Intervenção a 8 de Dezembro de 1984

Francisco Martins Rodrigues

8 de Dezembro de 1984


Primeira Edição: ....

Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando A. S. Araújo

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O nosso encontro não é um jantar de despedida de arrependidos da esquerda. Não viemos aqui fazer um saldo das nossas convicções revolucionarias. Não temos nada a ver com os grupos que anteriormente abandonaram o PC(R) e que hoje se pavoneiam no Expresso e no Clube da Esquerda Liberal, à procura de tachos. Estamos no campo oposto a essa gente. Por isso mesmo, não estamos interessados em ir lavar roupa suja para a imprensa burguesa. Encaramos a nossa saída do PC(R) como um passo em frente na nossa vida de militantes comunistas, para responder melhor às exigências que coloca a revolução em Portugal.

Põe-se desde logo a questão: no PC(R) podíamos desenvolver pelo menos uma actividade mínima organizada, partidária, política, sindical. Agora vai sem dúvida ser mais difícil. Porque então sair? Valeu a pena? Valeu e era obrigatório, porque para nós, comunistas, o decisivo não é meramente ir fazendo coisas no dia-a-dia, mas aplicar uma linha política efectivamente marxista-leninista. E a linha política do PC(R) não serve para aproximar mas para afastar a revolução. Esta a conclusão a que chegamos, sem lugar para dúvidas.

Não por o PC(R) ser esquerdista demais, como por aí se diz, mas por ser centrista. Esta palavra “centrismo” entrou em circulação desde há dois anos e causa ainda confusões. Porque é centrista o PC(R) se defende contra o revisionismo a luta radical de massas, a independência política do proletariado, a aliança operário-camponesa, a revolução, a ditadura do proletariado, a luta contra as duas superpotências, o internacionalismo proletário?

O PC(R) é centrista porque, debaixo dessas proclamações gerais que nunca se esquece de fazer, aplica uma linha política de facto intermédia, que foi donde saiu a política do Governo antifascista e patriótico, a via do 25 de Abril do povo, a estratégia duma revolução democrático-popular como etapa obrigatória anterior à revolução socialista, a constante ocultação do partido atrás da UDP, a substituição da política de hegemonia do proletariado pela concepção da “unidade da classe operária”.

Na realidade, o PC(R) foi tomado desde a fundação por uma corrente de pensamento centrista que procura temperar as posições revolucionárias de princípio com uma certa dose de posições reformistas. Daí que o PC(R) esteja desde a nascença entalado entre o revisionismo e o marxismo-leninismo, em busca de uma política que não seja nem reformista nem “demasiado” revolucionária. Esta tentativa para criar uma ideologia que seja uma mescla de duas ideologias opostas é justamente o centrismo que conduz o PC(R) à desagregaçao. Um partido que tenta fundar-se sobre uma transição entre duas ideologias, disse Lenine, esta condenado à desagregação. É o caso do PC(R).

O grande mérito e o aspecto novo do 4º congresso foi ter aberto fogo pela primeira vez contra o centrismo, desmascarando-o como corrente política oportunista infiltrada no partido, de alto a baixo.

Ao exigir que a linha política fosse posta de acordo com os princípios, o 4º congresso encostou o centrismo dominante no PC(R) à parede. Daí que nos últimos dois anos se assistisse a um ataque desenfreado do centro contra a esquerda, aliando-se para isso à ala direita do partido. A luta que nos levou a sair do PC(R) teve uma qualidade nova em relação às anteriores: ela obrigou e obrigará cada vez mais o centrismo a perder a máscara de esquerda com que se cobria anteriormente e a deslocar-se para a direita. Isto ajudará a clarificar uma luta política que se tem mantido turva. O marxismo só terá a ganhar com essa clarificação, o oportunismo só tem a perder.

A situação difícil em que se encontra o centrismo do PC(R) patenteou-se nos últimos dois anos pela resistência a aplicar as decisões do 4º congresso, pela paralisia política e a burocratização, pela preponderância crescente de elementos de direita, pelo clima doentio e bafiento de seita que multiplica os atropelos ao centralismo democrático, pelo horror à investigação e à crítica marxista.

Não admira, nestas condições, que no último Activo Nacional de células de empresa tenham estado representadas apenas 20 células, várias delas de serviços, todas extremamente enfraquecidas. Hoje não haverá mais duns 50 operários organizados em células do PC(R). O PC(R) perdeu o crédito junto da vanguarda operária e não pode pretender representá-la.

Como se explica que o PC(R), formado na luta contra o revisionismo, chegue ao fim de 9 anos a esta situação? A causa tem que ser procurada na linha centrista nele estabelecida pela combinação do maoísmo e do dimitrovismo, no que teve um papel de primeiro plano o dirigente do PC do Brasil Diógenes Arruda. No momento em que os dirigentes do PC(R) voltam a exaltar no Bandeira Vermelha as lições de Arruda, pondo assim em xeque toda a crítica do 4º congresso ao centrismo, importa dizer que recusamos “aprender com Arruda”. A linha que nos transmitiu e em que moldou todo o corpo dirigente do PC(R) levou a que se perdessem 10 anos na marcha da revolução em Portugal.

 Naturalmente, com isto não vamos furtar-nos às nossas responsabilidades próprias na adopção do centrismo. Alinhámos nessa ideologia de fusão dos interesses do proletariado com a pequena burguesia. Eu próprio alinhei e tive um papel activo em apoio de Arruda, até me aperceber do caminho a que conduzia o partido, em 1979. É justo dizer que estão aqui camaradas que souberam ver desde início o oportunismo do 25 de Abril do povo e que recusaram no 3º congresso a “autocrítica” que lhes era exigida. Essas resistências de esquerda, inicialmente dispersas, acabaram por se soldar no 4º congresso numa corrente ML, embora bastante minoritária, dado o enfraquecimento político a que já chegara o partido. É essa nova corrente ML que nós aqui representamos hoje neste Encontro. As vacilações e os erros de cada um de nós não nos devem fazer esquecer a importância decisiva da corrente de ideias que representamos e as suas obrigações: levar até ao fim o corte com o revisionismo e para isso romper sem contemplações com o centrismo, que amarra os braços aos revolucionários e os afoga.

Este corte, não podemos duvidar, terá que ser também internacional. Porque a corrente ML internacional, iniciada há 25 anos, fracassou, devido precisamente ao mesmo centrismo maoísta-dimitrovista em que foi alimentada pelo PC da China e posteriormente pelo PTA. Hoje reduz-se a um conjunto de grupos e pequenos partidos, sem unidade ideológica, sem linha política, sem influência operária.

O PC do Brasil, um dos mais influentes no conjunto, e com real actividade política de massas, tem vindo a adoptar uma táctica que só podemos classificar de oportunista.

A responsabilidade fundamental por este estado de coisas, atribuímo-la ao PTA, justamente por ser um partido de larga experiência, que conduziu uma grande revolução, aquele que foi mais longe do que qualquer outro na luta contra o revisionismo e pela ditadura do proletariado. A classe operária albanesa fez grandes conquistas no caminho do socialismo, mas não podemos fechar os olhos aos sinais alarmantes que vêm chegando da Albânia desde que a maoísmo abriu falência e a China descarrilou no capitalismo de Estado, há dez anos.

Quando tudo isto acontece, só burocratas empedernidos, gente sem princípios, como Frederico Garvalho ou Carlos Marques, podem ficar tranquilamente como se nada acontecesse e proibir toda a discussão. Querer convencer-nos de que o caso Mehmet Shehu está explicado, como faz Eduardo Pires, é troçar das convicções mais sérias dos comunistas. Não abdicamos de nos interrogarmos e de procurar esclarecer a real situação da Albânia, ainda que isso nos valha a estúpida acusação de “agentes do imperialismo”.

Respeitamos a Albânia enquanto se opuser às duas superpotências; é uma atitude de grande coragem. Mas já não podemos considerá-la o “farol do socialismo no mundo”.

Respeitamos o PTA enquanto continuar a opor-se ao revisionismo, mas já náo podemos considerá-lo o guia da corrente ML internacional.

Se, por causa desta atitude, ficarmos sozinhos, tanto pior. O principal é não traficar com os princípios. Foi isso que o PTA nos ensinou há 20 anos ao levantar-se sozinho contra o revisionismo soviético. De resto, poderemos estar certos de que não ficaremos sozinhos. Cedo ou tarde, as mesmas conclusões que nos levam a dar este passo em frente manifestar-se-ão noutros partidos ML, a braços com a crise política e ideológica em que foram lançados pelo centrismo. A nova corrente ML acabará por se definir à escala internacional. Tudo devemos fazer para que isso aconteça.

Que lição principal poderemos tirar destes 25 anos de luta pela reconstrução do PC em Portugal e do MCI? A resposta talvez esteja naquela velha frase de Lenine: “sem teoria revolucionária não pode haver movimento revolucionário”. Repetíamos essa frase uns aos outros, mas sem vigilância, porque pensávamos que estávamos de posse da teoria, do marxismo-leninismo. Ora, isso não era verdade. O ML não é nenhum pastelão que se faz duma vez por todas e fica pronto a quem quer servir-se. Tem que ser feito continuamente, responder continuamente às novas questões, superar-se, criticar-se a si próprio. Só assim realizara o milagre de ser uma doutrina “sempre jovem e cientifica”.

Ora, o marxismo parou há 50 anos, deixou de dar novas respostas revolucionárias para os novos problemas desde que foi apropriado pela pequena burguesia. De arma da classe operária contra a burguesia, o marxismo passou a arma da burguesia contra a classe operária. Se queremos de facto arrancar o movimento operário à dominação do revisionismo, é preciso contrapor-lhe não apenas um partido com algumas palavras de ordem, mas armado com ideias marxistas-leninistas. Essas ideias faltaram nos últimos 25 anos, por muito que se citassem os clássicos. Vejamos alguns exemplos:

Não tenhamos ilusões. Enquanto não respondermos a estes proble­mas como marxistas, poderemos correr dos plenários às manifestações que não iremos a lado nenhum. Foi por faltarem estas e outras respostas que todo o esforço dos últimos 25 anos acabaram na crise actual,

Acreditamos no marxismo vivo, critico, revolucionário, não no marxismo empalhado. Por isso nos chamam “anarcotrotzkistas”, mas não é isso que nos vai meter medo. Sem dar vida ao marxismo jamais poderemos ter um verdadeiro partido político do proletariado. E é esse o objectivo que acima de todos nos preocupa.

Poderá objectar-se que é perigoso metermo-nos pelas investigações e discussões teóricas, que a teoria tem que andar ligada à prática para não degenerar, etc. Mas com esse tipo de argumentos sempre se tem feito travão à nossa formação ideológica. Sabemos que a teoria é para ligar à prática, simplesmente prática já temos alguma, teoria é que nos falta por completo. Sempre se tem inventado razões para manter a actividade no praticismo espontâneo. Não queremos repetir esse erro. O praticismo é sem dúvida a forma de oportunismo mais enraizada no nosso movimento operário. Pode até dizer-se que o praticismo é a variante portuguesa do oportunismo, de tal maneira tem servido para acorrentar os operários à primeira política que lhes vendem os políticos oportunistas disfarçados de “marxistas”.

O que produziram 64 anos de comunismo em Portugal? subordinação constante do proletariado ao democratismo burguês. Porquê? Por falta de um plano estratégico para a revolução, baseado no marxismo. Foi assim que na crise revolucionária pudemos ver a classe operária agarrada as saias da democracia pequeno-burguesa quando tinha a revolução ao alcance da mão. É uma vergonha que nao devemos esquecer, para que não se repita. Dentro de alguns anos virá inevitavelmente nova crise profunda no regime. Como se ira comportar a classe operária perante as novas armadilhas que lhe serão estendidas pela pequena burguesia? A resposta a esta questão decisiva depende em grande medida da firmeza de princípios que agora saibamos demonstrar para fazer reviver o marxismo e levá-lo à vanguarda operária.

O desafio que nos está posto é pois, julgo, o de sabermos organizar-nos num agrupamento comunista que tenha como pólo e motor uma revista de crítica marxista, dirigida para a classe operária. Essa deverá ser a nossa actividade central. Certamente desenvolveremos tarefas políticas, sindicais, organizativas diárias, mas seria perigoso pensar que em pouco tempo poderemos estar a influir seriamente no movimento, dar palavras de ordem, avançar para o Partido, se não concetrarmos o grosso dos nossos esforços, de todos nós, na edição, discussão e difusão da nossa revista. Uma revista que lance os alicerces do programa, da estratégia, da táctica, dos estatutos do futuro partido comunista em Portugal. Uma revista mensal, acessível, sem falsa teoria abstracta, mas onde se analise as origens do revisionismo e o seu carácter de classe, onde se comente do ponto de vista comunista, isto é, proletário, a situação política nacional e internacional, onde se discuta a situação do movimento operário. Uma revista que faça emergir pouco a pouco o caminho da revolução em Portugal através duma polémica séria e implacável contra o revisionismo e o oportunismo em geral. Uma revista viva, polémica, com ideias novas, que entre nas fábricas e seja entendida pelos operários avançados. Uma revista que sirva de suporte à “unificação ideológica de todos nós, a caminho do Partido Comunista novo que queremos.

É impossível falar-se hoje num projecto de organização comunista sem responder à questão: o que se pensa do centralismo democrá­tico? Direi algumas palavras sobre isto.

No PC(R) aprendemos todos nós o valor do trabalho colectivo, da disciplina, do centro único dirigente. É uma questão vital, traço distintivo dos comunistas, que faz a sua grande força. Entre nos comunistas não há personalidades acima do “comum” nem “barões” com os seus séquitos de seguidores. Devemos ter isto bem presente nesta fase de transição, porque o liberalismo e o individualismo anarquizante podem espalhar-se com rapidez se forem descurados.

Mas no PC(R) aprendemos muito pouco sobre o outro lado do centralismo democrático, tão vital como o primeiro – a democracia interna. Aprendemos a desconfiar e a recear a democracia interna e fomos deseducados a esse respeito. As aberrações quase paranóicas a que temos vindo a assistir nesta fase final são o culminar de desvios que acompanham o PC(R) desde a nascença e que se foram progressivamente agravando, à medida que o centrismo precisa de criar instrumentos de defesa para se perpetuar. O centrismo no PC(R) sempre foi anti­democrático, contrário também nisto ao leninismo.

Portanto, se queremos fazer alguma coisa de novo temos que ter a audácia de revolucionar toda a nossa prática em materia de democracia interna, para não reproduzirmos daqui amanhã o um aborto semelhante ao que é hoje o PC(R). Mas essa viragem para a democracia não nos fará cair no anarquismo? Penso que ja temos experiencia suficiente para encontrar as soluções praticas, inspiradas no leninismo, no velho Partido Bolchevique, que façam a fusão do centralismo com a democracia.

Algumas sugestões:

Pode perguntar-se; não haverá o perigo de nos desagregarmos por falta de normas rígidas de disciplina, por democracia a mais? É preciso ter clara a lição de 9 anos do PC(R): a unidade organizativa assenta acima de tudo, não nas imposições disciplinares, mas na unidade politica e ideológica. É com ela que nos devemos preocupar. Por ela faltar no PC(R) e que todas as normas e compartimentações eram impotentes para impedir as sucessivas fracções e cisões. Forjar a unidade política e ideológica dia a dia, na discussão e na acção – é esta a chave para nos mantermos coesos. Naturalmente, também teremos infracções disciplinares que deverão ser enfrentadas com sanções. Caberá aos nossos estatutos definir o que é e o que não é colectivamente permitido. Mas não nos deixemos nunca mais cair na armadilha de julgar que o Partido Comunista pode viver sem democracia, de julgar que isso fosse sinal de “disciplina proletária”. Vamos exper[imen]tar algo de novo, ainda desconhecido no nosso país, algo que não tem nada a ver nem com o caciquismo das seitas (de que o PCR é o triste exemplo) nem com o social-democratismo “pluralista”: vamos ensaiar entre nós a democracia revolucionária, o verdadeiro centralismo democrático;

Camaradas: deixo-vos uma proposta. Comecemos desde agora a preparar, todos, a Assembleia de comunistas, que no mais breve prazo, possa constituir um novo agrupamento e editar a nova revista.


Inclusão 10/06/2018