diz, refletem somente “uma imagem da imagem do mundo”, homens nas obras dos quais reconhecemos menos o aspecto de seu mundo que a maneira pela qual eles se apoderaram ou ensaiaram se apoderar de seu mundo.
(MEHRING, Historia da Social-Democracia Alemã, t. IX, p. 243. Dietz, Stuttgart, 1903. ed al.)
Marx encontrava conforto espiritual e descanso na literatura. Durante toda a sua vida ela foi uma consoladora eficaz. Marx possuía nesse terreno os conhecimentos mais vastos, sem jamais ostentá-los; estes conhecimentos, mal aparecem em suas obras, exceto em seus panfletos contra Vogt onde utilizou, como verdadeiro artista, numerosas citações tiradas de todas as literaturas europeias. Assim como sua obra científica principal reflete uma época inteira, assim suas preferências literárias foram os grandes poetas universais cujas obras podem ser caracterizadas da mesma maneira: Ésquilo e Homero, passando por Dante, Shakespeare, Cervantes, até Goethe. Lia Ésquilo como diz Lafargue, uma vez por ano, no original; ficou sempre fiel aos seus velhos gregos e todos os miseráveis vendilhões que pretendessem prevenir os operários contra a cultura antiga, ele os expulsaria do templo com chibatadas.
Conhecia a literatura alemã desde a mais profunda Idade Média. Entre os modernos, Goethe e Heine eram os mais próximos; Schiller parece ter-lhe inspirado repugnância na juventude, quando o filisteu alemão se embriagava de “idealismo” mais ou menos bem compreendido do poeta, no qual Marx via somente a miséria da insipidez substituída pela miséria da ênfase. Depois de sua partida definitiva da Alemanha, Marx não mais se ocupou de literatura alemã; mesmo os autores pouco numerosos, que teriam sido sem dúvida dignos de chamar-lhe a atenção como Hebbel ou Schopenhauer, nunca são por ele mencionados; ataca violentamente Ricardo Wagner por ter deformado a mitologia alemã.
Entre os franceses, Marx tinha em alta conta Diderot; chamava o Sobrinho de Rameau uma obra-prima única. Essa simpatia se estendia por toda a literatura francesa progressista do século XVIII, da qual Engels diz que com ela o espírito francês atingira, tanto pela forma quanto pelo conteúdo, seu ponto culminante no passado; que pelo seu conteúdo, se considerarmos o estado da ciência da época, ela fica ainda hoje num nível extremamente alto e que, pela forma, nunca foi igualada depois. Consequentemente, Marx repudiava os românticos franceses; Chateaubriand particularmente, com sua falsa profundeza, seu exagero bizantino, sua vaidade sentimental, multiforme, numa palavra, seu amontoado de mentiras inigualáveis, sempre lhe repugnaram. Marx era entusiasta da Comédia Humana, de Balzac, que também fixara uma época inteira no espelho da ficção; queria, depois de terminar seu grande trabalho, escrever a esse respeito, mas esse plano, como tantos outros, ficou apenas em projeto.
Desde que se fixara em Londres, a literatura inglesa passou para o primeiro plano de suas preocupações literárias e aqui a poderosa figura de Shakespeare, objeto de um verdadeiro culto em toda sua família, eclipsou de longe todos os outros. Infelizmente, Marx nunca se pronunciou sobre a atitude de Shakespeare em face dos problemas do destino de sua época. Julgou Byron e Shelley dizendo que aquele que amava e compreendia esses poetas devia considerar uma felicidade o fato de Byron ter morrido com trinta e seis anos, porque se ele mais vivesse se teria tornado um burguês reacionário enquanto que se devia lamentar a morte de Shelley aos vinte e nove anos: ele era profundamente revolucionário e teria sempre pertencido à vanguarda do socialismo. Marx gostava muito dos romances ingleses do século XVIII, principalmente Tom Jones, de Fielding que, a seu modo, nos dá igualmente um quadro da época e do mundo; considerava alguns romances de Walter Scott modelos no gênero.
Em seus julgamentos literários, Marx era isento de todo “parti-pris” politico e social, como testemunha sua predileção por Shakespeare e por Walter Scott mas não aceitava também de nenhum modo essa “estética pura” que, muito frequentemente, se associa à indiferença e até mesmo ao servilismo. Aqui, igualmente, era um homem completo, um espírito independente e original que não poderia ser julgado numa escala comum. E isso porque até no fato de não ser exigente na escolha de suas leituras não desdenhava os acepipes literários diante dos quais se benze três vezes o esteta de escola. Marx era um grande leitor de romances, como Darwin e Bismarck; tinha uma predileção pelas histórias de aventuras e as obras humoristicas; chegava a ponto de descer de Cervantes, Balzac e Fielding a Paulo de Kock e Dumas pai, que tem na consciência o crime de ter escrito o Conde de Monte Cristo.
(MEHRING, KarI Marx, pgs. 509-510. Leipzig, ed. al.)
Notas de rodapé:
(1) Mohr, mouro: nome dado pelos familiares a Marx por causa da sua cor. (retornar ao texto)
(2) Epopeia germânica do século XIII colocada depois dos Nibelungen. (retornar ao texto)
(3) Romance marítimo do Marryat (1834). (retornar ao texto)
(4) Família aristocrata escocesa. O avô da mulher de Marx, Philipe von Westsfallen, desposou Jeanie Wichart, cuja mãe era uma Campbell. (retornar ao texto)
Inclusão | 03/07/2019 |