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Fonte: Obras Escolhidas em três tomos,tomo II, pág:419-444 Editorial"Avante!"
Tradução: José BARATA-MOURA.
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: © Direitos de tradução em língua portuguesa reservados por Editorial
"Avante!" - Edições Progresso Lisboa - Moscovo, 1982.
Sobre esta matéria, o senhor Tkatchov conta aos operários alemães que, em relação à Rússia, eu nem sequer possuo «poucos conhecimentos», mas apenas «ignorância», e sente-se, por isso, obrigado a explicar-lhes o verdadeiro estado das coisas e, nomeadamente, as razões pelas quais, precisamente agora, se poderia fazer na Rússia uma revolução social com a maior das facilidades, muito mais facilmente do que na Europa ocidental.
«Entre nós, não existe nenhum proletariado citadino, isto é, sem dúvida, verdadeiro; só que, por isso, também não temos nenhuma burguesia... os nossos operários terão meramente de lutar contra o poder político — o poder do capital, entre nós, está apenas em germe. E V., meu [caro] senhor, saberá bem que a luta com o primeiro é muito mais fácil do que com o último.»[N284]
O revolucionamento a que o socialismo moderno aspira é, em poucas palavras, a vitória do proletariado sobre a burguesia e a reorganização da sociedade pelo aniquilamento de todas as diferenças de classes. Para isso, requere-se não apenas um proletariado, que execute esse revolucionamento, mas também uma burguesia, em cujas mãos as forças produtivas sociais se tenham desenvolvido tanto que permitam o aniquilamento final das diferenças de classes. Entre os selvagens e semi-selvagens também não subsistem frequentemente quaisquer diferenças de classes, e todos os povos passaram por semelhante estado. Já não nos pode, por isso, ocorrer restabelecê-lo, porque é dele que, com o desenvolvimento das forças produtivas sociais, as diferenças de classes necessariamente provêm. Só num certo grau de desenvolvimento das forças produtivas sociais — e [num grau] muito alto mesmo para as condições do nosso tempo — se torna possível elevar a produção tão alto que a abolição das diferenças de classes possa ser um progresso real, possa ser duradoura, sem ocasionar uma estagnação ou mesmo um retrocesso no modo social de produção. As forças produtivas, porém, só alcançaram este grau de desenvolvimento nas mãos da burguesia. Por este lado, a burguesia também é, portanto, uma condição prévia de revolução socialista tão necessária como o próprio proletariado. Por conseguinte, uma pessoa que pode dizer que esta revolução é mais fácil de executar num país, porque, como ele não possui nenhum proletariado, também não possui nenhuma burguesia, só demonstra com isto que ainda tem de aprender o ABC do socialismo.
Os operários russos — e esses operários são, como o próprio senhor Tkatchov diz, «agricultores e, como tal, [não são] nenhuns proletários, mas proprietários» — têm, portanto, a coisa facilitada, porque não têm de lutar com o poder do capital mas «simplesmente com o poder político», com o Estado russo. E esse Estado
«só de longe é que parece um poder... Ele não tem qualquer raiz na vida económica do povo; ele não incorpora em si os interesses de qualquer estado [ou ordem social, Stand]... No vosso país, o Estado não é nenhum poder aparente. Apoia-se com ambos os pés no capital; ele incorpora em si» (!!) «certos interesses económicos... Entre nós, esta questão dá-se precisamente ao inverso — a nossa forma de sociedade deve a sua existência ao Estado, ao Estado que, por assim dizer, está suspenso no ar, que não tem nada de comum com a ordem social existente, que tem a sua raiz no passado, mas não no presente».
Não nos detenhamos na representação confusa de que os interesses económicos precisam do Estado, que eles próprios criam, para adquirirem um corpo, ou na afirmação ousada de que a forma da sociedade russa (à qual, contudo, também pertence a propriedade comunal dos camponeses) deve a sua existência ao Estado, ou na contradição de que este mesmo Estado «não tem nada de comum» com a ordem social existente que, contudo, deve ser a sua criação mais própria. Examinemos antes, de momento, esse «Estado que está suspenso no ar», que também não representa os interesses de nem um único estado [Stand].
Na Rússia europeia, os camponeses possuem 105 milhões de deciatinas,(1) os nobres (como eu chamo aqui aos grandes proprietários fundiários, para encurtar) 100 milhões de deciatinas de terra, de que aproximadamente a metade cabia a 15 000 nobres que, portanto, possuíam em média, cada um, 3300 deciatinas. A terra dos camponeses só é, portanto, maior do que a terra dos nobres por uma ninharia. Os nobres, como se vê, não têm o mínimo interesse na subsistência do Estado russo, que os protege na posse de metade do país! Adiante. Os camponeses pagam anualmente pela sua metade 195 milhões de rublos em impostos fundiários, os nobres — 13 milhões! As terras dos nobres são, em média, duas vezes mais férteis do que as dos camponeses, porque, aquando da disputa na sequência do resgate da corveia, o Estado tirou aos camponeses não só a maioria da terra mas também a melhor, e atribuiu-a à nobreza e, a bem dizer, os camponeses tiveram de pagar à nobreza por esta terra pior o preço da melhor(2). E a nobreza russa não tem nenhum interesse na subsistência do Estado russo!
Os camponeses — na sua massa — ficaram, pelo resgate, numa situação altamente miserável, completamente insustentável. Não apenas se lhes tinha tirado a maior e a melhor parte da sua terra, de tal modo que, em todas as regiões férteis do Império, a terra dos camponeses é demasiado pequena — nas condições russas da agricultura — para que eles dela possam viver. Não só lhes foi estabelecido para ela um preço exagerado, que o Estado lhes adiantou e que eles têm agora de pagar ao Estado com juros e de amortizar gradualmente. Não só quase todo o peso do imposto fundiário foi descarregado sobre eles, enquanto a nobreza fica quase totalmente livre dele — de tal modo que só o imposto fundiário devorava todo o valor da renda fundiária da terra dos camponeses e mais, e que todos os ulteriores pagamentos que o camponês tem de fazer, e de que falaremos a seguir, são deduções directas da parte do seu rendimento que representa o salário. Não. Ao imposto fundiário, ao pagamento do juro e à taxa de amortização do adiantamento do Estado, acrescentam-se ainda os impostos provinciais e distritais[N285] da administração local recentemente introduzida. A consequência mais essencial desta «reforma» foi uma nova carga de impostos para os camponeses. O Estado reteve na totalidade as suas receitas, mas descarregou uma grande parte das despesas para as províncias e distritos que, para isso, impuseram novos impostos; e, na Rússia, é regra que os estados [Stände] superiores estejam quase livres de impostos e os camponeses paguem quase tudo.
É como se uma semelhante situação fosse criada para o usurário e, com o talento quase sem igual dos russos para o comércio em pequena escala, para a oportuna exploração da situação dos negócios e para a intrujice que dela é inseparável — já Pedro I sempre disse que um russo podia bem com três judeus —, o usurário em parte alguma está ausente. Quando se aproxima o tempo em que os impostos têm de ser pagos, vem o usurário, o kulaque — frequentemente um camponês rico da mesma comuna — e oferece o seu dinheiro sonante. Em quaisquer circunstâncias, o camponês tem de ter o dinheiro e tem de aceitar as condições do usurário sem resmungos. Com isto, ele só se mete ainda mais profundamente em embaraços, precisa cada vez mais de dinheiro sonante. No tempo das colheitas, vem o negociante de cereais; a precisão de dinheiro obriga o camponês a vender por qualquer preço uma parte do cereal de que ele e a sua família precisam para viver. O negociante de cereais espalha boatos falsos que baixam os preços, paga um preço mais baixo e, frequentemente, mesmo uma parte deste em toda a espécie de mercadorias avaliadas alto; pois o trucksystem(3) também está, altamente desenvolvido na Rússia. A grande exportação de cereais da Rússia repousa, como se vê, de um modo totalmente directo sobre a fome da população camponesa. — Uma outra espécie de exploração dos camponeses é esta: um especulador arrenda ao governo terras dominiais por muitos anos, amanha-as, ele próprio, enquanto elas dão um bom rendimento sem adubo; reparte-as, então, em parcelas e arrenda a terra esgotada por uma renda mais elevada aos camponeses vizinhos que com a sua parte de terra não têm o suficiente. Tal como atrás tínhamos o trucksystem inglês, temos agora aqui exactamente os middlemen(4) irlandeses. Em suma, não há país nenhum em que, apesar de todo o primitivismo selvagem da sociedade burguesa, o parasitismo capitalista esteja tão desenvolvido, cubra tanto e enrede tanto nas suas redes todo o país, toda a massa do povo, como, precisamente, na Rússia. E todos estes sugadores de camponeses não tinham qualquer interesse na subsistência do Estado russo, cujas leis e tribunais protegem as suas limpas e proveitosas práticas?
A grande burguesia de Petersburgo, Moscovo, Odessa que, nos últimos dez anos, nomeadamente, por causa dos caminhos-de-ferro, se desenvolveu de um modo enormemente rápido e que, nos últimos anos de fraude, comicamente «faliu» juntamente com eles; os exportadores de cereais, de cânhamo, de linho e de sebo, cujo negócio se construía todo sobre a miséria dos camponeses; toda a grande indústria russa que subsiste apenas através dos direitos proteccionistas que o Estado lhe concede — todos estes significativos elementos da população que crescem rapidamente não tinham qualquer interesse na existência do Estado russo? Para já não falar do inúmero exército de funcionários que inunda e pilha a Rússia e que lá forma realmente um estado [Stand]. E quando agora o senhor Tkatchov nos assegura que o Estado russo «não tem qualquer raiz na vida económica do povo, não incorpora em si os interesses de qualquer estado», que ele está suspenso «no ar», quer-me parecer que não é o Estado russo que está suspenso no ar mas antes o senhor Tkatchov.
É claro que a situação dos camponeses russos desde a emancipação da servidão se tornou uma situação insuportável e insustentável por muito tempo; que já por esta razão se aproxima uma revolução na Rússia. A questão é apenas qual pode ser, qual será, o resultado desta revolução? O senhor Tkatchov diz que ela será uma [revolução] social. Isto é pura tautologia. Toda a revolução real é uma [revolução] social, na medida em que leva ao poder uma nova classe e permite a esta modelar a sociedade à sua imagem. Mas ele quer dizer que ela será uma [revolução] socialista, que ela introduzirá na Rússia a forma de sociedade por que o socialismo oeste-europeu anseia, ainda antes de nós no Ocidente o conseguirmos — e isto em situações sociais em que tanto o proletariado como a burguesia aparecem apenas esporadicamente e num estádio de desenvolvimento baixo. E isto deve ser possível porque os russos são, por assim dizer, o povo eleito do socialismo e possuem o artel e a propriedade comunal da terra.
O artel — que o senhor Tkatchov só menciona de passagem, mas que nós incluímos aqui, porque já desde o tempo de Herzen desempenhou para muitos russos um papel misterioso —, o artel é uma espécie de associação muito espalhada na Rússia, a forma mais simples de cooperação livre, tal como aparece na caça entre os povos caçadores. Palavra e coisa não são eslavas, mas de origem tártara. Ambas se encontram entre os Kirguizes, os Iakutes, etc, por um lado, assim como entre os Lapões, os Samoiedos e outros povos finlandeses, por outro lado(5). Por isso, o artel desenvolve-se na Rússia, originariamente, no Norte e no Oeste, em contacto com finlandeses e tártaros, não no Sudoeste. O clima duro torna necessária a actividade industrial de diversas espécies, sendo, então, a falta de desenvolvimento urbano e de capital tanto quanto possível substituída por aquela forma de cooperação. — Uma das características mais assinaláveis do artel, a caução solidária dos membros uns pelos outros face a terceiros, repousa originariamente num laço sanguíneo de parentesco, como a garantia mútua [Gewere] dos antigos alemães, a vingança de sangue, etc. — Além disso, a palavra artel é usada na Rússia para toda a espécie, não só de actividade comunitária mas também de instituições comunitárias. A bolsa também é um artel(6). — Nos artéis de operários, é sempre escolhido um director (stárosta, mais velho), que se ocupa das funções de tesoureiro, guarda-livros, etc, quando necessário, de gerente, e que recebe uma paga particular. Semelhantes artéis têm lugar:
São estabelecidos por um contrato assinado por todos os membros. Se os membros não conseguem reunir o capital necessário, o que muito frequentemente acontece, por exemplo, com as queijarias e pescarias (para redes, barcos, etc), o artel cai nas mãos do usurário que lhe adianta o que falta a juros altos e que, daí em diante, embolsa a maior parte da receita do trabalho. Explorados de um modo ainda mais horrível são, porém, aqueles artéis que se alugam no conjunto a um empresário como pessoal assalariado. Eles dirigem eles próprios a sua actividade industrial e poupam, por isso, ao capitalista os custos da vigilância. Este aluga aos membros cabanas para habitação e adianta-lhes meios de vida, pelo que, então, se desenvolve de novo o mais horrível trucksystem. Acontece assim com os lenhadores e os resineiros no gouvernement(7) de Arkhánguelsk, com muitos ofícios na Sibéria, etc. (Cf. Fleróvski, Polozenie rabocago klassa v Rossiji, A Situação da Classe Operária na Rússia, Petersburgo, 1869.) Aqui, portanto, o artel serve para facilitar essencialmente ao capitalista a exploração dos operários assalariados. Por outro lado, porém, também há artéis que empregam eles próprios ainda operários assalariados que não são membros da associação.
Vê-se que o artel é uma sociedade cooperativa que nasceu naturalmente e que, portanto, ainda está muito pouco desenvolvida e que, como tal, não é de modo nenhum exclusivamente russa, nem mesmo eslava. Semelhantes sociedades formam-se onde quer que a necessidade disso subsista. [Acontece] assim na Suíça com as leitarias, em Inglaterra com os pescadores, onde são mesmo de espécie muito diversa. Os cabouqueiros silésios (os alemães, não os polacos), que nos anos quarenta construíram tantos caminhos-de-ferro alemães, estavam organizados em completos artéis. A predominância desta forma na Rússia prova, é certo, a existência de um forte impulso de associação no povo russo, mas não chega ainda a provar a capacidade dele para, com a ajuda desse impulso sem mais, saltar do artel para a ordem socialista da sociedade. Para isso, é preciso, antes de tudo, que o próprio artel se torne capaz de desenvolvimento, que se despoje da sua figura natural — em que, como vimos, serve menos os operários do que o capital — e que se eleve, pelo menos, ao nível das sociedades cooperativas oeste-europeias. Mas, se nos for alguma vez permitido dar crédito ao senhor Tkatchov (o que, sem dúvida, depois de tudo aquilo que se passou é mais do que arriscado), de modo algum é este o caso. Pelo contrário, ele assegura-nos com um orgulho altamente indicativo do seu ponto de vista:
«No que respeita às associações cooperativas e de crédito segundo o modelo alemão» (!) «artificialmente transplantadas para a Rússia desde há pouco tempo, foram estas recebidas com a mais completa indiferença pela maioria dos nossos operários e foram, quase por toda a parte, um fiasco.»
A sociedade cooperativa moderna provou, pelo menos, que pode empreender grande indústria por conta própria com proveito (fiação e tecelagem no Lancashire). O artel, até agora, não só é incapaz disso como perecerá mesmo ante a grande indústria se não se desenvolver mais.
A propriedade comunal dos camponeses russos foi descoberta por volta do ano de 1845 pelo conselheiro do governo prussiano Haxthausen e trombeteada ao mundo como algo de totalmente maravilhoso, apesar de Haxthausen ainda poder encontrar restos suficientes dela na sua terra natal da Vestefália e de, como funcionário do governo, estar mesmo obrigado a conhecê-la exactamente[N286]. Foi só de Haxthausen que Herzen, ele próprio proprietário fundiário russo, soube que os seus camponeses possuíam a terra em comum e aproveitou então a oportunidade para apresentar os camponeses russos como os verdadeiros portadores do socialismo, como comunistas natos, em oposição aos operários do Ocidente europeu envelhecido, apodrecido, que primeiro artificialmente teriam de se violentar pelo socialismo. De Herzen este conhecimento passou a Bakúnine e de Bakúnine ao senhor Tkatchov. Ouçamos este [último]:
«O nosso povo... está, na sua grande maioria... impregnado pelos princípios dos bens comuns; é, se assim se pode dizer, instintivamente, tradicionalmente, comunista. A ideia da propriedade colectiva está tão profundamente entrelaçada com toda a visão do mundo» (veremos já quão longe o mundo do camponês russo alcança) «do povo russo, que agora, quando o governo começa a compreender que , esta ideia não é compatível com os princípios de uma sociedade "bem-ordenada" e quer, em nome destes princípios, inculcar a ideia da propriedade individual na consciência do povo e na vida do povo, só pode alcançar isso com a ajuda da baioneta e do cnute. Resulta daqui que o nosso povo, mal-grado a sua ignorância, está muito mais perto do socialismo do que os povos da Europa ocidental, apesar de serem mais cultos.»
Na realidade, a propriedade comunal da terra é uma instituição que encontramos em todos os povos indo-germânicos num estádio de desenvolvimento baixo, da Índia até à Irlanda, e mesmo entre os malaios que se desenvolvem sob a influência indiana, por exemplo, em Java. Ainda em 1608, no Norte recém-conquistado da Irlanda, a propriedade comunal(8) da terra, legalmente subsistente, servia de pretexto aos ingleses para declarar a terra sem dono e, como tal, para a confiscar em benefício da Coroa. Na Índia, subsiste até hoje toda uma série de formas da propriedade comunal . Na Alemanha, ela estava generalizada; os terrenos comunais que aqui e além ainda se encontram são um resto dela e, frequentemente, também se encontram ainda vestígios claros — repartições temporárias da terra comunal, etc. —, nomeadamente, nas montanhas. A documentação e pormenores exactos ligados à propriedade comunal vetero-alemã podem consultar-se nos diversos escritos de Maurer que, para este ponto, são clássicos. Na Europa ocidental, incluindo a Polónia e a Pequena Rússia[N287], num certo estádio do desenvolvimento social, esta propriedade comunal tornou-se um entrave, um grilhão, para a produção rural e foi cada vez mais eliminada. Na Grande Rússia (isto é, na Rússia propriamente dita), pelo contrário, conservou-se até hoje e fornece, antes do mais, a prova de que a produção rural e as condições rurais da sociedade que lhe correspondem se encontram aí ainda num estádio muito pouco desenvolvido, o que também é realmente o caso. O camponês russo vive e trabalha apenas na sua comuna; todo o restante mundo só existe para ele na medida em que se imiscua nessa sua comuna. Tanto é este o caso que, em russo, a mesma palavra «mir» significa, por um lado, «o mundo», mas, por outro lado, «comuna de camponeses». «Ves' mir» — «o mundo inteiro» significa, para os camponeses, a reunião dos membros da comuna. Quando, portanto, o senhor Tkatchov fala da «visão do mundo» dos camponeses russos, manifestamente traduziu erradamente o russo «mir». Um tal isolamento completo das comunas individuais umas das outras que, em todo país, cria interesses semelhantes mas que são, precisamente, o contrário de interesses comuns, é a base natural para o despotismo oriental; e, desde a Índia até à Rússia, esta forma de sociedade, onde prevaleceu, produziu-o sempre e encontrou sempre nele o seu complemento. Não meramente o Estado russo, em geral, mas mesmo a sua forma específica, o despotismo dos tsares, em vez de estar suspenso no ar, é um produto necessário e lógico das condições russas, da sociedade com as quais, segundo o senhor Tkatchov, ele «não tem nada de comum»! — O ulterior desenvolvimento da Rússia numa orientação burguesa aniquilaria também aí a pouco e pouco a propriedade comunal, sem que o governo russo precisasse de intervir com «baioneta e cnute». E isto tanto mais quanto a terra comunal, na Rússia, não é cultivada em comum pelos camponeses e só o produto é repartido, como ainda é o caso em alguns lugares da Índia; pelo contrário, de tempos a tempos, a terra é repartida entre os chefes das famílias singulares e cada uma cultiva para si a sua parte. É, portanto, possível uma diversidade muito grande de prosperidade entre os membros da comuna e, na realidade, ela subsiste. Quase por toda a parte, há entre eles alguns camponeses ricos — aqui e ali milionários — que fazem de usurário e sugam a massa dos camponeses. Ninguém sabe isto melhor do que o senhor Tkatchov. Enquanto faz crer aos operários alemães que só com cnute e baioneta podia a «ideia da propriedade colectiva» ser extirpada dos camponeses russos, desses comunistas instintivos, tradicionais, conta ele na p. 15 da sua brochura russa:
«No meio do campesinato forma-se uma classe de usurários (kulakov), de compradores e arrendadores de terrenos camponeses e nobres — uma aristocracia mujique.»
São a mesma espécie de vampiros que atrás descrevemos mais de perto.
Aquilo que deu o golpe mais duro na propriedade comunal foi de novo o resgate da corveia. À nobreza foi distribuída a maior e a melhor parte do solo; para os camponeses mal ficou o suficiente — frequentemente, nem o suficiente — para viverem. Além disso, as florestas foram atribuídas à nobreza; a madeira para queimar, trabalhar e construir, que anteriormente o camponês aí podia apanhar de graça, tinha agora de a comprar. Assim, o camponês não tinha agora mais do que a sua casa e a terra nua, sem os meios para a cultivar e, em média, não tinha terra suficiente para o manter a si e à sua família de uma colheita a outra. Em semelhantes condições e sob a pressão de impostos e usurários, a propriedade comunal da terra já não é mais nenhum benefício, torna-se um entrave. Os camponeses fogem frequentemente dela, com ou sem família, para se sustentarem como operários ambulantes e deixam para trás a sua terra(9).
Vê-se que a propriedade comunal na Rússia já passou há muito o seu tempo de florescimento e, segundo todas as aparências, vai, pelo contrário, para a sua desintegração. Contudo, existe inegavelmente a possibilidade de elevar esta forma da sociedade a uma superior, no caso de ela se conservar até que as circunstâncias estejam maduras para isso e, no caso de ela se mostrar capaz de desenvolvimento, de modo que os camponeses não mais cultivem a terra separadamente, mas em conjunto(10), de a elevar a essa forma superior sem que os camponeses russos tenham de passar pelo estádio intermédio da propriedade burguesa de parcelas. Porém, isto só pode então acontecer se, na Europa ocidental, ainda antes do descalabro total da propriedade comunal, for executada vitoriosamente uma revolução proletária que forneça ao camponês russo as condições prévias para essa elevação — nomeadamente, também as materiais — de que ele precisa que mais não seja para o revolucionamento, necessariamente a ela ligado, em todo o seu sistema de agricultura. É, portanto, pura intrujice quando o senhor Tkatchov diz que os camponeses russos, apesar de «proprietários», estão «mais perto do socialismo» do que os operários desprovidos de propriedade da Europa ocidental. Totalmente ao contrário. Se alguma coisa ainda pode salvar a propriedade comunal russa e dar-lhe oportunidade de se transformar numa forma nova, realmente viável — é uma revolução proletária na Europa ocidental.
O senhor Tkatchov trata com a mesma ligeireza da revolução política como da económica. O povo russo, conta ele, «protesta incessantemente» contra a escravidão, agora sob a forma de «seitas religiosas... recusa de impostos... bandos de ladrões» (os operários alemães congratular-se-ão pelo facto de, depois disto, Schinderhannes ser o pai da social-democracia alemã) «... fogos postos... levantamentos... e, por isso, pode chamar-se ao povo russo um [povo] instintivamente revolucionário». E, com isto, Tkatchov está convencido «de que é apenas preciso acordar, em múltiplos lugares, ao mesmo tempo, o sentimento acumulado de exasperação e de descontentamento que... sempre ferve no peito do nosso povo». Então «a unificação das forças revolucionárias realizar-se-á já por si e a luta... terá de ser favorável à causa do povo. A necessidade prática, o instinto de autoconservação» conseguirá, então, totalmente por si, «uma aliança firme e indissolúvel entre as comunas que protestam».
Mais fácil e agradavelmente não se pode imaginar uma revolução. Ataca-se em três ou quatro lugares, ao mesmo tempo, e o «revolucionário instintivo», a «necessidade prática», o «instinto de autoconservação», fazem tudo o resto «já por si». Simplesmente não é compreensível por que é que, com esta facilidade toda, a revolução não está já há muito feita, o povo libertado e a Rússia transformada no país socialista modelo.
De facto, as coisas passam-se de um modo totalmente diferente. O povo russo, esse revolucionário instintivo, fez, sem dúvida, inúmeros levantamentos isolados de camponeses contra o nobre e contra o funcionário individual, mas nunca contra o tsar, a não ser quando um falso tsar se punha à cabeça dele e reclamava o trono. O último grande levantamento camponês, sob Catarina II, só foi possível porque Emelian Pugatchov se fez passar por esposo dela, Pedro III, que não teria sido assassinado pela mulher, mas destronado e encarcerado, e que agora porém tinha fugido. O tsar, pelo contrário, é para o camponês russo o deus terreno: Bog vysok, Car daljok, deus está alto e o tsar está longe, é o seu grito de aflição. Não há dúvida nenhuma de que a massa da população camponesa, nomeadamente desde o resgate das corveias, foi reduzida a uma situação que a força cada vez mais a uma luta também contra o governo e o tsar; mas o senhor Tkatchov pode ir vender o conto do «revolucionário instintivo» para outro sítio.
E, então, mesmo se as massas de camponeses russos fossem muito instintivamente revolucionárias, mesmo se nós imaginássemos que se podem fazer revoluções por encomenda, tal como se faz uma peça de tecido de algodão florido ou um samovar — mesmo então, pergunto eu, é permitido a um homem com mais de doze anos imaginar o curso de uma revolução de um modo tão superinfantil como acontece aqui? E lembremo-nos ainda de que isto foi escrito depois da primeira revolução confeccionada segundo este modelo bakuninista — a de 1873 em Espanha — que falhou tão brilhantemente. Também aí se iniciou o ataque ao mesmo tempo em múltiplos lugares. Também aí se contou com que a necessidade prática, o instinto de autoconservação, conseguiria já por si próprio uma aliança firme e indissolúvel entre as comunas que protestavam. E que aconteceu? Cada comuna, cada cidade, defendeu-se apenas a si própria, não se falou de qualquer apoio mútuo, e, com apenas 3000 homens, Pavia, em 14 dias, venceu uma cidade após outra e pôs fim a todo o esplendor anarquista (veja-se o meu [artigo] Bakuninistas em Acção(11), onde isto é descrito em pormenor).
Não há dúvida nenhuma de que a Rússia está nas vésperas de uma revolução. As finanças estão desorganizadas ao extremo. A rosca dos impostos não aperta mais, os juros das antigas dívidas do Estado são pagos com novos empréstimos e a cada novo empréstimo se deparam maiores dificuldades; já só se pode arranjar dinheiro a pretexto da construção de caminhos-de-ferro! A administração, de há muito, está corrompida de uma ponta à outra; os funcionários estão a viver mais do roubo, do suborno e da extorsão do que do ordenado. Toda a produção rural — que é, de longe, o mais essencial para a Rússia — foi completamente posta em desordem pelo resgate de 1861; a grande propriedade fundiária está sem força de trabalho suficiente, os camponeses estão sem terra suficiente, oprimidos pelos impostos, sugados pelos usurários; a produção agrícola [Ackerbauproduktion](12) está a diminuir de ano para ano. Tudo isto mantido junto, penosa e exteriormente, por um despotismo oriental, de cuja arbitrariedade nós, no Ocidente, não podemos fazer qualquer ideia; um despotismo que não só entra, de dia para dia, na mais gritante contradição com as concepções das classes ilustradas e, nomeadamente, com as da burguesia da capital que cresce rapidamente, como também — com o seu actual portador — não sabe mais o que pensar de si, fazendo hoje concessões ao liberalismo para amanhã, assustado, as retirar de novo, e, assim, perder cada vez mais todo o crédito. Com [tudo] isto, entre as camadas mais ilustradas da nação concentradas na capital, um conhecimento crescente de que esta situação é insustentável, de que um revolucionamento está iminente, e a ilusão de poder dirigir este revolucionamento para um leito constitucional tranquilo. Estão aqui reunidas todas as condições de uma revolução, de uma revolução que, iniciada pelas classes superiores da capital, talvez mesmo pelo próprio governo, tem de ser rapidamente levada mais longe e para além da sua primeira fase constitucional pelos camponeses; de uma revolução que já por isso será da maior importância para toda a Europa, porque aniquilará, de um golpe, a última reserva, até aqui intacta, da reacção de toda a Europa. Esta revolução está seguramente a caminho. Só dois acontecimentos a podem adiar por mais tempo: uma guerra afortunada contra a Turquia ou a Áustria, para o que são precisos dinheiro e alianças seguras, ou, então — uma tentativa prematura de levantamento, que lançaria de novo as classes possidentes para os braços do governo.
Publicado segundo o texto do jornal, confrontado com o do livro. Traduzido do alemão *.
Escrito por Engels em Abril de 1875. Publicado em Der Volksstaat, n.os 43, 44 e45, de 16, 18 e 21 de Abril de 1875 e como um folheto separado: F. Engels, Soziales aus Russland, Leipzig, 1875, bem como no livro: F. Engels, Internationales aus dem «Volksstaat» (1871-1875), Berlim, 1894. Assinado: F. Engels.
Tenho, em primeiro lugar, de rectificar que o senhor P. Tkatchov, para falar exactamente, não era um bakuninista, i. e., um anarquista, mas se fazia passar por um «blanquista». O erro era natural, uma vez que o citado senhor, segundo o costume russo dos refugiados de então, face ao Ocidente, se fazia solidário de toda a emigração russa e, de facto, na sua brochura[N284b], defendeu também Bakúnine e consortes contra os meus ataques, como se eles fossem válidos para ele próprio.
As perspectivas sobre a comuna de camponeses comunista russa, que ele contra mim defendeu, eram, no essencial, as de Herzen. Este beletrista pan-eslavista, inchado em revolucionário, tinha sabido pelos Studien über Russland de Haxthausen que os camponeses servos nas suas terras não conheciam qualquer propriedade privada do solo mas repartiam de novo, de tempos a tempos, entre si a terra de lavoura e as pradarias. Como beletrista, ele não precisava de saber aquilo que, em breve, se tornou geralmente conhecido: que a propriedade comunal da terra — uma [forma de propriedade] dominante entre Alemães, Celtas, índios, em suma, todos os povos indo-germânicos, num tempo primitivo, que ainda subsiste na Índia, que na Escócia e na Irlanda só recentemente foi suprimida pela força e que mesmo na Alemanha ainda ocorre aqui e além — é, precisamente, uma forma de posse moribunda que, de facto, é comum a todos os povos, num certo estádio do desenvolvimento. Mas, como pan-eslavista, ele — que, no máximo, era socialista pela frase — encontrou aqui um novo pretexto para, face a este Ocidente mesmo podre, colocar a uma luz ainda mais resplandecente a sua «santa» Rússia e a missão dela de rejuvenescer e fazer nascer de novo o Ocidente apodrecido, antiquado, se necessário pela força das armas. Aquilo que os decrépitos franceses e ingleses não puderam, com todo o esforço, realizar, têm os russos pronto em casa.
«Conservar a comuna de camponeses e dar a liberdade à pessoa, estender a auto-administração da aldeia e do vólost às cidades e a todo o Estado, conservando a unidade nacional — eis em que consiste a questão do futuro da Rússia, isto é, a questão da antinomia social, cuja solução ocupa e comove os espíritos do Ocidente.» (Herzen, Cartas a Linton.)
Portanto, para a Rússia, pode haver [ainda] uma questão política; [mas] a «questão social», para a Rússia, já está resolvida.
Tkatchov, seguidor de Herzen, torna as coisas tão fáceis como ele. Se bem que no ano de 1875 não pudesse mais pretender que a «questão social» estivesse resolvida na Rússia, segundo ele, todavia, os camponeses russos, como comunistas natos, estão infinitamente mais perto do socialismo e encontram-se, além disso, infinitamente melhor do que os pobres proletários oeste-europeus abandonados por deus. Se os republicanos franceses, por força da sua actividade revolucionária centenária, defenderam que o seu povo era o povo politicamente eleito, muitos dos socialistas russos de então declararam que, assim, a Rússia era o povo socialmente eleito; ao velho mundo económico não lhe devia vir o renascimento das lutas do proletariado oeste-europeu mas do interior mais interior do camponês russo. O meu ataque dirigia-se contra esta concepção infantil.
Mas a comuna russa também encontrou atenção e reconhecimento entre pessoas que estão infinitamente mais acima do que os Herzen e Tkatchov. Entre elas, [estava] também Nikolai Tchernichévski, esse grande pensador a quem a Rússia infinitamente tanto deve e cujo assassínio lento por um exílio de longos anos entre os Iakutes da Sibéria permanecerá uma nódoa eterna na memória de Alexandre II, o Libertador.
Tchernichévski, em consequência do encerramento da fronteira intelectual russa, nunca conheceu as obras de Marx e, quando O Capital apareceu, há muito que ele residia em Srédne-Viliúisk entre os Iakutes. Todo o seu desenvolvimento espiritual teve de ter lugar no meio circundante que foi criado por esse encerramento da fronteira intelectual. Aquilo que a censura russa não deixava entrar, para a Rússia, quase que não existia ou não existia mesmo. Se se encontram algumas fraquezas, algumas estreitezas de vistas, temos é de nos admirar de elas não serem mais.
Tchernichévski também via na comuna de camponeses russa um meio de passar da forma existente da sociedade para um novo estádio de desenvolvimento, superior, por um lado, ao da comuna russa e, por outro lado, ao da sociedade capitalista oeste-europeia com as suas oposições de classes. E, no facto, de a Rússia possuir esse meio, enquanto ele falta ao Ocidente, vê ele uma vantagem.
«A introdução de uma ordem de coisas melhor é extremamente dificultada na Europa ocidental pelo alargamento ilimitado dos direitos da personalidade individual... não é fácil renunciar mesmo que só a uma pequena parte daquilo de que já se está habituado a gozar, e na Europa ocidental, o indivíduo já está habituado à ilimitação dos direitos privados. Só uma amarga experiência e longa reflexão podem ensinar o proveito e a inevitabilidade de concessões recíprocas. No Ocidente, uma ordem melhor das relações económicas está ligada a sacrifícios e por isso o seu estabelecimento é muito dificultado. Vai contra os hábitos do homem do campo inglês e francês.» Mas «aquilo que representa uma utopia num país existe noutro como facto... aqueles hábitos, cuja introdução na vida nacional parecem ao inglês e ao francês incomensuravelmente difíceis, existem para o russo como um facto da sua vida nacional... A ordem das coisas para que o Ocidente tende agora, por um caminho tão longo e difícil, existe já entre nós nos poderosos costumes nacionais da nossa vida rural... Vemos que tristes consequências gerou no Ocidente a decadência da propriedade comum da terra e como é difícil para os povos ocidentais recuperar a sua perda. O exemplo do Ocidente não deve ser perdido para nós». (Tchernichévski, Obras, edição genebrina, vol. V, pp. 16-19; citado por Plekhánov, Nasi raznoglasija [As Nossas Divergências], Genebra, 1885.)
E, dos cossacos dos Urales, entre os quais ainda domina o cultivo comum do solo e a subsequente repartição do produto entre as famílias individuais, diz ele:
«Se os uralianos continuarem a existir com a sua organização actual até ao tempo em que as máquinas forem introduzidas na produção de cereais, os uralianos ficarão então muito contentes por terem conservado uma organização que lhes permite a utilização de tais máquinas, que exigem unidades económicas de enormes dimensões, de centenas de deciatinas» (ib., p. 131).
De passagem, é de não esquecer que os uralianos com o seu cultivo comum — protegidos da decadência por considerações militares (nós também temos o comunismo de caserna) — estão totalmente isolados, na Rússia, aproximadamente como as comunidades domésticas [Gehöferschaften] no Mosela, entre nós, com as suas redistribuições periódicas. E, se se mantiverem na sua organização actual até que estejam maduros para a introdução das máquinas, não são eles que têm vantagem nisso mas o fisco militar russo, de que são servos.
Em qualquer caso, o facto é este: pela mesma altura em que na Europa ocidental a sociedade capitalista desaba e ameaça arruinar-se pelas contradições necessárias do seu próprio desenvolvimento, pela mesma altura, na Rússia, aproximadamente metade de todo o solo cultivado encontra-se ainda em propriedade comum das comunas de camponeses. Se, no Ocidente, a solução das contradições por uma nova organização da sociedade tem por pressuposto a transferência de todos os meios de produção — portanto, também do solo — para a propriedade comum da sociedade, como é que se comporta para com esta propriedade comum do Ocidente, que ainda está para criar, a propriedade comum já [existente] ou, antes, ainda subsistente na Rússia? Não pode ela servir de ponto de partida para uma acção nacional que, mediante um salto por cima de todo o período capitalista, conduza o comunismo de camponeses russo de pronto para a propriedade comum socialista moderna de todos os meios de produção, enri-quecendo-a com todas as aquisições técnicas da era capitalista? Ou, para empregar as palavras em que Marx, numa carta a citar mais adiante(13), resume a concepção de Tchernichévski:
«deve a Rússia, em primeiro lugar, destruir as comunas de camponeses, como pedem os liberais, para então passar ao sistema capitalista ou pode ela, pelo contrário, apropriar-se de todos os frutos deste, sem passar pelos tormentos deste sistema, desenvolvendo os seus pressupostos próprios historicamente dados?»
A maneira de pôr a própria pergunta dá já a orientação em que é de procurar a sua solução. A comuna russa subsistiu centenas de anos sem que dela alguma vez tivesse saído um impulso para que a partir dela própria se desenvolvesse uma forma superior de propriedade comunal; tão-pouco isso aconteceu com a organização alemã da marca, o clã celta, as comunas Índias e outras com organizações comunistas primitivas. No decurso do tempo, sob a influência da produção mercantil e da troca entre famílias singulares e pessoas singulares, [produção e troca] que as circundavam, isto é, que surgiam no seu próprio meio e gradualmente as impregnavam, todas elas perderam cada vez mais o seu carácter comunista e dissolveram-se em comunas de proprietários fundiários autónomos uns dos outros. Portanto, se, em geral, pode ser posta a questão de se a comuna russa terá um outro destino e melhor, ela própria não é culpada disso, mas unicamente a circunstância de, num país europeu, ela se ter conservado numa relativa força vital até um tempo em que, não apenas a produção mercantil, em geral, mas, mesmo, a sua forma superior e última — a produção capitalista —, na Europa ocidental, entrou em contradição com as forças produtivas por ela própria criadas, [até um tempo] em que ela se mostra incapaz de dirigir estas forças e em que ela se arruina por estas contradições internas e pelos conflitos de classes que lhes correspondem. Daqui já se segue que a iniciativa de uma tal eventual reorganização da comuna russa só pode partir, não dela própria mas unicamente dos proletários industriais do Ocidente. A vitória do proletariado oeste-europeu sobre a burguesia, a substituição a ela ligada da produção capitalista pela [produção] socialmente dirigida, é esta a condição prévia necessária para a elevação da comuna russa ao mesmo estádio.
De facto: nunca e em parte alguma o comunismo agrário provindo da sociedade gentílica desenvolveu a partir de si próprio outra coisa que não a sua própria decomposição. A própria comuna de camponeses russa, em 1861, era já uma forma relativamente enfraquecida deste comunismo; o cultivo comum do solo, ainda subsistente em regiões isoladas da Índia e na comunidade familiar (zádruga) eslava do Sul, a verosímil mãe da comuna russa, teve de dar lugar à exploração por famílias individuais; a propriedade comum já só se fazia valer na redistribuição do solo, repetida, segundo as diversas localidades, em intervalos de tempo muito diversos. Estas redistribuições só precisam de se extinguir ou de ser abolidas por decreto e fica pronta a aldeia de camponeses de parcelas.
O mero facto, porém, de, ao lado da comuna de camponeses russa, ao mesmo tempo, na Europa ocidental, a produção capitalista se aproximar do ponto em que fracassa e em que ela própria remete já para uma nova forma de produção na qual os meios de produção, como propriedade social, serão aplicados planificadamente — este mero facto não pode conferir à comuna russa a força para desenvolver, a partir de si própria, esta nova forma de sociedade. Como poderia ela apropriar-se das gigantescas forças produtivas da sociedade capitalista, como propriedade social e instrumento [social], ainda antes de a própria sociedade capitalista ter completado essa revolução? como poderia a comuna russa mostrar ao mundo como é que se gere a grande indústria por conta comum, depois de já ter desaprendido de cultivar o seu solo por conta comum?
Sem dúvida que há na Rússia bastante gente que conhece exactamente a sociedade capitalista ocidental com todas as suas oposições e conflitos inconciliáveis e que também tem claro para si qual a saída que conduz para fora deste aparente beco. Mas, em primeiro lugar, o par de milhares de pessoas que compreendem isto não vivem nas comunas e os talvez cinquenta milhões que, na Grande Rússia, ainda vivem em propriedade comum do solo não têm de tudo isto a mais remota ideia. Perante as [ideias] daquele par de milhares, ficam, pelo menos, tão estranhos e sem entender como os proletários ingleses, em 1800-1840, ficaram perante os planos que Robert Owen inventou para salvação deles. E, entre os operários que Owen empregava na sua fábrica em New-Lanark, a maioria consistia igualmente em gente que tinha crescido nas organizações e hábitos de uma sociedade gentílica comunista em decomposição, no clã celto-escocês; mas ele nunca disse uma palavra acerca de ter encontrado, entre eles, um melhor entendimento. E, em segundo lugar, é impossibilidade histórica que um estádio de desenvolvimento económico inferior deva resolver os enigmas e conflitos que só surgiram e podiam surgir num estádio de longe superior. Todas as formas da comunidade gentílica surgidas antes da produção mercantil e da troca isolada têm em comum com a sociedade socialista futura isto: que certas coisas, os meios de produção, estão em propriedade comum e em utilização comum de certos grupos. Esta qualidade comum só não habilita, porém, a forma de sociedade inferior a criar a partir de si a sociedade socialista futura, esse produto mais próprio e último do capitalismo. Cada formação económica dada tem a resolver os seus próprios problemas, que surgem dela própria; querer resolver os de uma outra formação, inteiramente estranha, seria absoluto contra-senso. E isto não vale menos para a comuna russa do que para azádruga eslava do Sul, a [comuna] doméstica gentílica Índia ou qualquer outra forma de sociedade da selvajaria ou barbárie caracterizada pela posse «comum de meios de produção.
Em contrapartida, não é apenas possível mas certo, que, depois da vitória do proletariado e depois da passagem dos meios de produção para posse comum entre os povos oeste-europeus, aos países que mal entraram na produção capitalista e que ainda conservam organizações gentílicas ou restos delas é dado, com esses restos de posse comum e com os hábitos nacionais correspondentes, um poderoso meio para encurtarem significativamente o seu processo de desenvolvimento para a sociedade socialista e para pouparem a maior parte dos sofrimentos e lutas, pelos quais nós, na Europa ocidental, temos de abrir caminho. Mas, para isso o exemplo e o apoio activo do Ocidente até aqui capitalista são uma condição indispensável. Só quando a economia capitalista for vencida na sua pátria e nos países do seu florescimento, só quando os países atrasados virem por este exemplo «como é que se faz», como se põem as forças produtivas industriais modernas ao serviço da colectividade como propriedade social — só então é que eles podem atacar este processo de desenvolvimento encurtado. Então, porém, também com um sucesso seguro. E isto vale para todos os países do estádio pré-capitalista, não apenas para a Rússia. Na Rússia, porém, isto será feito relativamente de maneira mais fácil, porque lá uma parte da população nativa já se apropriou dos resultados intelectuais do desenvolvimento capitalista e, por isso, será possível, em tempo de revolução, completar lá a reorganização social quase simultaneamente com o Ocidente.
Isto foi já dito por Marx e por mim em 21 de Janeiro de 1882 no prefácio à tradução russa, da autoria de Plekhánov, do Manifesto Comunista. Diz-se aí: «Mas, na Rússia, encontramos, face à negociata capitalista que se desenvolve rapidamente e à propriedade fundiária burguesa que, precisamente, só [agora] se forma, mais de metade do solo em propriedade comum dos camponeses. Pergun-ta-se, então: pode a comuna russa, esta forma originária, de facto já fortemente incluída na decomposição, da propriedade em comum do solo passar imediatamente para uma forma comunista superior da propriedade fundiária — ou tem ela antes de passar pelo mesmo processo de dissolução que caracteriza o desenvolvimento histórico do Ocidente? — A única resposta hoje possível para esta pergunta é a seguinte: se a revolução russa der o sinal para uma revolução operária no Ocidente, de tal modo que ambas se completem uma à outra, então, a propriedade fundiária russa pode tornar-se ponto de partida de um desenvolvimento comunista.»(14)
Porém, não é de esquecer que a forte decomposição, aqui mencionada, da propriedade comum russa fez, desde então, progressos significativos. As derrotas na Guerra da Crimeia mostraram claramente a necessidade de um desenvolvimento industrial rápido para a Rússia. Antes de tudo, precisava-se de caminhos-de-ferro, e estes não são possíveis em larga escala sem [uma] grande indústria autóctone. A condição prévia desta era a chamada libertação dos camponeses; com ela, despontou para a Rússia a era capitalista; mas, com ela, também a era da rápida sapa da propriedade comum do solo. Os pagamentos de resgate impostos aos camponeses, juntamente com impostos mais elevados e com o encurtamento e pioria simultâneos do solo que lhes estava atribuído, atirou-os infalivelmente para as mãos dos usurários, na maioria dos casos, membros da comuna de camponeses que se haviam tornado ricos. Os caminhos-de-ferro abriram a muitas regiões até então afastadas um mercado de escoamento para os seus cereais, mas também trouxeram os produtos baratos da grande indústria e, com eles, expulsaram a indústria caseira dos camponeses que, até então, tinha confeccionado artigos semelhantes, em parte para consumo próprio, em parte para venda. As velhas e habituais condições de ganhar a vida [Erwerbsverhältnisse] ficaram em desordem, a desorganização que, por toda a parte, acompanha a passagem da economia natural à economia monetária fez a sua entrada, desenharam-se na comuna grandes diferenças de fortuna entre os membros — os pobres tornaram-se escravos dos ricos por dívidas. Em suma, o mesmo processo que, no tempo de antes de Sólon, decompôs a geris ateniense por meio da penetração da economia monetária(15), começou aqui a decompor a comuna russa. E certo que Sólon, por uma intervenção revolucionária no então ainda bastante jovem direito da propriedade privada, pôde libertar os escravos por dívidas, anulando simplesmente as dívidas. Porém, nunca pôde chamar de novo à vida a velha gens ateniense e, do mesmo modo, também nenhum poder no mundo estará em condições de restabelecer a comuna russa assim que a sua decomposição tiver alcançado um determinado ponto culminante. E, além disso, o governo russo proibiu que se repetisse a repartição do solo entre os membros da comuna com uma frequência maior do que todos os 12 anos, para que o camponês se desabitue cada vez mais disso e comece a ver-se como proprietário privado da sua parte.
Marx falou também neste sentido, já no ano de 1877, numa carta para a Rússia(16). Um senhor Júkovski — o mesmo que agora como caixa do banco do Estado abençoa com a sua assinatura os bilhetes de crédito russos — tinha escrito no Mensageiro da Europa (Vèstnik Jevropy) alguma coisa acerca de Marx, a que um outro escritor(17) tinha respondido nos Anais da Pátria (Otecestvennija Zapiski)[N290]. Para correcção deste artigo, Marx escreveu uma carta ao chefe de redacção dos Anais, a qual, depois de ter circulado durante muito tempo na Rússia em cópias do original francês, foi publicada no Mensageiro da Vontade do Povo (Vèstnik Narodnoj Voli) em 1886, em Genebra, e, mais tarde, também na própria Rússia, em tradução russa[N291]. A carta encontrou nos círculos russos, como tudo aquilo que saía de Marx, grande consideração e interpretações de espécie diversa; e, por isso, eu dou aqui o seu conteúdo essencial.
Em primeiro lugar, Marx rejeita a opinião que lhe é atribuída nos Anais de que ele seria da opinião dos liberais russos de que a Rússia não teria nada de mais urgente a fazer do que dissolver a propriedade comum dos camponeses para se precipitar no capitalismo. A sua curta observação sobre Herzen no apêndice à primeira edição do Capital não prova nada. Essa observação diz: «Se a influência da produção capitalista, que mina a raça humana..., no continente da Europa, se desenvolve, como até agora, de braço dado com a concorrência em grande da soldadesca nacional, das dívidas do Estado, dos impostos, da condução elegante da guerra, etc, pode finalmente tornar-se inevitável o rejuvenescimento da Europa pelo cnute e pela infusão obrigatória de sangue kalmuque tão seriamente profetizado pelo semi-russo e totalmente moscovita Herzen (este beletrista, diga-se de passagem, não fez a sua descoberta sobre o "comunismo russo" na Rússia mas na obra do conselheiro do governo prussiano Haxthausen).» (Kapital, I, primeira edição, p. 763.)[N292] Marx prossegue, então: Esta passagem «em caso algum pode fornecer a chave para a minha visão acerca dos esforços» (o que se segue está citado, no original, em língua russa) «"de homens russos para encontrarem uma via de desenvolvimento para a sua pátria, diversa daquela por onde a Europa ocidental foi e ainda vai", etc. — No Posfácio à segunda edição alemã do Capital falo de um "grande sábio e crítico russo"(18)» (Tchernichévski) «com o alto respeito que ele merece. Em artigos dignos de nota, ele tratou a questão de se a Rússia, tal como os economistas liberais, desejam, tem de começar pela destruição da comuna de camponeses e, depois, passar ao regime capitalista, ou se, pelo contrário, sem passar pelos tormentos deste sistema, ela se pode apropriar de todos os frutos dele, desenvolvendo os seus pressupostos próprios historicamente dados. Ele pronuncia-se neste último sentido.
«Em suma, como eu não gosto de deixar "alguma coisa para adivinhar", quero falar sem reservas. Para poder ajuizar do desenvolvimento económico da Rússia com pleno conhecimento de causa, aprendi russo e, depois, durante longos anos, estudei as publicações oficiais e outras respeitantes a isso. O resultado a que, por esse facto, cheguei é este: Se a Rússia continuar a seguir o caminho que, desde 1861, tomou, perderá a mais bela oportunidade que a história alguma vez ofereceu a um povo, para sofrer todas as peripécias fatais do regime capitalista.»(19)
Mais adiante, Marx esclarece alguns ulteriores mal-entendidos do seu crítico; a única passagem respeitante à nossa presente questão diz:
«Ora, que aplicação à Rússia poderia, então, o meu crítico fazer deste esboço histórico?» (A exposição da acumulação original no Capital.) «Somente esta: Se a Rússia tende a tornar-se uma nação capitalista, à semelhança das nações da Europa ocidental — e, durante os últimos anos, esforçou-se muito nesse sentido —, não o conseguirá sem ter previamente transformado uma boa parte dos seus camponeses em proletários; e, depois disso, uma vez trazida ao seio do regime capitalista, sofrerá as leis impiedosas dele, tal como outros povos profanos. É tudo.»(20) (retornar à nota 13)
Assim escrevia Marx em 1877. Nessa altura, havia na Rússia dois governos: o do tsar e o do comité executivo (ispolnitel'nyj komitet) secreto dos conspiradores terroristas[N293]. O poder deste governo paralelo secreto crescia de dia para dia. O derrube do tsarismo parecia iminente; uma revolução na Rússia teria de privar toda a reacção europeia dos seus apoios mais fortes, do seu grande exército de reserva, e, por isso, teria de dar também ao movimento político do Ocidente um novo ímpeto poderoso e, além disso, condições de operação infinitamente mais favoráveis. Não admira que Marx aconselhasse aí os russos a terem menos pressa no salto para o capitalismo.
A revolução russa não se deu. O tsarismo venceu o terrorismo, que lhe atirou mesmo todas as classes possidentes, «amantes da ordem», de momento, de novo para os braços. E, durante os 17 anos que passaram desde aquela carta, tanto o capitalismo como a dissolução da comuna de camponeses na Rússia fizeram enormes progressos. Como está, então, hoje a questão, em 1894?
Como depois das derrotas da Guerra da Crimeia e do suicídio do imperador Nicolau, o velho despotismo tsarista continuou inalterado, só havia um caminho aberto: a passagem o mais possível rápida para a indústria capitalista. O exército tinha perecido ante as dimensões gigantescas do Império, nas longas marchas para o teatro de guerra; as distâncias tinham de ser anuladas por uma rede estratégica de caminhos-de-ferro. Mas, caminhos-de-ferro significavam indústria capitalista e revolucionamento [Revolutionierung] da agricultura primitiva. Por um lado, o produto agrícola, mesmo o das paragens mais afastadas, entrava em ligação directa com o mercado mundial; por outro lado, não se pode construir e manter em funcionamento um extenso sistema de caminhos-de-ferro sem uma indústria autóctone que forneça carris, locomotivas, vagões, etc. Mas, não se pode introduzir um ramo da grande indústria, sem se trazer também no saco todo o sistema; a indústria têxtil, de implantação relativamente moderna, que já antes tinha lançado raízes na região de Moscovo e Vladimir, assim como nas costas do Báltico, recebeu um novo impulso. Aos caminhos-de-ferro e fábricas atrelaram-se as sucursais de bancos já existentes e a fundação de novos bancos; a libertação dos camponeses da servidão estabeleceu a liberdade de residência, na expectativa da libertação, que em breve se seguiria por si, de uma grande parte desses camponeses também da posse de solo. Com isto, estabeleceram-se, num tempo curto, todas as bases do modo de produção capitalista na Rússia. Mas, também se ergueu o machado sobre a raiz da comuna de camponeses russa.
Lamentar isto é agora inútil. Se, depois da Guerra da Crimeia, se tivesse substituído o despotismo do tsar por uma dominação parlamentar directa da nobreza e dos burocratas, talvez que o processo se tivesse retardado alguma coisa; [mas] se tivesse chegado ao leme a burguesia nascente, seguramente que ele ainda seria acelerado.
Como as coisas estavam, não havia outra escolha. Com o Segundo Império em França, com o surto resplandecente da indústria capitalista em Inglaterra, não se podia, contudo, verdadeiramente esperar da Rússia que ela devesse precipitar-se de cabeça em experiências socialistas de Estado na base da comuna de camponeses. Algo tinha que acontecer. O que nas circunstâncias era possível aconteceu, como por toda a parte e sempre [acontece] em países de produção mercantil, na maioria dos casos, só com uma semiconsciência do que se faz, ou de um modo totalmente mecânico ou sem se saber.
Veio, então, o novo tempo das revoluções a partir de cima, que começou na Alemanha, e, com ele, o tempo do crescimento rápido do socialismo em todos os países europeus. A Rússia tomou parte neste movimento geral. Aí, ele recebeu — como se compreende por si — a forma do assalto para o derrube do despotismo tsarista, para a conquista para a nação da liberdade intelectual e política de movimento. A fé na força milagrosa da comuna de camponeses, da qual podia e teria de vir o renascimento social — uma fé de que, como vimos, Tchernichévski não estava totalmente inocente —, esta fé fez o que tinha a fazer para aumentar o entusiasmo e a energia dos heróicos lutadores de vanguarda russos. Com as pessoas, em número que mal chega a um par de centenas, que, pelo seu sacrifício e pelo seu heroísmo, levaram o tsarismo absoluto a que ele tivesse mesmo de tomar em consideração a possibilidade e as condições de uma capitulação — com estas pessoas, não discutimos se elas consideravam o povo russo como o povo eleito da revolução social. Mas, por esse facto, não precisamos de partilhar a ilusão delas. O tempo dos povos eleitos passou para sempre. Durante esta luta, porém, o capitalismo na Rússia ia em bom andamento e alcançava cada vez mais aquilo que o terrorismo não conseguira: levar o tsarismo à capitulação.
O tsarismo precisava de dinheiro. Não só para o seu luxo de corte, a sua burocracia, sobretudo, para o seu exército e para a sua política externa assente no suborno, mas também, nomeadamente, para as suas finanças miseráveis e para a absurda política de caminhos-de-ferro que lhe correspondia. O estrangeiro não queria e não podia cobrir durante mais tempo todos os défices do tsar; o interior tinha de ajudar. Uma parte das acções dos caminhos-de-ferro tinha de ser colocada no próprio país, assim como uma parte dos empréstimos. A primeira vitória da burguesia russa consistiu nas concessões de caminhos-de-ferro, que carregavam os accionistas com todos os ganhos futuros e o Estado com todas as perdas futuras. Vieram depois as subvenções e prémios para empreendimentos industriais, os direitos proteccionistas a favor da indústria autóctone que, no fim, tornavam francamente impossível a introdução de muitos artigos. O Estado russo, pelo seu endividamento sem limites e pelo seu crédito quase totalmente arruinado no estrangeiro, tem um interesse fiscal directo num desenvolvimento em estufa da indústria autóctone. Ele precisa continuamente de ouro para pagamento dos juros das dívidas ao estrangeiro. Mas, na Rússia não há ouro nenhum, lá só circula papel. Uma parte é fornecida pelo pagamento prescritivo dos direitos em ouro, que, de passagem, também eleva esses direitos em cerca de 50%. Mas, a maior parte deve ser fornecida pelo excedente da exportação de matérias-primas russas sobre a importação de produtos industriais estrangeiros; o governo compra no interior com papel as letras de câmbio emitidas no estrangeiro sobre esse excedente e com isso obtém ouro. Se, portanto, o governo quer proceder ao pagamento dos juros ao estrangeiro de outra maneira que não por novos empréstimos estrangeiros, tem de se preocupar com que a indústria russa cresça rapidamente tanto que satisfaça toda a procura interna. Daí a exigência de que a Rússia se tenha de tornar um país industrial independente do estrangeiro, que se baste a si próprio; daí os esforços convulsivos do governo para levar o desenvolvimento capitalista da Rússia, em poucos anos, ao seu ponto mais alto. Pois, se isto não acontecer, não resta senão agarrar no fundo de guerra metálico empilhado no Banco do Estado e no Tesouro do Estado, ou, então, a bancarrota do Estado. E, em ambos os casos, isso acabaria com a política externa russa.
Uma coisa é clara: em tais circunstâncias, a jovem burguesia russa tem o Estado completamente à sua mercê. Em todas as questões económicas importantes ele tem de lhe fazer a vontade. Se, entretanto, ela ainda consente na autocracia despótica do tsar e dos seus funcionários, é só porque esta autocracia, além disso moderada pela venalidade da burocracia, lhe dá mais garantias do que [quaisquer] alterações, mesmo de sentido burguês-liberal, cujas consequências, na situação interna da Rússia, ninguém pode prever. E, assim, continua num ritmo sempre mais rápido a transformação do país num país capitalista-industrial, a proletarização de uma grande parte dos camponeses e o declínio da velha comuna comunista.
Se desta comuna ainda se salvou tanto que, quando for o caso, como Marx e eu em 1882 ainda esperávamos, em combinação com uma reviravolta da Europa ocidental, ela se possa tornar ponto de partida de um desenvolvimento comunista, não me atrevo a responder. Isto, porém, é seguro: se um resto dessa comuna ainda dever ser conservado, a primeira condição para isso é o derrube do despotismo tsarista, a revolução na Rússia. Esta, não apenas arrancará a grande massa da nação, os camponeses, do isolamento das suas aldeias, que formam o seu «mir», o seu mundo, e os lançará para a grande cena, onde travarão conhecimento com o mundo exterior e, com ele, consigo próprios, com a sua própria situação e com os meios de salvação da miséria presente, mas dará também ao movimento operário do Ocidente um novo ímpeto e novas, melhores, condições de luta e, assim, acelerará a vitória do proletariado industrial moderno, sem a qual a Rússia de hoje, nem a partir da comuna nem a partir do capitalismo, pode chegar a uma reorganização socialista.
Notas de rodapé:
(1) Medida agrária russa equivalente a 1,0925 ha. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(2) Uma excepção só teve lugar na Polónia, onde o governo queria arruinar a nobreza que era inimiga dele, mas ganhar os camponeses. (Nota de Engels.) [Esta nota figura no texto publicado no Volksstaat, mas não nas edições de 1875 e de 1894.] (retornar ao texto)
(3) Em inglês no texto: sistema de pagamento em mercadorias. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(4) Em inglês no texto: intermediários, grandes rendeiros que arrendavam posteriormente a outros pequenas parcelas. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(5) Sobre o artel, veja-se entre outros: Sbornik materialov ob Arteljach v Rossiji (Colectânea de Materiais sobre os Artéis na Rússia), St. Petersburg, 1873, fascículo 1. (Nota de Engels.) (retornar ao texto)
(6) Esta frase não figura na edição de 1894. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(7) Em francês no texto: circunscrição. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(8) No original: Gemeinde-Eigentum, propriedade comunal. Na edição de 1894: Gemeineigentum, propriedade comum. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(9) Sobre a situação dos camponeses, vejam-se, entre outros, o relatório oficial da comissão governamental sobre a produção rural (1873), além disso: Skáldine, W Zacholusti i w Stolice (Numa Aldeia Perdida e na Capital), Petersburgo, 1870; este último escrito é de um conservador liberal. (Nota de Engels). (retornar ao texto)
(10) Na Polónia, particularmente, no gouvernement de Grodno, onde a nobreza ficou em grande parte arruinada pela insurreição de 1863[N288], os camponeses compram ou arrendam agora, frequentemente, propriedades nobres e cultivam-nas indivisas e por conta comum. E estes camponeses já não têm desde há séculos nenhuma propriedade comunal e não são nenhuns grão-russos[N289] mas polacos, lituanos e russos brancos. (Nota de Engels.) (retornar ao texto)
(11) Cf. K. Marx/F. Engels, Werke, Dietz Verlag, Berlin 1973, Bd. 18, S. 476-493. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(12) Na edição de 1894: Ackerbauertrag, rendimento agrícola. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(13) Ver no presente texto a citação da carta. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(14) Cf. a presente edição, t, I, pp 97-98 (retornar ao texto)
(15) Ver Engels, Der Ursprung der Familie, etc. [A Origem da Família, etc.], 5ª ed., Stuttgart, 1892, pp. 109 a 113. (Nota de Engels) (retornar ao texto)
(16) Ver K. Marx, Carta à Redacção dos «Otétchestvennie Zapiski. (retornar ao texto)
(17) N. K. Mikhailóvski. (retornar ao texto)
(18) Ver o presente tomo, p. 98. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(19) Sublinhado por Engels. (Ver K. Marx/F. Engels, Werke, Dietz Verlag, Berlin 1974, Bd. 19, S. 108. —Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(20) Ver K. Marx/F. Engels, Werke, Dietz Verlag, Berlin 1974, Bd. 19, S. 111. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(21) Escrito na primeira metade de Janeiro de 1894. Publicado no livro: F. Engels, Internationales aus dem «Volksstaat» (1871-1875), Berlim, 1894. Publicado segundo o texto do livro. Traduzido do alemão. Quanto às citações de proveniência russa, porém, tivemos em conta as que figuram na edição russa das Obras Escolhidas em três tomos de K. Marx e F. Engels, publicadas pela Editora de Literatura Política, Moscovo, 1979 (nota de edição portuguesa). (retornar ao texto)
Notas de fim de tomo:
[N283] A obra de Engels Do Social na Rússia é o artigo V da série «Literatura de
Refugiados». No artigo Engels assinala os factores decisivos que determinaram o crescimento da situação revolucionária na Rússia: aparecimento na cena política da classe
operária russa e crescimento inevitável do movimento camponês de massas como resposta ao roubo do campesinato depois da abolição da servidão. No artigo Do Social na
Rússia, e também no posfácio a ele, escrito em 1894, Engels critica as orientações
fundamentais do populismo russo do começo dos anos 70 na pessoa de ideólogos seus
como P. Lavrov e P. Tkatchov, e particularmente o populismo liberal dos anos 80-90.
A análise geral das relações sociais na Rússia depois de 1861 conduz Engels à conclusão
de que o capitalismo se estava a desenvolver cada vez mais neste país e de que, devido a
isso, a propriedade comunal no campo se estava a desintegrar. Submete a uma dura
crítica a idealização da comunidade camponesa pelos populistas e aponta os ritmos cada
vez mais rápidos de transformação da Rússia num país capitalista industrial, a proletarização do campesinato e o «declínio da velha comuna comunista». Ele assinala com satisfação o aparecimento no movimento revolucionário russo
de pessoas que tinham cortado com as concepções populistas e assimilado a teoria do
comunismo científico. (retornar ao texto)
[N284] Aqui e adiante Engels cita a brochura de Tkatchov Offener Briefan Herm Friedrich Engels (Carta Aberta ao Sr. Friedrich Engels), publicada em Zurique em 1874. (retornar ao texto)
[N284b] Aqui e adiante Engels cita a brochura de Tkatchov Offener Briefan Herm Friedrich Engels (Carta Aberta ao Sr. Friedrich Engels), publicada em Zurique em 1874. (retornar ao texto)
[N285] Impostos provinciais e distritais: isto é, correspondentes às gubérnias e uezdi, unidades administrativas territoriais da Rússia. (retornar ao texto)
[N286] Engels refere-se ao livro de Haxthausen Studien über die innern Zustände, das Volksleben und insbesondere die ländlichen Einrichtungen Russlands (Estudos sobre a Situação Interna, a Vida do Povo e em Particular as Instituições Agrárias da Rússia), publicado em três partes em 1847-1852 em Hannover e Berlim. (retornar ao texto)
[N287] Pequena Rússia: designação da Ucrânia utilizada nos documentos oficiais da Rússia tsarista. (retornar ao texto)
[N288] Trata-se da insurreição nacional-libertadora de 1863-1864 nas terras polacas pertencentes à Rússia tsarista. Os insurrectos proclamaram em Janeiro de 1863 um programa de luta pela independência nacional da Polónia, e também uma série de reivindicações de carácter agrário democrático. Contudo, devido à inconsequência e indecisão do governo insurrecto, que não ousou tocar nos privilégios dos grandes proprietários agrários, a grande massa do campesinato não aderiu à insurreição, o que foi uma das causas da sua derrota. (retornar ao texto)
[N289] Grão-russos: o mesmo que russos. (retornar ao texto)
[N290] Trata-se do artigo de I. G. Júkovski «Karl Marx e o seu livro sobre o capital» na revista Véstnik Evropi, livro 9 de 1877, e da respostaaele de N. Mikhailóvski na revista Otétchestvennie Zapíski, n.° 10 de 1877, sob o título «Karl Marx julgado por I. G. Júkovski». (retornar ao texto)
[N291] Véstnik Naródnoi Vóli (Mensageiro da Vontade do Povo): revista publicada entre 1883 e 1886 em Genebra por membros exilados da organização russa Naródnaia Vólia (A Vontade do Povo). Saíram ao todo 5 números. Na imprensa russa legal a carta de Marx foi publicada em Outubro de 1888 na revista luridítcheski Véstnik (Mensageiro Jurídico). (retornar ao texto)
[N292] Este apêndice foi omitido por Marx na segunda edição alemã e nas edições seguintes do primeiro volume de O Capital. (retornar ao texto)
[N293] Aparentemente tem-se em vista os órgãos dirigentes das organizações Zemliá e Vólia (Terra e Liberdade), do Outono de 1876 ao Outono de 1879, e Naródnaia Vólia (A Vontade do Povo), de Agosto de 1879 a Março de 1881; esta última proclamou o terror como meio fundamental de luta política. (retornar ao texto)
Inclusão | 26/10/2010 |
Última alteração | 03/11/2011 |