MIA > Biblioteca > Marx/Engels > Novidades
Transcrição autorizada |
Livro Primeiro: O processo de produção do capital
Quinta Seção: A produção da mais-valia absoluta e relativa
Décimo quarto capítulo. Mais-valia absoluta e relativa
O processo de trabalho (ver quinto capítulo) foi considerado, primeiramente de modo abstracto, independentemente das suas formas históricas, como processo que tem lugar entre homem e Natureza. Como referimos: «Se considerarmos todo o processo de trabalho do ponto de vista do seu resultado, então ambos — meio de trabalho e objecto de trabalho — aparecem como meios de produção e o próprio trabalho como produtivo.» E na nota 7 [na numeração MIA nota 11] acrescentou-se: «Esta determinação de trabalho produtivo, tal como resulta do ponto de vista do processo de trabalho simples, não basta de modo algum para o processo de produção capitalista.» E isto que há que desenvolver aqui.
Na medida em que o processo de trabalho é um processo puramente individual, o mesmo operário reúne todas as funções que mais tarde se separam. Na apropriação individual de objectos da Natureza para os seus fins vitais, ele controla-se a si próprio. Mais tarde ele será controlado. O homem singular não pode operar sobre a Natureza sem accionamento dos seus próprios músculos sob o controlo do seu próprio cérebro. Tal como no sistema da Natureza cabeça e mão formam uma parelha, o processo de trabalho reúne trabalho de cabeça e trabalho de mão. Mais tarde, eles separam-se até [constituírem] uma oposição hostil. Em geral, o produto transforma-se de um produto imediato do produtor individual num produto social, no produto comum de um operário total, i. é, de um pessoal operário combinado, cujos membros estão mais perto ou mais longe do manuseamento do objecto de trabalho. Com o carácter cooperativo do próprio processo de trabalho alarga-se necessariamente o conceito de trabalho produtivo e o do seu portador, o do operário produtivo. Para trabalhar de modo produtivo já não é mais preciso meter propriamente mãos à obra; basta ser um órgão do operário total, completar qualquer uma das suas subfunções. A determinação originária, acima referida, do trabalho produtivo, deduzida da natureza da própria produção material, permanece sempre verdadeira para o operário total, considerado como totalidade. Mas ela não é válida para cada um dos seus membros, tomados singularmente.
No entanto, por outro lado, o conceito de trabalho produtivo estreita-se. A produção capitalista não é apenas produção de mercadorias, ela é essencialmente produção de mais-valia. O operário não produz para si, mas para o capital. De modo que já não basta que ele, pura e simplesmente, produza. Ele tem de produzir mais-valia. Só é produtivo o operário que produz mais-valia para o capitalista ou que serve para a autovalorização do capital. Se é lícito colher um exemplo fora da esfera da produção material, um mestre-escola é operário produtivo quando, não só cultiva as cabeças das crianças, mas se esfalfa para enriquecimento do empresário. O facto de o último ter investido o seu capital numa fábrica de ensino, em vez de numa de salsichas, não altera nada na relação. O conceito de operário produtivo não inclui, por isso, de modo algum meramente uma relação entre actividade e efeito útil, entre operário e produto de trabalho, mas também uma relação de produção especificamente social, surgida historicamente, que cunha o operário em meio imediato de valorização do capital. Por isso, ser operário produtivo não é nenhuma sorte, mas um azar. No livro quarto desta obra que trata da história da teoria, ver-se-á mais de perto que a economia política clássica desde sempre fez da produção de mais-valia o carácter decisivo do operário produtivo. Por isso a sua definição do operário produtivo muda com a sua concepção da natureza da mais-valia. Assim, os fisiocratas declaram que só o trabalho agrícola é produtivo, porque só ele fornece uma mais-valia. Para os fisiocratas existe mais-valia, mas exclusivamente na forma da renda fundiária.
O prolongamento do dia de trabalho para além do ponto em que o operário tinha apenas produzido um equivalente do valor da sua força de trabalho, e a apropriação deste sobretrabalho pelo capital — é isto a produção de mais-valia absoluta. Ela forma a base universal do sistema capitalista e o ponto de partida da produção de mais-valia relativa. No caso desta, o dia de trabalho está de antemão repartido em duas partes: trabalho necessário e sobretrabalho. Para prolongar o sobretrabalho, o trabalho necessário é encurtado por métodos por intermédio dos quais o equivalente do salário do trabalho é produzido em menos tempo. A produção da mais-valia absoluta gira apenas em redor da extensão do dia de trabalho; a produção da mais-valia relativa revoluciona de ponta a ponta os processos técnicos do trabalho e os agrupamentos sociais.
Ela pressupõe, portanto, um modo de produção especificamente capitalista que, com os seus métodos, meios e condições, ele próprio apenas surge naturalmente e é desenvolvido na base da subsunção formal do trabalho sob o capital. Para o lugar da subsunção formal entra a subsunção real do trabalho sob o capital.
Basta uma mera referência a formas híbridas em que o sobretrabalho não é bombeado do produtor por coacção directa nem ainda apareceu a sua subordinação formal ao capital. Neste caso, o capital ainda não se apoderou imediatamente do processo de trabalho. Ao lado dos produtores autónomos que manufacturam ou cultivam, segundo um modo de funcionamento tradicional, ancestral, surge o usurário ou comerciante, o capital usurário ou o capital comercial que os suga de modo parasitário. O predomínio desta forma de exploração numa sociedade exclui o modo de produção capitalista para o qual, por outro lado, como no final da Idade Média, pode servir de transição. Finalmente, como o mostra o exemplo do moderno trabalho domiciliário, certas formas híbridas são reproduzidas aqui e acolá nos bastidores da grande indústria, embora com uma fisionomia totalmente alterada.
Se para a produção da mais-valia absoluta basta a subsunção meramente formal do trabalho sob o capital — p. ex., que artesãos que antes trabalhavam para si próprios, ou também como oficiais de um mestre de corporação, apareçam agora como operários assalariados sob o controlo directo do capitalista — vê-se, por outro, lado como os métodos para a produção da mais-valia relativa são simultaneamente métodos para a produção da mais-valia absoluta. Mais ainda, o prolongamento desmedido do dia de trabalho apresentou-se como o produto mais próprio da grande indústria. Em geral, o modo de produção especificamente capitalista deixa de ser mero meio para a produção da mais-valia relativa logo que ele se apoderou de todo um ramo de produção, e mais ainda, logo que se apoderou de todos os ramos decisivos da produção. Ele torna-se agora forma universal, socialmente dominante, do processo de produção, Como método particular para a produção da mais-valia relativa ele já só actua, em primeiro lugar, na medida em que atinge indústrias até aqui subordinadas apenas de um modo formal ao capital, portanto, na sua propagação [Propaganda], Em segundo lugar, na medida em que as indústrias que já caíram sob o seu poder são continuamente revolucionadas por mudança dos métodos de produção.
De um certo ponto de vista, a diferença entre a mais-valia absoluta e a mais-valia relativa parece ser, em geral, ilusória. A mais-valia relativa é absoluta, pois condiciona o prolongamento absoluto do dia de trabalho para além do tempo de trabalho necessário para a existência do próprio operário. A mais-valia absoluta é relativa, pois condiciona um desenvolvimento da produtividade do trabalho que permite limitar o tempo de trabalho necessário a uma parte do dia de trabalho. Se atentarmos, porém, no movimento da mais-valia, desaparece esta aparência de identidade. Uma vez estabelecido o modo de produção capitalista e tornado modo de produção universal, torna-se perceptível a diferença entre mais-valia absoluta e relativa logo que se trate de subir a taxa da mais-valia em geral. Supondo que a força de trabalho é paga pelo seu valor, ficamos perante a seguinte alternativa: dados a força produtiva do trabalho e o seu grau normal de intensidade, a taxa da mais-valia só é elevável por prolongamento absoluto do dia de trabalho; por outro lado, dentro de limites dados do dia de trabalho, a taxa da mais-valia só é aumentável por variação relativa de magnitude das suas partes componentes, do trabalho necessário e do sobretrabalho, o que, por seu turno, se o salário não descer abaixo do valor da força de trabalho, pressupõe variação na produtividade ou intensidade do trabalho.
Se o operário precisar de todo o seu tempo para produzir os meios de vida necessários para a conservação de si mesmo e da sua raça, não lhe resta tempo algum para trabalhar para terceiros de graça. Sem um certo grau de produtividade do trabalho não há esse tal tempo disponível para o operário, sem esse tempo excedentário não há sobretrabalho e, por conseguinte, não há capitalistas alguns, e tão-pouco quaisquer possuidores de escravos, quaisquer barões feudais, numa palavra, qualquer classe de grandes proprietários(1*).
Pode, pois, falar-se de uma base natural da mais-valia, mas apenas no sentido totalmente geral de que não há qualquer obstáculo natural absoluto que impeça alguém de desembaraçar-se do trabalho preciso para assegurar a sua própria existência e de sobrecarregar um outro com ele, bem assim como, p. ex., não há obstáculos naturais absolutos que impeçam uns de utilizar a carne de outros como alimento(3*). Não há de modo algum que associar, como por vezes acontece, representações místicas a esta produtividade natural do trabalho. É apenas a partir do momento em que os homens saem da sua situação animal primeira, portanto, quando o seu próprio trabalho já se encontra em certo grau socializado, que surgem relações em que o sobretrabalho de um se torna condição da existência de um outro. Nos começos da civilização [Kulturanfängen] as forças produtivas do trabalho já adquiridas são diminutas, mas são-no igualmente as necessidades que se desenvolvem com os meios da sua satisfação e em relação a esses mesmos meios. Além disso, naqueles começos a proporção das partes da sociedade que vivem de trabalho alheio é infinitamente pequena face à massa dos produtores imediatos. Com o progresso da força produtiva social do trabalho esta proporção cresce de modo absoluto e relativo(4*). De resto, a relação de capital brota de um solo económico que é o produto de um longo processo de desenvolvimento. A produtividade do trabalho dada, da qual ela [a relação de capital] parte como base, não é dom da Natureza, mas de uma história que abrange milhares de séculos.
Abstraindo da figura mais ou menos desenvolvida da produção social, a produtividade do trabalho permanece ligada a condições naturais. Todas elas são reportáveis à natureza do próprio homem, como a raça, etc., e à Natureza que o rodeia. As condições naturais exteriores desagregam-se economicamente em duas grandes classes: riqueza natural em meios de vida, portanto, fertilidade do solo, águas ricas em peixe, etc., e riqueza natural em meios de trabalho, como quedas de água vivas, rios navegáveis, madeira, metais, carvão, etc. Nos começos da civilização é a primeira espécie de riqueza natural que prevalece; em estádios superiores de desenvolvimento, a segunda. Compare-se, p. ex., a Inglaterra com a Índia ou, no mundo antigo, Atenas e Corinto com os países ribeirinhos do Mar Negro.
Quanto mais diminuto o número das necessidades naturais que há absolutamente que satisfazer e quanto maior a fertilidade natural do solo e a bondade do clima, tanto mais diminuto o tempo de trabalho necessário para a conservação e reprodução do produtor. Tanto maior pode, por conseguinte, ser o excedente do seu trabalho para os outros acima do seu trabalho para si próprio. Assim já Diodoro observa acerca dos antigos egípcios:
«Criam, com efeito, os filhos com uma facilidade e pouco dispêndio perfeitamente incríveis, pois fornecem-lhes [alimentos] cozidos feitos de qualquer coisa que esteja à mão com poucos custos, e dão-lhes pés de papiro capazes de serem assados no fogo, e raízes e caules [de plantas] dos pântanos: crus, cozidos ou grelhados. Andando a maioria das crianças descalça e despida, em virtude da boa temperatura dos lugares, os pais não pagam mais de vinte dracmas por toda a despesa até o pequeno chegar à adolescência. Principalmente por estas causas acontece que o Egipto se distingue pela abundância de população e que por isso tenha o maior número de construções de grandes obras.»(6*)
Entretanto, as grandes obras de arquitectura do antigo Egipto são devidas menos ao volume da sua população do que à grande proporção em que ela estava disponível. Assim como o operário individual pode fornecer tanto mais sobre trabalho quanto mais diminuto for o seu tempo de trabalho necessário, do mesmo modo quanto mais diminuta for a parte da população operária requerida para a produção dos meios de vida necessários tanto maior é a parte dela disponível para outro trabalho.
Uma vez pressuposta a produção capitalista, a magnitude do sobretrabalho, mantendo-se iguais as demais circunstâncias e numa dada extensão do dia de trabalho, variará com as condições naturais do trabalho, nomeadamente, com a fertilidade do solo. Daqui não decorre porém, inversamente, que o solo mais fértil seja o mais apropriado para o crescimento do modo de produção capitalista. Ele pressupõe dominação do homem sobre a Natureza. Uma Natureza demasiado pródiga «leva-o pela mão como a uma criança em andadeiras»[N156]. Ela não converte o seu próprio desenvolvimento numa necessidade natural(7*). Não é o clima tropical com a sua vegetação luxuriante, mas a zona temperada que é a pátria do capital. Não é a fertilidade absoluta do solo, mas a sua diferenciação, a variedade dos seus produtos naturais, que forma a base natural da divisão social do trabalho e que acicata o homem, pela mudança das circunstâncias naturais nas quais ele habita, a multiplicar as suas próprias necessidades, capacidades, meios de trabalho e modos de trabalho. A necessidade de controlar socialmente uma força da Natureza, de a governar, apropriar-se dela ou domá-la por meio de obras da mão humana em grande escala, desempenha o papel mais decisivo na história da indústria. Assim, p. ex., a regulação das águas no Egipto(8*), na Lombardia, na Holanda, etc. Ou na Índia, na Pérsia, etc., onde a irrigação por meio de canais artificiais fornece ao solo não só a água imprescindível, mas também o adubo mineral das montanhas depositado nas lamas. O segredo do florescimento da indústria em Espanha e na Sicília sob dominação árabe foi o sistema de canais [Kanalisation](9*).
A bondade das condições naturais fornece sempre apenas a possibilidade, nunca a realidade do sobretrabalho, portanto, da mais-valia ou do sobreproduto. As diversas condições naturais do trabalho provocam que a mesma quantidade de trabalho satisfaça em países diversos massas diversas de necessidades(10*), que, portanto, sendo análogas as demais circunstâncias, o tempo de trabalho necessário seja diverso. Elas operam sobre o sobretrabalho apenas como barreiras naturais, i. é, pela determinação do ponto a partir do qual o trabalho para outros pode começar. Na mesma medida em que a indústria avança, esta barreira natural regride. Em plena sociedade europeia ocidental — onde o operário só com sobretrabalho compra autorização para trabalhar para a sua existência própria — facilmente se imagina que é uma qualidade inata do trabalho humano fornecer um sobreproduto(11*). Considere-se, porém, p. ex., o habitante das ilhas orientais do arquipélago asiático onde o sagu cresce de modo selvagem na floresta.
«Se os habitantes ao fazerem um buraco na árvore se inteirarem que o miolo está maduro, o tronco é abatido e dividido em vários pedaços, o miolo é raspado, misturado com água e coado, e converte-se em farinha de sagu perfeitamente utilizável. Uma árvore dá comummente 300 libras e pode dar de 500 a 600 libras. Por conseguinte, uma pessoa vai à floresta e corta um pedaço de pão do mesmo modo como nós cortamos a lenha.»(13*)
Suponhamos que um tal cortador de pão asiático-oriental precisa de 12 horas de trabalho por semana para a satisfação de todas as suas necessidades. O que a bondade da Natureza imediatamente lhe dá é muito tempo de ócio. Para que ele empregue este para si próprio produtivamente é necessária toda uma série de circunstâncias históricas; que façam com que ele despenda esse tempo em sobre trabalho para pessoas estranhas, é requerida coacção exterior. Se fosse introduzida a produção capitalista, o nosso homem teria de trabalhar talvez 6 dias por semana para se apropriar ele mesmo do produto de um dia de trabalho. A bondade da Natureza não explica por que é que ele agora trabalha 6 dias por semana ou por que é que ele fornece 5 dias de sobretrabalho. Ela explica somente por que é que o seu tempo de trabalho necessário está limitado a um dia na semana. Em caso algum, porém, provém o seu sobreproduto de uma qualidade oculta e inata do trabalho humano.
Tal como as forças produtivas do trabalho, historicamente desenvolvidas, sociais, também as forças produtivas do trabalho condicionadas pela Natureza aparecem como forças produtivas do capital no qual o trabalho é incorporado. —
Ricardo nunca se preocupa com a origem da mais-valia. Ele trata-a como uma coisa inerente ao modo de produção capitalista, à forma, a seus olhos natural, da produção social. Quando fala da produtividade do trabalho não procura nela a causa da existência de mais-valia, mas apenas a causa que determina a sua magnitude. Em contrapartida, a sua escola proclamou alto e bom som a força produtiva do trabalho como sendo a causa do surgimento do lucro (leia-se: mais-valia). Em todo o caso, um progresso face aos mercantilistas, que, por seu turno, derivam o excesso do preço dos produtos acima dos seus custos de produção da troca, da sua venda acima do seu valor. Não obstante, a escola de Ricardo contornou meramente o problema, não o resolveu. De facto, estes economistas burgueses tinham o instinto correcto de que seria muito perigoso aprofundar demasiado a questão quente da origem da mais-valia. Que dizer, porém, quando meio século depois de Ricardo, o senhor John Stuart Mill constata, cheio de dignidade, a sua superioridade sobre os mercantilistas, ao repetir mal as evasivas carunchosas dos primeiros vulgarizadores de Ricardo?
Diz Mill:
«A causa do lucro é o trabalho produzir mais do que é requerido para o seu sustento.»
Até aqui nada mais do que a velha lengalenga; mas Mill quer também acrescentar algo de seu:
«Para variar a forma do teorema: a razão pela qual o capital fornece um lucro é porque alimentação, vestuário, materiais e ferramentas duram mais do que o tempo que foi requerido para as produzir.»
Mill confunde aqui a duração do tempo de trabalho com a duração dos seus produtos. Segundo esta perspectiva, um padeiro, cujos produtos duram apenas um dia, nunca poderia tirar dos seus operários assalariados o mesmo lucro que um construtor de máquinas, cujos produtos duram vinte e mais anos. Sem dúvida, se os ninhos de pássaros não se mantivessem mais tempo do que o exigido para a sua construção, os pássaros teriam de passar sem ninhos.
Uma vez fixada esta verdade fundamental, Mill regista a sua superioridade sobre os mercantilistas:
«Vemos, portanto, que o lucro surge não do incidente da troca, mas do poder produtivo do trabalho; e o lucro geral do país é sempre aquilo que o poder produtivo do trabalho o faz ser, quer tenha lugar ou não qualquer troca. Se não houver qualquer divisão de ocupações não haverá compra ou venda, mas continuaria a haver lucro.»
Aqui, portanto, a troca, a compra e a venda, as condições universais da produção capitalista, são um puro incidente e ainda há lucro sem compra e venda da força de trabalho!
Adiante:
«Se os trabalhadores do país produzem colectivamente vinte por cento mais do que os seus salários, os lucros serão de vinte por cento, quaisquer que sejam ou não sejam os preços.»
Por um lado, isto é uma tautologia extremamente bem conseguida, pois se os operários produzem para os seus capitalistas uma mais-valia de 20%, os lucros estarão para com o salário total dos operários na proporção de 20:100. Por outro lado, é absolutamente falso que os lucros «serão de 20%». Têm de ser sempre mais pequenos porque os lucros são calculados em relação à soma total do capital avançado. O capitalista tinha avançado, p. ex., 500 lib. esterl., das quais 400 lib. esterl. em meios de produção e 100 lib. esterl. em salários. Se a taxa da mais-valia for, como foi admitido, 20%, então a taxa de lucro seria 20:500, i. é, 4% e não 20%.
Segue-se uma amostra brilhante de como Mill trata as diversas formas históricas da produção social:
«Eu pressuponho por toda a parte o estado de coisas que [...] prevalece, com poucas excepções, universalmente; pressuponho, nomeadamente, que o capitalista avança com todas as despesas, inclusivamente com a remuneração inteira do trabalhador.»
Estranha ilusão de óptica: ver por toda a parte uma situação que até agora apenas prevalece no globo terrestre como excepção! Mas adiante. Mill é suficientemente benévolo para reconhecer que «o facto de ter de proceder assim não é uma questão de necessidade inerente».(14*) Pelo contrário.
«O trabalhador poderia esperar [...] até que a produção estivesse completada [...] mesmo pelo total dos salários, se tivesse à mão fundos suficientes para o seu sustento temporário. Mas, neste último caso, o trabalhador seria nessa medida, nesse negócio, realmente um capitalista ao fornecer uma porção dos fundos necessários para o levar por diante.»
Do mesmo modo, Mill poderia dizer que o operário que adiantasse a si próprio não só os meios de vida, mas também os meios de trabalho, seria na realidade assalariado de si mesmo. Ou que o camponês americano, que só moureja para si próprio em vez de para um senhor estranho, seria escravo de si mesmo.
Depois de Mill ter deste modo demonstrado claramente que a produção capitalista, mesmo que não existisse, contudo existiria sempre, é agora suficientemente consequente para demonstrar que ela própria não existe, mesmo quando existe:
«E mesmo no primeiro caso» (quando o capitalista adianta ao assalariado todos os seus meios de subsistência) [o trabalhador] «pode ser visto à mesma luz» (i. é, como um capitalista), «pois ao contribuir com o seu trabalho abaixo do preço de mercado» (!) «ele pode ser encarado como se adiantasse a diferença» (?) «ao seu empregador, etc.»(15*)
Na realidade efectiva, o operário adianta o seu trabalho ao capitalista durante uma semana, etc., gratuitamente, para receber o seu preço de mercado no fim da semana, etc.; isto transforma-o, segundo Mill, em capitalista! Em planícies chãs também montes de terra parecem colinas; meça-se a chateza da nossa burguesia de hoje pelo calibre dos seus «grandes espíritos».
Notas de rodapé:
(1*) «A própria existência dos mestres-capitalistas como classe distinta está dependente da produtividade da indústria.» (Ramsay, 1. c., p. 206.) «Se o trabalho de cada homem não fosse senão suficiente para produzir os seus próprios alimentos, não poderia haver propriedade.» (Ravenstone, 1. c., p. 14(2*).) (retornar ao texto)
(2*) Na edição inglesa: pp. 14, 15. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(3*) De acordo com um cálculo recentemente feito, só nas regiões da terra já exploradas vivem pelo menos ainda quatro milhões de canibais. (retornar ao texto)
(4*) «Entre os índios selvagens da América pertence quase tudo ao trabalhador, 99 partes de cem têm de ser postas à disposição do trabalho. Na Inglaterra, o trabalhador talvez nem tenha 2/3» (The Advantages of the East India Trade, etc., pp. 72, 73(5*).) (retornar ao texto)
(5*) Na edição inglesa: p. 73. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(6*) Diodoro, 1. c., 1. I, c. 80 [, 5. — Nota da edição portuguesa.] (retornar ao texto)
(7*) «A primeira» (a riqueza natural) «como é extremamente nobre e vantajosa, toma as pessoas descuidadas, orgulhosas e dadas a todos os excessos; enquanto a segunda compele à vigilância, à literatura, às artes e ao bom governo [policy].» (England’s Treasure by Foreign Trade. Or the Balance of our Foreign Trade is the Rule of our Treasure. Written by Thomas Mun of London, merchant, and now published for the common good by his son John Mun, London., 1669. pp. 181, 182.) «Também não posso conceber uma pior maldição sobre um corpo de pessoas do que a de ser lançado para um pedaço de terra onde as produções para subsistência e alimentação fossem em grande medida espontâneas e o clima exigisse ou permitisse pouco cuidado com vestuário e tecto... pode haver um extremo no outro sentido. Um solo incapaz de produzir com trabalho é quase tão mau como um solo que produz abundantemente sem qualquer trabalho.» ([N. Forster,] An Enquiry into the Presente High Price of Provisions, Lond., 1767, p. 10.) (retornar ao texto)
(8*) A necessidade de calcular os períodos do movimento do Nilo criou a astronomia egípcia e com ela a dominação da casta dos sacerdotes como dirigente da agricultura. «O solstício é o momento do ano em que começa a cheia do Nilo e aquele que os Egípcios devem ter tido de observar com mais atenção... Era esse ano trópico que lhes importava marcar para se governarem nas suas operações agrícolas. Por isso eles tiveram de procurar no céu um sinal aparente do seu regresso.» (Cuvier, Discours sur les révolutions du globe, éd. Hoefer, Paris, 1863, p. 141.) (retornar ao texto)
(9*) Uma das bases materiais do poder do Estado sobre os pequenos e desconexos organismos produtivos da Índia era a regulação do abastecimento de água. Os senhores maometanos da Índia entenderam isto melhor do que os seus sucessores ingleses. Recordemos apenas a fome de 1866 que custou a vida a mais de um milhão de hindus no distrito de Orissa, na presidência de Bengala. (retornar ao texto)
(10*) «Não há dois países que forneçam número igual de meios de vida em abundância igual e com a mesma quantidade de trabalho. As necessidades dos homens crescem ou diminuem conforme a severidade ou a suavidade do clima em que vivem; e, consequentemente, a proporção de negócio que os habitantes de países diferentes são obrigados a fazer por necessidade não pode ser a mesma, nem é praticável apurar o grau de variação de outro modo senão de acordo com os graus do Calor e do Frio; donde se pode tirar esta conclusão geral de que a quantidade de trabalho requerida para manter um certo número de homens é maior em climas frios e menor em climas quentes; pois, naqueles, os homens não necessitam apenas de mais agasalho, precisam também de trabalhar mais a terra do que nestes.» (An Essay on the Governing Causes of the Natural Rate of lnterest, Lond., 1750, p. 59.) O autor deste escrito anónimo que fez época é J. Massie. Hume retirou daí a sua teoria do juro. (retornar ao texto)
(11*) «[...] todo o trabalho deve» (isto parece pertencer também aos droits e devoirs du citoyen(12*)) «deixar um excedente.» (Proudhon [N157]) (retornar ao texto)
(12*) Em francês no texto, respectivamente: direitos, deveres do cidadão. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(13*) F. Schouw, Die Erde, die Pflanze und der Mensch, 2.ª ed., Leipzig, 1854, p. 148. (retornar ao texto)
(14*) De acordo com as indicações contidas na carta de Marx a N. F. Danielson, de 28 de Novembro de 1878, a citação de Mill deverá ser completada:
«Eu pressuponho por toda a parte», diz ele, «o estado de coisas em que os trabalhadores e os capitalistas são classes separadas, o qual prevalece, com poucas excepções, universalmente; pressuponho, nomeadamente, que o capitalista avança com todas as despesas, inclusivamente com a remuneração inteira do trabalhador.»
E o comentário que se segue substituído pelo seguinte:
O senhor Mill gostaria de acreditar que não é uma necessidade absoluta que seja assim — mesmo no sistema económico em que os operários e os capitalistas são classes separadas. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(15*) J. St. Mill, Principies of Political Economy, Lond., 1868, pp. 252-253, passim. — {As passagens acima foram traduzidas de acordo com a edição francesa do Kapital. — F. E.}(16*) (retornar ao texto)
(16*) Na presente edição, segundo o critério geral que adoptámos, seguimos o texto da edição inglesa. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
Notas de fim de tomo:
[N156] Paráfrase das palavras do poema An die Natur do poeta alemão de fins do século XVIII Friedrich Leopold, conde de Stolberg. (retornar ao texto)
[N157] Pierre-Joseph Proudhon, Système des contradictions économiques, ou philosophie de la misère. T. I, Paris, 1846, p. 73. (retornar ao texto)
Inclusão | 03/12/2013 |