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Primeira Edição: Política Operária nº 23, Jan-Fev 1990
Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Os movimentos populares que abalam as cidades do Leste europeu têm um carácter revolucionário, ou representam a rendição ao capitalismo e ao imperialismo, de milhões de trabalhadores desmoralizados pela miserável caricatura de socialismo que lhes fizeram sofrer? No momento em que a queda dos regimes abortivos da Europa Oriental dá novo curso às mistificações democrático-burguesas, parece-nos oportuno reproduzir um extracto do livro de Francisco Rodrigues Anti-Dimitrov, publicado em 1985 (capítulo 7: O centrismo no poder). É um elemento para o debate que é preciso travar.
No que se refere à formação dos regimes de democracia popular, cabe à corrente comunista mostrar a falência a que estava condenado à partida o projecto de uma revolução intermédia inventado pelo 7.° Congresso da Internacional Comunista, precisamente porque tal revolução não existe; mostrar como a substituição da ditadura do proletariado por uma pretensa “democracia popular” só podia produzir, em vez da sonhada via gradual e harmoniosa para o socialismo, regimes despóticos de capitalismo de Estado; provar que a dominação da União Soviética na Europa oriental se exerce, não através de “cliques fantoches”, mas ao nível da luta de classes interna de cada um desses países.
Na maioria dos países da Europa Oriental, devastados pela ocupação terrorista dos nazis e por uma guerra feroz, os choques de classe que acompanharam a mudança de regime tiveram em geral uma envergadura limitada. À excepção da Albânia e da Jugoslávia, a luta armada de libertação não chegou a tomar nível insurreccional. Os partidos comunistas, extremamente enfraquecidos pelos massacres nazis, puderam ganhar posição hegemónica apenas graças à presença dos exércitos soviéticos.
Como se compreende, a crise da burguesia, comprometida com o ocupante nazi, e o apoio militar e político da União Soviética criavam condições muito favoráveis para o triunfo da revolução mas não podiam substituí-la. Cabia aos partidos aproveitar essas condições invulgarmente favoráveis para se refazer rapidamente das perdas sofridas e desencadear autênticos movimentos revolucionários, sob direcção do proletariado, que varressem até aos alicerces o poder da burguesia e dos latifundiários.
Ora, os PC, penetrados pela linha do 7.° Congresso, viram no apoio soviético a oportunidade ideal para levarem à prática a via mais fácil da revolução intermédia mediante uma série de compromissos com a burguesia e a pequena burguesia. Era essa, de resto, a perspectiva do PC(b) da URSS, interessado em evitar abalos que dessem pretexto a uma intervenção das potências ocidentais. A linha de Dimitrov para o governo de frente única e o partido operário único teve finalmente ocasião de ser testada na prática.
Inicialmente, quando estava na ordem do dia a destruição das estruturas capitalistas-feudais, as grandes nacionalizações, a expropriação dos latifundiários, a confiscação das fortunas, a repressão sobre os colaboracionistas, etc., a política de democracia popular ganhou uma aparência de vitalidade. Os partidos comunistas conseguiram, através de uma real influência de massas, dinamizar os primeiros passos do processo revolucionário e roubar a iniciativa aos partidos liberais e reformistas. A economia devastada foi reconstruída a ritmos acelerados, instituíram-se profundas reformas democráticas, elevou-se o nível de vida dos operários e camponeses. Ao Ocidente afluiu em pânico a escumalha reaccionária, amaldiçoando os “horrores da revolução”.
Facto novo, porém, era a estrutura original desses regimes, apoiados em parlamentos, em governos de coligação e em Frentes Nacionais. Os comunistas detinham o controlo da situação mas não ameaçavam a existência da pequena e média burguesia. Não havia conflitos sociais agudos. Parecia ter-se criado um equilíbrio social novo na História, a “democracia popular”.
Dimitrov podia dar largas em 1946 a todas as suas ilusões oportunistas:
“O caminho da insurreição armada não é inevitável nem indispensável; em determinadas condições específicas pode-se chegar ao socialismo sem necessidade de insurreição armada. Essas condições estão actualmente criadas: por um lado, devido à existência de um grande Estado socialista que possui uma enorme influência política e moral — a União Soviética — e por outro lado, devido às transformações democráticas realizadas em vários países e que abrem caminho para o socialismo”. (J. Dimitrov, Obras Escolhidas, Estampa, Lisboa, tomo 4, p. 170).
Esta materialização do projecto dimitrovista de uma terceira via entre a ditadura da burguesia e a ditadura do proletariado foi bem expressa na época pelo teórico húngaro E. Varga:
“A democracia popular não é a ditadura da burguesia mas também não é a ditadura do proletariado. O velho aparelho de Estado não foi quebrado, como acontecera na União Soviética, mas renova-se pela absorção constante de partidários do novo regime. Não são Estados capitalistas no sentido vulgar do termo mas também não são Estados socialistas”. (Démocratie Nouvelle, revista do PCF, n.° 9, Set. 1947, p. 463).
Não é de estranhar a onda de entusiasmo que esta nova solução despertava nos dirigentes oportunistas dos partidos comunistas ocidentais. Viam nela um trunfo precioso para tranquilizar as suas próprias burguesias e alargar o espaço do seu reformismo. Thorez, mais uma vez precursor, ao prever, numa entrevista ao Times, em Novembro de 1946, a passagem pacífica ao socialismo, escrevia, encantado, pela mesma altura:
“Não houve uma transição brusca e brutal para um outro sistema. Há aqui um fenómeno que devemos estudar, em que devemos reflectir: o poder da classe operária, o poder exercido em nome da classe operária e do povo por um partido comunista que não está só mas que pode associar-se com outros partidos… Este poder exerce-se mantendo as formas parlamentares”. (Thorez, Oeuvres. Editions Sociales, Paris, tomo 23, pp. 131132).
Não tardou muito, contudo, que as democracias populares chegassem a uma encruzilhada. A resistência crescente da burguesia, estimulada pelas potências ocidentais, não permitia que se iludisse por mais tempo o dilema — quem vencerá a quem? A pressão americana para fazer aderir os regimes de Leste ao Plano Marshall serviu de detonador da crise.
Aparentemente, dir-se-ia que todos, à excepção da Jugoslávia, enfrentaram o desafio aprofundando a revolução. Ampliaram-se as nacionalizações e a colectivização agrária, lançou-se a planificação e a indústria pesada, estreitaram-se os laços com a União Soviética, desencadeou-se uma grande campanha contra a social-democracia, a ideologia burguesa e as influências ocidentais. Mas este “passo em frente” pôs ainda mais em evidência a fraqueza fatal dos regimes de democracia popular. O avanço, que só podia ser obtido pela acção e iniciativa das grandes massas proletárias e se mi proletárias, pelo ascenso impetuoso dos órgãos de poder operário e camponês que envolvessem toda a sociedade numa intensa luta de classes revolucionária, foi imposto de cima pelos aparelhos do partido e do Estado. O receio ao desencadeamento da energia revolucionária das massas, que se instalara nos partidos comunistas desde o 7.° Congresso, levou-os a tentar fazer a revolução em ordem e segurança.
Incapazes, pelo seu centrismo, de aprofundar o processo revolucionário, os PC fizeram uma miserável caricatura de revolução. Em vez de destruir o aparelho de Estado, usou-se o domínio do exército e da polícia para o tomar por dentro, “purificando-o” com gente fiel. Em vez de ganhar as massas exploradas para as ideias do comunismo, usou-se a pressão e os baixos expedientes para forçar os partidos pequeno-burgueses a fundirem-se com os PC em “partidos operários unificados”. O proletariado e o campesinato trabalhador foram declarados donos do poder sem nunca chegarem a dispor de autênticos órgãos de poder. Conselhos, milícias, sindicatos, cooperativas, não eram mais do que engrenagens obedientes do aparelho.
Na ausência de reais batalhas de classe em que a burguesia fosse batida e desalojada pela acção revolucionária das massas, as democracias populares revelaram a breve trecho toda a fragilidade do novo poder, resultante do seu carácter híbrido. Cresceu o cancro da burocracia e da polícia política, como única trincheira de um poder cercado. Transformou-se em farsa as eleições, as Assembleias Nacionais, a liberdade de imprensa e de reunião. Em breve começaram a multiplicar-se os processos judiciais arbitrários, manipulados na sombra dos aparelhos, e por isso, atingindo, juntamente com inimigos de classe e espiões, todos aqueles que criticavam a desfiguração do regime.
A tentativa de conduzir a luta contra a direita sem desencadear as forças de esquerda levou o centrismo a uma degeneração mais acelerada ainda do que a da União Soviética. A agonia que aí se arrastara ao longo de decénios — porque houvera uma grande revolução que dera lugar a uma verdadeira ditadura do proletariado sob a forma do poder soviético — precipitou-se na Europa de Leste apenas em seis anos.
Quando a conjuntura social mudou, após a morte de Staline, revelou-se à luz do dia a podridão burguesa que minara silenciosamente os aparelhos do partido e do Estado, à sombra dos julgamentos, dos slogans sobre a “luta contra o oportunismo”, do dogmatismo asfixiante. Na luta contra a direita forjara-se uma nova direita. Os fuzilamentos e as prisões dos direitistas imprudentes, tipo Slansky, Rajk, Rostov, Gomulka, Nagy, tinham servido apenas para abrir espaço a uma nova vaga de direitistas manhosos, que juravam por Staline e pelo marxismo-leninismo, enquanto esperavam a sua hora.
Quanto às massas operárias e camponesas, reduzidas à menoridade e apatia política por um regime ditatorial, estavam incapacitadas para fazer sentir o seu peso na luta de classes. A partir de 1953, deixaram-se manipular pelos arautos da“liberalização”, na Alemanha de Leste, na Polónia, na Hungria, mais tarde na Checoslováquia. O centrismo fizera a cama ao revisionismo. A “democracia popular” fora o prelúdio do capitalismo de Estado.
Inclusão | 13/09/2018 |