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A guerra “do direito e da civilização” devia, segundo seus ideólogos, arrancar da rotina uma humanidade atolada em seus interesses mesquinhos e competições sórdidas; ia acender as fogueiras purificadoras, derrubar com suas trombetas heroicas, os Jericós do egoismo, fazer brilhar o azul do firmamento sobre os sepulcros. As hecatombes e as ruínas precipitam a decadência de um regime cujas contradições se aclaram violentamente aos clarões das cidades incendiadas. Cultura, filosofia, literatura, arte, rolam a escarpa de uma realidade que se desfaz. Enquanto que a pirâmide social se desmorona na Rússia, as classes dirigentes do Ocidente são tomadas pela vertigem, sofrem a atração do caos, a fascinação das catástrofes próximas, essa embriaguez do abismo que faz Dostoiévski estremecer no fundo de seu céu hibernal e cristão, semeado de cúpulas e de estrelas.
“Nós outros, as civilizações, sabemos doravante que somos mortais”(1), suspira Valery. Esse desencanto e esse pessimismo não datam de ontem. Aparecem e se propagam no decorrer da segunda metade do século XIX, depois das barricadas de junho de 1848 e da Comuna de 1871, à medida que o proletariado cresce, se fortifica, se levanta como força independente, toma consciência de suas tarefas históricas, arvora a bandeira das reivindicações politicas e sociais. A evolução econômica que, desde há dois séculos, tão bem trabalhara para a burguesia, e a levara ao poder, acumula tempestades sobre a cabeça dessa burguesia. Quando o lucro e a propriedade capitalistas se encontram ameaçados, a burguesia deixa de crer na generosidade da história. Os mestres de seu pensamento hesitam e recuam.
Taine, que “vivera na ciência” sob o Império, escreve, Com as Origens da França Contemporânea, o livro da defesa da burguesia, por ódio à Comuna. Rénan, arrebatado outrora por um entusiasmo juvenil, tinha, à maneira dos saint-simonianos atribuído à ciência a missão de organizar a sociedade, de libertar o planeta pelas “artes e os oficios”. Ele afasta suas ilusões de 1848 quando repreende Caliban vestido de operário. “Quem sabe se a verdade não é triste?” e, prescrutando o futuro com medo; “O destino do homem tornou-se mais obscuro que nunca”... Brunetière, em 1895, proclama, depois de uma visita ao Vaticano, a “bancarrota da ciência”. Barrès exclama: “A inteligência, que cousa pequenina na superfície de nós mesmos!” Ao otimismo humanitário, à soberba confiança do século XVIII, ao evolucionismo de Hebert Spencer, ao positivismo de Augusto Comte, a classe dominante faz suceder uma reação antirracionalista e religiosa, desde que o imperialismo multiplica os conflitos, os choques, as guerras, as perturbações sociais. A ciência é revolucionaria, imprópria para defender e justificar a ordem existente; nega-se a ciência. Le Roy a acusa de fabricar a própria verdade que ela procura, de operar por meio de retalhos artificiais; Henri Poincaré denuncia o caráter convencional de suas hipóteses, seu afastamento do mundo real; Duhem apresenta a física como uma simples construção do espírito. O bergsonismo polariza todo o movimento espiritualista na França e pretende, levando a inteligência mais além dos conceitos estreitos e passageiros, remontar às realidades “profundas” – intuição, instinto, vida, duração, – enquanto desabrocham em torno de Pégui, como rosas de Natal misticas e pueris, as crenças medievais.
A Revolução de outubro abala ainda mais nos filósofos e ideólogos da burguesia a fé no futuro da cultura. O progresso, mesmo reduzido, como entendem Taylor e Ford, à técnica provoca o desemprego, aumenta a miséria e a coesão do proletariado, levanta contra o regime exércitos macilentos e famintos dos sem-trabalho. A máquina precipitou o declínio do Ocidente!
Às massas gregarias comprimidas sob as disciplinas industriais, Spengler contrapõe o “homem primitivo, solidariamente empoleirado como um abutre... sem um só sentimento partilhado com o seu semelhante, em liberdade completa... o homem forte, o homem solitário”. O russo branco Berdiaev se faz o profeta de uma “nova Idade Média”. Uma burguesia conservadora, acovardada e envelhecida, sonha com o fuso de Gandhi, com requintadas Tebaidas, com escolas de sabedoria, com um aperfeiçoamento moral do individuo, fonte primeira da felicidade social, — enquanto que os reacionários de luta preparam uma São Bartolomeu para os socialistas e democratas..
Abaixo as máquinas, essas grandes culpadas das crises e do desemprego, auxiliares infernais da revolução! Toda uma cruzada se organiza contra o progresso mecânico, aprendiz feiticeiro da lenda que o capitalismo desencadeou sobre o mundo. Sob o impulso das invenções, o corpo da humanidade cresceu muito rápido: para esse gigante enfermo, Bergson reclama um “suplemento de alma”. É preciso limitar e prevenir as descobertas, desencorajá-las, simplificar a existência, mandar de voltar para os campos os trabalhadores das usinas, restaurar o artesanato, voltar às formas de economia pré-capitalista. A salvação reside num maltusianismo da produção. “Depurai os técnicos! Dominai a ciência! Acorrentai o novo Prometeu!” suplica Caillaux, que conclui pela necessidade de uma “revolução espiritual”. Esse representante de uma classe, grande antigamente pelas suas ousadias intelectuais, seus arrebatamentos e suas criações, renega e vitupera esse passado. “Quando eu vejo um grande país a Leste da Europa, que, com o orgulho dos primários, prega a felicidade pela técnica, eu me pergunto se os homens não se teriam tornado loucos...” Luditas Modernos, os capitalistas param as máquinas: o proletariado que as quebrava há cem anos, quando começava a marchar, quer agora tomar conta delas para fazê-las servir à libertação dos homens!
No meio da decomposição do capitalismo, fermentam e pululam as mentiras idealistas, os anátemas contra o conhecimento e contra a razão. Substitui-se Darwin por Wotan. Essa regressão tem como etapa suprema o fascismo, com suas mistificações, com seus transes, seus auto-de-fé de livros, sua negação da cultura... “Quando ouço a palavra cultura, seguro meu revólver”(2) grita um personagem de Hans Johst, o Píndaro do nacional-socialismo.
Todas essas cruzes gamadas, esses fachos e esses machados, esses símbolos fantásticos, esses ditadores providenciais à procura do tempo perdido, esses delírios patrioteiros, esse culto irracional e do absurdo, essa volta à ignorância e à superstição, marcam o crepúsculo sangrento e a decadência de uma classe. Voltar atrás? Impossível. Então fazem apelo aos feiticeiros. Mas os feiticeiros não conseguem deter a marcha da locomotiva da história.
Entretanto, com que frenesi na esperança, com que violência na paixão, a burguesia ascendente acreditou, noutros tempos, no progresso universal, soberano, inelutável! No século XVIII, Turgot substitui o dogma teocrático de Bossuet por uma teoria de progresso que corresponde às aspirações de sua classe. Os grandes acontecimentos com os quais Bossuet entretém o Delfim são para Turgot apenas acidentes através dos quais o Terceiro Estado continua sua ascensão. “Os impérios se elevam e caem; as formas de governo se sucedem umas às outras; as artes, as ciências, se descobrem e se aperfeiçoam. Ora retardados, ora acelerados em seus progressos, passam de uns a outros climas. O interesse, a ambição, a vangloria mudam perpetuamente a face do mundo, inundam a terra de sangue e, no meio de seus destroços, os costumes se suavizam, o espírito humano se ilumina, as nações isoladas se aproximam umas das outras; o comércio e a politica reúnem enfim todas as partes do globo; e a massa total do gênero humano, em alternativas de calma e de agitação, de bens e de males, marcha sempre, ainda que a passo lento, para uma perfeição maior”(3).
De onde vem o conceito de progresso na filosofia idealista? Ele é determinado por duas noções essenciais; a finalidade — toda a história até o século XIII desenrola-se para preparar a vinda e o triunfo da burguesia cujo reino forma a etapa superior e última do desenvolvimento social; a continuidade cada geração vê crescer, por um movimento gradual e sem revezes, a soma de conhecimentos e do bem-estar geral. Os enciclopedistas repeliam o “milagre judeu” e o “milagre grego”,
Uma estrada real abre-se para a burguesia num reinado que desencoraja antecipadamente seus eventuais sucessores. Os fatos, entretanto, abriram largas brechas nessas majestosas construções filosóficas.
A finalidade? Desde a revolta dos tecelões de Lyon em 1831, as queixas e as reivindicações crescentes do proletariado sobem até à burguesia como uma fúnebre advertência: Memento mori...
A continuidade?
“As joias perdidas da antiga Palmira...”?
A “noite da Idade Média”? As crises periódicas que caem sobre o regime como ciclones, jogam à rua operários, expropriam uma parte da burguesia em benefício da outra?
Se certos períodos de prosperidade são acompanhados por um melhoramento relativo da existência operaria, é que a burguesia tira sobre seus dividendos, graças a uma exploração ainda maior sobre os mercados conquistados ou das colônias, prêmios contra os riscos de acidentes. Melhoria precária, frágil como a propriedade capitalista e que com ela passa...
Poderá a concepção burguesa do progresso ser retomada pelo proletariado nessa hora de mudanças de classes, como os archotes que os corredores gregos passavam uns aos outros nas Panateneas?
À ideia burguesa do progresso — essa “cegonha metafísica” denunciada por Lafargue e que faz parte do arsenal ideológico da classe dominante — o proletariado opõe a concepção materialista da história, o futuro e o definhamento perpétuos, o desenvolvimento por saltos e sacudidelas provocados pelo conflito das forças contraditórias. Ele rejeita a mística finalista e procura na causalidade e no determinismo a explicação dos “processus” naturais e sociais.
Não é a ilusão pacifica do progresso, são as revoluções que asseguram a continuidade da cultura. “A Revolução ou a morte!” Os homens, diz Marx, não podem renunciar ao nível cultural que atingiram: para conservá-lo, são obrigados, em certas horas, a transformar pela violência as relações sociais que lhes permitiram elevar-se, mas que, com o desenvolvimento das forças produtivas, não são mais que obstáculo e vínculos.
Que se afaste daqui toda a concepção mecânica do movimento social, da noção contemplativa da cultura ensinada pelo idealismo burguês! O indivíduo ativo não é mais o individuo abstrato como nos filosofes do século XVIII, nem a sociedade idealizada como em Hegel, mas uma classe social concreta. Os homens fazem sua própria história. Nada lhes é garantido previamente por uma fatalidade tutelar. Só se possui o que se conquista e o que foi conquistado pode ser perdido. As classes revolucionárias carregam, ao mesmo tempo que seu destino, as responsabilidades da cultura. Sociedades que atingiram uma civilização brilhante caíram por terra, não sob as larvas escaldantes da revolução, mas porque as forças revolucionárias que traziam em si mostraram-se impotentes para quebrar as antigas relações sociais. Suas fontes de energia decresceram então e se extinguiram, a vida cultural desapareceu dessas cidades florescentes, de antigamente: elas dormem hoje nos desertos azulados pela lua, tendo conservado apenas, de seus esplendores desaparecidos, a magia de um nome ligado a algumas ruínas.
A marcha da cultura não segue uma linha ascendente e continua. Há quedas, descidas, novas partidas com a utilização de antigos elementos. Os homens, quando fazem tábula rasa do passado, vêm do passado. As civilizações que se sucedem apresentam casos de mutações bruscas, mas nenhum começo absoluto. O velho Homero, banhado pelas auroras primitivas, é o herdeiro da antiga civilização do Egeu.
O prodigioso desenvolvimento da Renascença, a universalidade que a caracteriza, só foram possíveis pela ressurreição, pela assimilação dos valores culturais do passado. A ascensão da burguesia acha-se entravada, nos séculos XV e XVI pela manutenção do sistema feudal sustentado e consagrado pela Igreja católica, o mais poderoso dos soberanos. Toda a luta contra o feudalismo tornou-se uma luta contra a Igreja.
A descoberta da América, a circum-navegação da África, a penetração nas Índias e na China recuaram os limites do velho orbis terrarum; o saque colonial, o afluxo de metais preciosos, o aumento da produção e das trocas, as descobertas da mecânica, da física e da astronomia, arruínam os mercados locais e a antiga economia natural.
A ciência, até então serva humilde da Igreja, revoltasse contra a fé. A Reforma luterana, pondo a Bíblia ao alcance dos artesãos e dos lavradores, levanta-se contra a ditadura católica no interesse da classe média. Calvino dá uma expressão religiosa ao comércio e à livre concorrência. Sob um disfarce mistico, a burguesia trava seus primeiros combates para quebrar o sistema feudal. Solidamente fincada no terreno das necessidades econômicas, procura armas na ciência, no pensamento árabe principalmente na antiguidade greco-latina para a qual ela se volta nas pegadas de Dante e Petrarca.
As seitas heréticas da Idade Média já haviam feito reviver os filósofos da Grécia e de Alexandria e certas doutrinas da Kabala. As vagas provocadas pela queda de Constantinopla não somente jogaram os destroços do Baixo-Império nas costas da Itália: o sol do pensamento grego levantou-se vitorioso das ondas. Graecum est, non legitur, dizia o adagio medieval. Os manuscritos exumados dos mosteiros, escapos dos incêndios e dos naufrágios, levados pela impressão tipográfica através o mundo, as estátuas encontradas nos templos nos fóruns, inflamam e embriagam os corações subjugados e frios. As danças macabras e as mortificações da carne desaparecem diante da sabedoria profana e da beleza, enfim, revelada do corpo humano. Tudo revive e se anima nessa febre da época, nesse tumultuoso acordar do espírito e dos sentidos. As trevas se dissipam, o tomismo recua, a fé cega e cruel agoniza diante da razão torturada e triunfante. Em vão a Inquisição multiplica os suplícios. O riso de Rabelais, a dúvida irônica de Montaigne cobrem os últimos balbucios da escolástica. Campanela, em seu esconderijo, no meio dos piores sofrimentos, não cede: é a Idade Média ignorante, mistica e bárbara que estremece.
Vinte séculos depois das conversas nos jardins de Academus, um panteísmo neoplatônico refloresce sobre a terra. Sanete Plato, ora pro nobis! murmura Marcile Pircin sob suas roupas eclesiásticas, enquanto que Michel Servet, levantando-se contra a religião católica e a Reforma protestante, alimenta de filosofia grega sua heresia. Giordano Bruno, cavaleiro andante do livre pensamento, luta contra a teocracia sob a luz festiva da antiguidade ressuscitada. O epicurismo ateu inspira Vanini. Eles parecem, esses gigantes intelectuais empenhados na luta contra a tirania e contra a Igreja, mas as fogueiras em que são queimados Michel Servet, Etienne Dolet, Giordano Bruno e Vanini, iluminam a decomposição do mundo feudal.
Não é a decadência romana, são as grandes épocas greco-latinas que o humanismo burguês admira. Prefere Lucrécio a Petrônio, Cicero a Apuleo, Virgílio a Claudiano e a Rutilius, clarões de tardes fulvas invadidas pelas nuvens bárbaras. Um esteta como o Des Esseintes, de Huysmans, produto mórbido de uma sociedade que se decompõe, mergulha deliciado no latim do século IV cujas águas lamacentas e gordurosas alimentam a flora da putrefação. Mas a prosa francesa, a do período clássico, guarda o sinete de Plutarco e de Tácito.
Amyot, dando por companheiros a seus contemporâneos os heróis da antiguidade, incita a burguesia ao heroísmo. A fantasia torna-se mais que uma forma de arte, a idealização de uma classe que se apoia no passado para se engrandecer. Mais tarde, a Revolução Francesa toma emprestado aos romanos seus trajes e sua linguagem, como se, nesse seu último assalto ao mundo feudal, precisasse ainda, como Anteu, tocar com seu pé descalço a tradição latina.
Aos direitos bárbaros e ao direito canônico, tecidos de contradições e de inconsequências, a Renascença opõe o colossal Coripus juris civilis. Atrás da cidade papal, perdida nos vícios e nos crimes, a Renascença descobre a cidade romana. O direito romano considera a personalidade humana em suas relações as mais abstratas e as mais gerais, reconhece a propriedade privada e a liberdade de comércio a que aspira a burguesia. Na confusão das leis e dos costumes medievais, ele constitui uma força revolucionaria, representa a universalidade da razão escrita. Mais tarde, quando, nos séculos XVII e XVIII, em oposição aos direitos particulares e às servidões feudais, se forma a ideologia do direito natural, é no direito romano e no racionalismo grego que ela aprofunda suas raízes. Em nome do direito natural, a burguesia levanta-se contra os privilégios, invoca-o em sua luta pela igualdade jurídica e política.
A burguesia não toma emprestado somente às épocas pasmas e às civilizações desaparecidas. Apela para as criações das classes oprimidas, para o folclore que modifica e adapta às suas necessidades.
Assim, à lenda de Fausto, criada pelo folclore alemão, foram atribuídas, segundo as épocas, várias significações. O doutor Faustus, alquimista, feiticeiro e charlatão, príncipe da magia negra, percorre na primeira metade do século XVI as cidades da Alemanha; dá espetáculos estranhos em companhia de seu associado Wagner a quem apresenta como sendo o diabo. Uma noite, seu sócio o mata e a imaginação popular deduz que, ligado por um pacto com as potências do inferno, Fausto pagou sua dívida.
Acréscimos sucessivos enriqueceram a versão primitiva recolhida pelos exibidores de marionetes. Enquanto que os escritores feudais e católicos se apoderavam da lenda, num desejo de piedosa edificação, “como exemplo horrifico e abominável e como advertência sincera a todos os ímpios e presunçosos”, os espíritos mais avançados da época deram-lhe uma interpretação diferente. A Renascença inglesa retoma o folclore alemão: Marlowe pinta em Fausto o homem libertado de toda moral que, através da impiedade, da libertinagem e do crime, quer conhecer o que a vida contem de força e de alegria. Mas o ateu de Marlowe só pode sucumbir num mundo em que se prepara o triunfo dos puritanos; e seu Fausto, velho pecador, morre, desesperado, entregue às chamas devoradoras, impotente para levantar os braços aos céus porque está manietado pelos demônios.
Para Lessing, Fausto sucumbe vitima de sua anaia de conhecimentos. Mas Lessing, campeão das “luzes”, não pode puni-lo por ter procurado a verdade. Não é Fausto, mas o seu fantasma, que o inferno ganhará. “Não conquistastes a vitória sobre a ciência e a humanidade; a divindade não deu ao homem a mais nobre de suas inclinações para fazer sua desgraça eterna; o que vistes e julgastes possuir não é mais que um fantasma”.
Com Goethe, Fausto exprime a necessidade imperiosa de saber e de criar, a procura do sentido da vida, o amor de sua plenitude, a exaltação do espírito de empreendimento. Depois da Revolução Francesa, Fausto incarna o individualismo burguês, o homem novo hesitante entre a ciência, o prazer e a ação, tendo perdido a fé religiosa, esgotando-se na análise, duvidando de tudo e de si próprio, acalmado enfim pela realização das tarefas práticas, submetido, por graça de seu esforço contínuo, a Mefistófeles. Esse “praticismo” é a última recomendação de Goethe à burguesia.
Um século depois, a burguesia amedrontada pelo desenvolvimento da técnica condena Fausto e o atira aos infernos. Para Spengler, o “homem fáustico” é culpado de ter preferido a ação à mística e a conquista da natureza à sua contemplação. E por toda parte perturbou as quietudes, pôs em movimento forças temíveis, introduziu o fermento das revoltas, acumulou perigos e ameaças. Que ele desapareça!
Como a burguesia da Renascença, o proletariado reivindica a imensa herança do passado: classe revolucionária e libertadora, rejeita aquilo que permitiu às classes possuidoras manter seu domínio, mas retoma e desenvolve todos os conhecimentos adquiridos fazendo-os servir ao socialismo.
Franz Mehring regista esta opinião de Marx: “São muito tolos aqueles que não sentem todo o valor da antiguidade grega para o jovem socialismo triunfante, em sua tarefa de reconstituir a vida humana”.
O marxismo, ciência do proletariado, é a assimilação, a transformação e o resultado das mais altas conquistas do pensamento humano. “O marxismo, é o sucessor natural de tudo o que a humanidade criou de melhor no século XIX na filosofia alemã, na economia politica inglesa e no socialismo francês”.(4)
O socialismo francês de Fourier e de Cabet também tem sua fonte no materialismo do século XVIII. Os enciclopedistas consideram que a experiência, o hábito, a educação, as condições exteriores da vida agem sobre o homem. Visto que o homem é o produto do meio e que é modelado pelas circunstancias, é preciso modelar as circunstancias humanamente. O altruísmo, os bons costumes, a concordância do interesse privado e do interesse geral, a organização de uma sociedade humana, a razão regra suprema de todas as coisas, tais são os ensinamentos dos filósofos. Celebrando o Estado racional, denunciando o caráter irracional das instituições feudais, eles preparam a Revolução. Trazem à burguesia o produto dos conhecimentos acumulados de idade em idade, em sua expressão a mais audaciosa. Os artesãos do Faubourg de Saint Antoine tomaram e demoliram a Bastilha, mas foram os filósofos quem a indicou aos golpes da revolução. Diderot, o maior dentre eles, liga o movimento à matéria, proclama, antes de Feuerbach, a unidade concreta da razão e dos sentidos, anuncia, exprimindo pela primeira vez as ideias de transformismo, Lamarck e Darwin.
A sociedade, fundada sobre a razão, que a burguesia queria instaurar, chega, depois da derrota da nobreza, a novos antagonismos de classes, à corrupção do Diretório, ao despotismo napoleônico. Os frutos da razão revelam-se amargos. Crescidos na escola da Revolução Francesa e por ela decepcionados, alguns ideólogos esforçam-se para tirar uma lição dos acontecimentos. Os historiadores da Restauração — Augustin Thierry, Guizot e Mignet — vêm, na luta de classes, a trama da história. O presente lhes dá uma inteligência mais clara do passado. Para Thierry, como para Guizot, a França compreende duas nações inimigas que os séculos não conseguiram reconciliar e que foram colocadas, face a face, em 1789. Mas esses historiadores se mantêm no terreno da burguesia, não se apercebem do proletariado.
Os utopistas franceses, Saint-Simon, perceberam o proletariado surgido de uma sociedade que, segundo as brilhantes promessas dos filósofos, devia dispensar a todos bem-estar e liberdade. Pecquer e Cabet apelam para a generosidade e a compreensão da burguesia. Todos pesam que é próprio das classes esclarecidas reerguer o povo sofredor. Contrariamente a esses reformadores, Babeuf e Blanqui declaram-se partidários violência, mas reduzem a revolução a um golpe de mão. Marx toma ao socialismo francês sua critica do regime e o supera mostrando que a transformação social sairá das contradições internas do capitalismo, que não será uma dadiva dos bons sentimentos da burguesia nem fruto da audácia de minorias ativas. Marx saúda no proletariado não somente uma classe desventurada, mas uma classe revolucionaria, a única classe revolucionaria da sociedade capitalista.
A França fora o teatro de grandes lutas políticas no fim do século XVIII; era na França que o pensamento politico estava mais adiantado. Na Alemanha, pelo contrário, uma burguesia tímida e medrosa não soubera travar combate para sua emancipação: ali, o capitalismo ia desenvolver-se em meio dos entraves de um regime semifeudal. Todas as audácias que a Burguesia não pudera desenvolver pela ação, manifestava-as em suas especulações intelectuais. O hegelianismo representa, até 1840, o pináculo do pensamento filosófico alemão. Surge como um imenso “processus” dialético pelo qual se realiza o “espírito absoluto”. O vício profundo do hegelianismo que devia provocar sua ruína, é a contradição entre o método, que é movimento, e o sistema, que é imobilidade. Hegel afirma que a história da humanidade é um desenvolvimento infinito, mas vê em seu sistema a expressão de uma verdade definitiva. Marx toma de Hegel a dialética, que é "ciência das leis gerais do movimento tanto do mundo exterior como do pensamento humano" (5), e dando-lhe uma base materialista, vendo nas ideias apenas o reflexo do movimento dialético do mundo real, apoia nos pés e não “na cabeça sobre a qual se mantinha”(6) a dialética de Hegel.
A síntese do materialismo e do socialismo francês de lado, da filosofia hegeliana de outro, levaram Marx à concepção materialista da história. Outra grande descoberta que ele fez, a da mais-valia, tem sua origem numa critica de economia política inglesa. Em nenhum país, a economia política tinha avançado mais que na Inglaterra do século XIX, onde a revolução industrial do século precedente imprimira um desenvolvimento vigoroso ao capitalismo. Seu horizonte social impusera aos economistas ingleses e ao mais poderoso dentre eles, Ricardo, limites que eles não haviam conseguido transpor. A economia clássica descobriu que o trabalho é a medida de todos os valores e que o valor de uma mercadoria é determinado pelo trabalho necessário à produção. Mas, como explicar que o operário dê mais do que recebe? A economia clássica guardava a este respeito um silêncio comprometedor. Marx, foi o primeiro a demonstrar que a força de trabalho vendida pelo operário é uma mercadoria de natureza particular, que essa mercadoria deixa um excedente de valor produzido sobre o valor consumido — a mais-valia. A classe trabalhadora produz todos os valores, mas estes não lhe pertencem; só uma parte lhe é devolvida sob a forma de salário. Marx relevou assim “o mistério da produção capitalista” sobre a qual esbarrara a economia clássica.
O marxismo não é, portanto, uma doutrina fechada e rígida surgindo fora da linha do desenvolvimento geral. É o continuador da civilização burguesa e, através dela, de todo o passado.
A cultura não é um patrimônio de ideologias mortas; ela é essencialmente viva, ligada às relações sociais e às forças produtivas. Encarada em seu desenvolvimento histórico, a cultura não pode ser enriquecida e desenvolvida senão quando é renovada e ultrapassada.
A antiga cultura era a de uma classe dominante, cultura estreita, solidamente aprisionada, patrimônio de uma minoria para uma minoria, servindo para defender e justificar a desigualdade social. No alto, os dez mil privilegiados; em baixo, a massa mantida na submissão e na inércia.
Há, no Vermelho e Negro, de Stendhal, uma cena particularmente comovedora. Julien Sorel janta em casa de Valenod, o rico diretor da prisão dos mendigos. De repente, fora, ouve-se o canto dos prisioneiros, Valenod faz sinal a um dos criados de libré e logo a canção se extingue. “Impus silêncio aos mendigos”, proclama o diretor triunfante. Julien Sorel pensa melancolicamente: “Enquanto te empanturras de carnes, impedes que o pobre prisioneiro cante”(7). Não basta aos produtores açambarcar os alimentos, eles recusam aos miseráveis o direito de exprimir suas desgraças.
“Não vos pedimos que penseis, há pessoas pagas para isso”, dizia Taylor e seus operários. Um trabalhador só deve se ocupar de seu trabalho. Uma cultura para o povo? Com a condição que ela forme servidores qualificados e doceis... O ensino é decretado obrigatório quando o emprego de uma mão de obra ignorante se mostra desvantajosa. Onde, como nas colônias, bastam os coolies, não se lhes ensina o alfabeto.
Da cultura dos senhores são banidas as massas. Não têm acesso ao mandarinato intelectual, ao Capitólio dos arrogantes iniciados, senão aqueles que, saídos do povo, pagaram um tributo. Os outros, a imensa multidão obscura, continuam condenados à ignorância. Braços sem cérebros...
Na antiga cultura, a divisão do trabalho tinha, segundo a Opressão de Marx, separado o homem de si próprio. O escritor estava isolado dos trabalhadores, seus livros não chegavam até eles; produzia obras apenas para uma pequena camada de privilegiados e parasitas. Como é comovedora a queixa desses grandes espíritos solitários, afastados da massa, reduzidos a impotência e que, voltados para as trevas, chamam por aqueles que não podem vir! A torre de marfim de onde o artista contempla romanticamente as estrelas é o resgate de seu gênio, o castigo que lhe impõe uma sociedade que baniu da cultura a classe mais numerosa, mais deserdada, aquela que cria todas as riquezas. “Da multidão a nós, nenhum vínculo; tanto pior para a multidão, tanto pior principalmente para nós!” exclama Flaubert desesperado, enquanto que Kierkegaard, filósofo das angustias espirituais, se lamenta: “Mas afinal dai-me logo um corpo!”
A revolução proletária, expropriando a classe capitalista, destruiu seu monopólio cultural. Não é defendendo a cultura burguesa e agarrando-se às suas tradições, é quebrando os privilégios da burguesia que se prepara e que se permite a ascensão do proletariado à cultura. Marx levou a ridículo “esse socialismo que não pode chegar a compreender porque a burguesia se fecha obstinadamente a ele, quer ele gema sentimentalmente pelos sofrimentos da humanidade quer anuncie cristãmente a vinda do reino milenário e, era da fraternidade universal, quer diga disparates à maneira dos humanistas, sobre o Espirito, a Cultura, a Liberdade ou invente um sistema de reconciliação e de prosperidade de todas as classes da sociedade”(8).
As massas tomam da cultura deixada pela burguesia, assimilam-na, mas, assimilando-a, transformam-na porque não se podem contentar nem servir-se de uma cultura feita para o uso de parasitas. As massas queimam no fogo da criação socialista os resíduos do individualismo burguês. Destruindo o modo de produção capitalista, elas solaparam os fundamentos os quais repousava o edifício da cultura burguesa e provocaram sua queda. Desses destroços, recolhem os materiais que lhes servirão para elevar, na base da economia coletiva, uma cultura de qualidade nova.
A cultura proletária não pode ser imposta de cima, nem fabricada artificialmente em estufa. Tal é o grande pensamento de Lenine. Não há um verdadeiro governo operário e camponês se a cozinheira não for capaz de participar nos negócios de Estado. As massas criam sua própria cultura. Transformando os valores intelectuais do passado, elas se transformam a si próprias.
“Celebrais a abertura de um estaleiro ou de um armazém, o inicio de funcionamento de uma usina, a inauguração de uma linha de ‘metro’ como uma conquista cultural! — objetara do alto das nuvens algum paladino do Espirito. É muito barulho por tão pouco!” A cultura burguesa ignora as contingências vulgares e as necessidades inferiores, não se mistura com a matéria. Essa velha matrona hidrópica faz questão de manter-se à distância. Quer ser pura de todos os compromissos, imaculada, seráfica. A filosofia idealista só admite sob o nome de cultura as atividades espirituais dos homens! Ora, não há cultura intelectual sem base econômica correspondente. “Marx, lembra Engels, descobriu a lei do desenvolvimento da história humana, isto é, esse fato simples, — disfarçado anteriormente pelo amontoado das ideologias — de que os homens, antes de se ocupar de política, de ciências, de arte, de religião, devem primeiramente comer, beber, morar e vestir.”(9) “Partindo da mais completa miséria, as massas podem e devem considerar cada realização material como uma etapa para a cultura, como uma parte dessa cultura.
A revolução proletária que liquida com os privilégios de classe e os particularismos nacionais, permite, — como acentuou Stalin, — o desenvolvimento de uma cultura nacional na forma e socialista pelo conteúdo. Ela dá livre curso à atividade das massas, estimula o esforço coletivo e a solidariedade internacional, anuncia a verdadeira democracia, a cultura proletária é uma cultura de combate. Põe fim ao desperdício econômico e à anarquia da produção, abre possibilidades imensas de trabalho, apela para a energia criadora das massas. Apoia-se na técnica a mais perfeiçoada que lhe legou o capitalismo, na ciência desprezada e amordaçada pela burguesia, tornando essa ciência sua melhor aliada. Os preconceitos, as fraquezas e as taras, herdadas do regime, capitalista, tendem cada vez mais a desaparecer. Cabe ao socialismo concluir essa transformação que vai do homem mutilado pela especialização ao homem engrandecido por uma educação e uma atividade universais. Nenhuma barreira separa a cultura proletária da cultura socialista. No homem novo, o trabalho intelectual e o trabalho físico, a teoria e a prática, o conhecimento e a ação, se equilibrarão e se reunirão em harmoniosa unidade.
É para isso que nós lutamos. É por isso que morreram, morrem e morrerão ainda os revolucionários mais ardentes, os mais bravos, a fina-flor da classe operaria. Aqueles que os “defensores da civilização” apresentam como bárbaros, garantem, — quebrando as cadeias do capitalismo, — o futuro da humanidade e da cultura. Enquanto os aviões de Franco incendeiam Madrid, os voluntários da brigada internacional e os milicianos espanhóis, sob as balas dos mouros e dos legionários, evacuam e salvam da destruição os quadros dos museus e os incunábulos das bibliotecas, legando, antes de mergulharem na noite, o testemunho dos séculos desaparecidos àqueles que amanhã reconstituirão o mundo.
Paris, janeiro de 1937.
JEAN FRÉVILLE.
Notas de rodapé:
(1) Paul Valery, Variedades, p. 11. N, R. F, Paris, 1934. (retornar ao texto)
(2) Hans Johst: Schageter, p.26, Munich, 1933. (retornar ao texto)
(3) TURGOT: Segundo Discurso sobre o Progresso Sucessivo do Espírito Humano, pronunciado na Sorbonne cm 11 de dezembro de 1750. Obras t. II, p. 598., Edit. Daire, Paris, 1844. (retornar ao texto)
(4) Lenine: As Três Fontes e as Três Partes Integrantes do Marxismo. Karl Marx e sua Doutrina, pg. 54. Bureau de Edições, Paris, 1932. (retornar ao texto)
(5) Engels: Ludwig Feuerbach, Estudos Filosóficos, p. 48, E. S. I., 1935. (retornar ao texto)
(6) Ibid, pt. 49. (retornar ao texto)
(7) Stendhal: O Vermelho e o Negro, t. I, p. 174, Flammarion, 1936. (retornar ao texto)
(8) Ver 18 Brumário Luis Bonaparte. Pg. 72. Biblioteca Marxista. (retornar ao texto)
(9) Engels: Discurso no túmulo de Marx, Karl Marx, homem, pensador revolucionário. p. 31. E. S. I. (retornar ao texto)
Inclusão | 03/07/2019 |