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Primeira Edição: Política Operária nº 58, Jan-Fev 1997
Fonte: Francisco Martins Rodrigues — Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Passado quase meio século, muito pouco se sabe acerca da execução sumária do dirigente do PCP Manuel Domingues, acusado de estar ao serviço da PIDE. Talvez o clima da “guerra fria” dê pistas para a solução do mistério.
Em 5 de Maio de 1951, a imprensa noticiava o aparecimento num pinhal de Belas, nos arredores de Lisboa, do cadáver dum homem, assassinado a tiro. Após alguns dias de especulações em torno do “misterioso crime de Belas”, fez-se silêncio total sobre o assunto; percebeu-se depois porquê — a PIDE identificara o cadáver e tomara o assunto em mãos.
O morto era, como veio a saber-se, Manuel Domingues, dirigente do PCP. E o silêncio do partido dava a entender que a responsabilidade do crime não cabia desta vez à polícia política. Foi preciso passar um ano para que, numa reunião do Comité Central(1), o membro do Secretariado “Gomes”(2), num informe sobre “Vigilância revolucionária”, se referisse à “expulsão” de Manuel Domingues, classificando-o como “espião e provocador” e atribuindo-lhe a principal responsabilidade pela onda de prisões que quase desmantelara o partido nos anos anteriores. Sobre a execução em si, nem uma palavra — nunca foi norma do PCP reivindicar actos dessa natureza —, mas ninguém teve dúvida de que Domingues fora abatido a tiro por ordem da direcção do partido.
Finalmente, meses depois, num folheto editado pelo Secretariado do PCP, intitulado Lutemos contra os espiões e provocadores(3), foi desenvolvida a “acta de acusação” contra Domingues. Ele teria estado ao serviço da polícia fascista, infiltrado no aparelho clandestino desde, pelo menos, 1937, ano em que regressou clandestinamente de Espanha e, “inexplicavelmente”, foram presos todos os outros militantes entrados em seguida, e que ele conhecia. Chamado à direcção do partido, teria entregue uma tipografia à polícia. Durante a guerra, em França, teria sido libertado pelos nazis dum campo de internamento para continuar a sua missão tenebrosa; muito provavelmente, teria passado ao serviço dos americanos. Como isto era ignorado devido às descontinuidades na actividade da direcção causadas pelas prisões, Domingues pudera guindar-se no pós-guerra a altas responsabilidades no comité central. O cume e fim da sua carreira chegara em 1949, com a denúncia à PIDE de todo o Secretariado do CC e tipografia do Avante, proeza que acabara por o desmascarar.
Dum cinismo e de uma frieza fora do comum, oferecia-se para desempenhar as tarefas perigosas a fim de saber sempre mais e trair mais camaradas. Por vezes, relatava ter encontrado casualmente na rua pides e outros inimigos do partido, os quais contudo não o prendiam nem o denunciavam… Parecia mesmo ter prazer em semear indícios incriminatórios contra si próprio e perguntava com ar ingénuo se não pareceria estranho todos serem presos à sua volta e só ele escapar… Enfim, um autêntico superespião, sem termo de comparação com os outros casos de provocação e traição que o folheto historiava.
Este rol de acusações é contudo de uma fragilidade espantosa. Nem uma só prova firme é citada. Tudo se baseia no facto de serem por ele conhecidas as instalações que a PIDE ia assaltando; mas se outros as conheciam, porque não considerá-los igualmente suspeitos? E porque não admitir que os desastres se devessem ao trabalho de vigilância da PIDE, a erros conspirativos, etc.? Em 1961, por exemplo, os membros do Secretariado do CC viriam a ser presos numa operação policial simultânea em locais diversos e, que se saiba, nunca esse desastre foi atribuído a uma denúncia de alto nível.
Passemos em revista o fundamento das acusações: Domingues era provocador porque em 1938 colaborara no Secretariado com Vasco de Carvalho, Cansado Gonçalves e Armando de Magalhães, “elementos policiais e provocadores, escorraçados do partido” — os quais, contudo, nessa época eram dirigentes do partido, de pleno direito (aliás, mais tarde foi-lhes retirada a classificação de provocadores). Também nesse ano, tratara com um enfermeiro do Aljube da fuga de Pável, mas durante a viagem dos três para França, “o enfermeiro afirmou que um dos dois (Domingues ou Pável) estava ao serviço da polícia”. E uma simples afirmação dum empregado da PIDE bastava para incriminar dois militantes? De outra vez, assegurou a um membro do Secretariado não ser suspeita uma mulher vista nas imediações de uma tipografia clandestina, mulher que “nesse mesmo dia à tarde tomou novamente o mesmo meio de transporte que ele”. Concludente, de facto! Ainda de outra vez, quando do assalto a uma tipografia, contou ter escapado à justa à prisão por ter sido avisado por uns vizinhos. Só podia ser artimanha de provocador! Domingues “sabia que um camarada do Secretariado ia a determinado local para realizar uma tarefa muito importante. Pois quando esse camarada tomou um meio de transporte nesse local, ouviu que falavam no seu nome, o que era muito de estranhar. Mais tarde veio a saber-se que uma das pessoas presentes nesse meio de transporte era da PIDE”. Mas então porque é que esse elemento da PIDE não tentou prender o dito camarada?
E assim por aí fora. Domingues comentara, a propósito de um indivíduo que roubara o partido: “O que ele precisava era de um tiro na cabeça” — mas quantos militantes não diriam o mesmo em circunstâncias semelhantes? Tomara a defesa dum elemento estrangeiro sobre quem recaíam fortes suspeitas de provocação, “porque receava que se descobrissem as suas ligações internacionais com elementos provocadores” — mas ao defendê-lo não estava precisamente a chamar as suspeitas sobre si próprio? Ao ver acumularem-se as suspeitas à sua volta, teria contactado militantes para tentar arranjar um emprego — mas não era este um comportamento inverosímil da parte dum espião profissional com uma dúzia de anos de carreira? Mostrava-se nervoso e abatido ao ver-se alvo das suspeitas dos seus camaradas? Era “porque temia ser desmascarado a todo o momento.” Isto sem contar que Domingues era “vaidoso e mentiroso” e em jovem fazia “vida de café, prostituição e noitadas”…
A impressão que se colhe da leitura deste libelo que se pretende esmagador é que a quantidade de acusações serviu para tentar colmatar a sua falta de credibilidade. Se a direcção do PCP tivesse realmente provas da traição de Domingues não teria amontoado “provas” tão pouco convincentes, que mais parecem uma colecção de indícios e suposições, recolhidos já depois da sua execução, junto de militantes alarmados, predispostos a confirmar a tese já estabelecida pelo Secretariado.
De resto, é inevitável a pergunta feita na altura por alguns que o tinham conhecido de perto: como é que um militante que semeava à sua volta um tal rasto de prisões, um elemento cuja “baixa moral” dera origem a ser por duas vezes criticado no Militante(4), pudera subir a tão grandes responsabilidades e manter-se nelas? Não estaria o Secretariado a arranjar um bode expiatório para falhas conspirativas, se calhar a verdadeira origem da série de prisões?
Não se podendo descartar a hipótese de Domingues ter sido preso em qualquer altura e se ter posto ao serviço da PIDE, o quadro que ressalta da atropelada lista de acusações do Secretariado é muito mais o de um militante cansado, desmoralizado pelos seus próprios erros, pelo descalabro do partido e pelas suspeitas que sente existirem a seu respeito, que quer sair da clandestinidade, voltar à vida legal, obter um emprego, escapar à PIDE e aos seus camaradas.
Manuel Domingues pode ter estado ao serviço da PIDE; mas o PCP não apresentou até hoje qualquer prova convincente nesse sentido.
Facto surpreendente, a partir de 1954 as publicações do PCP tornam-se silenciosas a respeito dum caso que, a ser confirmado, teria o valor dum alerta permanente aos militantes comunistas, a todos os antifascistas. Numa busca a informes a reuniões de direcção, artigos e folhetos dedicados ao tema de defesa conspirativa(5) não encontrei mais nenhuma referência ao “espião” Manuel Domingues. Como se tal nunca tivesse acontecido. Tem que se convir que é estranho.
Mais. Álvaro Cunhal mostrou-se, pelo menos em duas ocasiões, extremamente reservado quanto ao assunto. Em 1958, no forte de Peniche, declarou a Joaquim Carreira(6), que o inquiria acerca da morte de Domingues, que, por na altura já estar preso, o assunto não lhe passara pelas mãos e nada podia adiantar. Que Cunhal nada tivesse a ver com o processo é óbvio, uma vez que na época se encontrava sob rigoroso isolamento na Penitenciária de Lisboa; já parece menos crível que não tivesse recebido posteriormente no forte de Peniche nenhuma informação sobre um caso de tal gravidade. A resposta dada a Carreira parece indicar alguma reserva em adoptar a tese oficial do Secretariado de que Domingues fosse um espião. De resto, essa reserva foi por ele claramente manifestada, ainda no forte de Peniche, no ano seguinte, num círculo restrito de militantes, em conversa a que eu próprio assisti: custava-lhe a crer que Manuel Domingues tivesse sido um provocador. Assim, sem mais. Conhecido o rigor de regra no partido, que exigia a cada militante o acordo expresso com as decisões da direcção, este desabafo de Cunhal perante camaradas menos responsáveis é significativo. Somos levados a pensar que, não tendo vivido o clima de pânico e suspeição de 1950-52 por se encontrar na prisão, Cunhal encarava com cepticismo as conclusões do Secretariado: talvez o conhecimento que tinha de Domingues não quadrasse com a imagem que dele era dada, dum espião consumado.
Já depois do 25 de Abril, apesar do acesso que sobretudo o PCP conseguiu aos arquivos da PIDE, o enigma continuou por esclarecer. Informes de congressos, artigos de história do partido e da repressão ignoram pura e simplesmente o caso Manuel Domingues. Única excepção, que eu saiba, uma brevíssima referência num texto de José Magro: “Apareceu morto um aventureiro e ex-funcionário do Partido”…(7). E também esta menção aparentemente casual serve o objectivo de apagar o caso Domingues: chamando-lhe simplesmente “aventureiro” dá-se a conhecer aos membros do partido, não oficialmente e só nas entrelinhas, que Domingues, afinal, não era espião mas que também não merece reabilitação porque não era boa rês…
Tudo parece pois indicar que a direcção do PCP já não sabe o que fazer com as acusações de 1952 mas também não quer evocar as circunstâncias que a teriam levado a matar um militante por engano.
Manuel Domingues, o camarada Luís, antigo operário da Marinha Grande, tivera papel activo no levantamento de 18 de Janeiro de 1934, ao lado de Manuel Esteves de Carvalho, José Gregório e outros. Pelo relevo ganho naquela jornada e pelo seu espírito lutador, foi enviado para a União Soviética com Gregório, tendo ambos frequentado um curso de marxismo-leninismo em Moscovo, destinado a prepará-los ideologicamente para futuros cargos dirigentes (significativamente, o folheto de 1952, acerca deste período da sua vida, diz apenas que “fugiu para o estrangeiro”). Depois de ter desempenhado tarefas não especificadas em Espanha durante a guerra civil, veio para Portugal, onde fez parte durante alguns meses do Secretariado central do partido (em 1938). A experiência não foi boa; a situação organizativa do partido era caótica e Domingues foi de novo enviado em missão para o estrangeiro. Preso em França durante a guerra mundial e internado num campo de concentração, ter-se-ia evadido (segundo a sua versão), voltando clandestinamente a Portugal em fins de 1944. Do que teria sido a sua vida nesse intervalo de tempo nada se sabe, ou, pelo menos, nada foi divulgado pela direcção do PCP mas é-nos dito que veio “devidamente credenciado por um Partido irmão.”(8)
Em 1945, com o rápido alargamento da influência do partido, Domingues passa a integrar o Comité Central e é cooptado para o Bureau Político do CC, organismo de existência efémera mas que então se tentava projectar como verdadeira direcção permanente do partido. Aí enfileira, ao lado de Cunhal, Guedes, Militão, como um dos principais dirigentes comunistas da época. Que não é uma escolha ocasional revela-o o facto de, no ano seguinte, o IV Congresso do partido o ter confirmado como membro do Comité Central. E em funções de controlo do “aparelho técnico” central (tipografias clandestinas e outras instalações de apoio da direcção) se mantêm até 1949. Nesse ano, quando cai o núcleo central do aparelho clandestino e surgem suspeitas a seu respeito, é colocado em tarefas sucessivamente menos responsáveis até ser completamente afastado da actividade e, por fim, expulso como “provocador” e assassinado.
Havia motivos para o ambiente de alarme e suspeita reinante no PCP em 1949-51. Em vagas sucessivas, a PIDE assaltava as casas ilegais, prendendo dezenas de militantes responsáveis. Desde logo, Álvaro Cunhal e Militão Ribeiro, os elementos-chave do Secretariado, mas também Manuel Rodrigues da Silva, José Martins, Joaquim Campino, Francisco Miguel. Dois outros dirigentes, José Gregório e Manuel Guedes, conseguiram escapar à justa, com as casas já localizadas pela polícia. Mas muitos outros funcionários caíram: Sofia Ferreira, Dias Lourenço, Jaime Serra, Casimira Silva, Luísa Rodrigues, José Moreira (assassinado), Colélia Fernandes, José Magro, Mercedes e Georgete Ferreira, Severiano Falcão, Alcino de Sousa, Salvador Amália, Júlio Paour…
A prisão de Cunhal, a morte de Militão Ribeiro, a debandada de centenas de militantes e o desmantelamento de organizações inteiras, punham termo a uma década de crescimento incessante durante a qual o PCP se prestigiara à frente de grandes greves e manifestações. Estavam chegados “os tempos de mais ampla e severa repressão do comunismo”, que Salazar prometera numa das suas arengas(9).
Politicamente, era também o descalabro. Os democratas, que se tinham encostado à capacidade mobilizadora e organizativa dos comunistas durante a guerra, ao verificar que ingleses e norte-americanos não admitiriam um levantamento contra Salazar, adaptavam-se agora aos novos tempos e alinhavam pela histeria anticomunista da “guerra fria”: passaram a recusar solidariedade ao partido e, não raro, a atacá-lo publicamente. De golpe, afundavam-se as perspectivas da unidade antifascista do pós-guerra e do próprio papel do PCP como principal força da oposição.
O espírito de vigilância exacerbado pelo perigo criou na direcção do partido um ambiente propício à busca de “inimigos”. Naturalmente, era impossível evitar que, sob a perseguição da PIDE, suspeitas infundadas recaíssem sobre este ou aquele militante. Todos os que fizeram a experiência da actividade clandestina sabem que, no clima de insegurança permanente, não há nenhum militante cujos actos não se prestem a interpretações suspeitas se se começar a associar todas as circunstâncias estranhas em que esteve envolvido, os seus actos inexplicados, os deslizes conspirativos. O risco de eventuais desconfianças infundadas sobre militantes honestos era afinal um dos preços a pagar pela luta clandestina, com as suas incertezas, a sua crueldade, as suas armadilhas. Aqueles que pregam moral sobre o assunto fingem ignorar que sem esse combate tenebroso, quase corpo-a-corpo com a PIDE, não podia haver resistência anti fascista digna desse nome(10).
Seja como for, é certo que na época a direcção do PCP, abalada pelos golpes da polícia, pela ausência de perspectivas políticas, pelo clima internacional de caça aos comunistas, cedeu à paranóia da perseguição. Militantes foram publicamente denunciados por pequenas faltas, acusados sem provas, sujeitos a julgamentos sumários, expulsos. Domingues seria um caso extremo nesta difícil experiência.
Parece todavia haver algo mais, que impediu até hoje a direcção do PCP de reabrir o dossiê. Algo que tem a ver, ao que tudo indica, com as melindrosas implicações internacionais do caso.
De facto, o pano de fundo das enoveladas acusações contra Domingues é o pressuposto de que ele fora recrutado como espião no estrangeiro: “Se esta prisão [no campo de internamento em França] é verdadeira, só tomando compromissos com a Gestapo ele poderia ter sido liberto, como fizeram os espiões mandados pela Gestapo para a Jugoslávia” (p. 25). “Está hoje claro para o Partido que ele fez parte de uma quadrilha de provocadores e de espiões recrutados pela Gestapo nos campos de concentração e, mais tarde, enviados pela espionagem norte-americana para diversos países, sobretudo para aqueles países, como Portugal e Espanha, onde os partidos comunistas vivem na mais feroz das ilegalidades” (p. 26).
Domingues cúmplice dos jugoslavos — eis o fulcro da questão: “O papel de primeiro plano desempenhado pela infame camarilha de Tito em todos os actos de provocação e espionagem contra as Democracias Populares têm a sua origem no facto de numerosos espiões americanos, provocadores e trotskistas (entre os quais mais de 150 indivíduos libertos dos campos de internamento franceses em 1941 e enviados pela Gestapo para a Jugoslávia para aí fazerem espionagem), se terem apoderado do poder após a libertação da Jugoslávia” (p. 11, sublinhado meu).
Temos assim que Domingues se terá evadido (ou sido solto) do campo francês de internamento, talvez em conjunto com um grupo de jugoslavos e que isto veio a ser-lhe fatal mais tarde. É ainda o mesmo documento que afirma que “0 Partido Comunista Francês, durante a Resistência, denunciou-o [Manuel Domingues] como um provocador, como um elemento que tinha ligações com a Gestapo, facto que só chegou ao conhecimento do nosso Partido muitos anos depois, em 1952”. (p. 24).
Em face disto, entende-se melhor a precipitação com que o Secretariado encontrou indícios incriminatórios em todos os actos passados de Manuel Domingues; “descobria-se” agora que ele era espião há vários anos e que viera para Portugal como espião. Vista a esta nova luz, toda a sua actividade anterior não passava de uma manobra odiosa. Só a morte podia castigar tal perversidade.
O pior foi que, passados apenas quatro ou cinco anos, a denúncia dos “espiões” jugoslavos foi declarada um erro pela direcção soviética. De chofre, os partidos que tinham pressurosamente aderido à campanha de Moscovo e tinham “descoberto” os seus próprios “espiões” viram ser-lhes tirado o tapete debaixo dos pés.
Recordando: Staline começara por formular em 1948 algumas críticas ao partido jugoslavo, críticas cujo fundamento, aliás, se comprovou mais tarde: primeiro, que as reformas “autogestionárias” favoreciam o crescimento da economia capitalista privada nas cidades e nos campos; e segundo, que, com a sua “opção democrática”, o marechal Tito ingressava, prosaicamente, na esfera de influência norte-americana, em busca de apoios financeiros e militares.
Mas o que estava em jogo não era uma simples divergência política. Todo o controlo da URSS sobre a Europa oriental ficava ameaçado de colapso pela defecção jugoslava. A rebeldia de Tito era estimulada pelos Estados Unidos, calorosamente saudada pela social-democracia internacional, aplaudida pelos trotskistas como uma audaciosa experiência não-burocrática. Temerosos de que o campo das “Democracias Populares” do Leste europeu caísse como um castelo de cartas, os dirigentes da URSS passaram aos “grandes meios”.
A partir de 1949, quando se tornou evidente que a direcção jugoslava optara definitivamente pela aproximação às potências ocidentais e se tornava um perigoso “cavalo de Tróia” no campo das “Democracias Populares”, foi posta em movimento pelo partido comunista da URSS e pelo KGB uma formidável campanha de propaganda.
Com a experiência adquirida nos processos de Moscovo, não foi difícil reconstruir a biografia de Tito, Djilas, Rankovitch, etc., de modo a “provar” que tinham sido de longa data provocadores e agentes empedernidos do imperialismo. A sua resistência ao nazismo fora uma fraude. Segundo um informe de Molotov, o partido jugoslavo caíra nas mãos dum “bando de gangsters”. O objectivo desta campanha era obviamente fazer o vazio à volta do regime titista e criar um ambiente propício a levantamentos internos ou mesmo a uma invasão.
Logicamente, o passo seguinte foi extirpar o tumor. Uma frenética investigação policial estendeu-se a todo o movimento comunista, em busca das “ramificações da camarilha titista”. Tratava-se de desmascarar e isolar todos os que manifestassem simpatia pelas posições políticas de Tito ou que no passado lhe tivessem estado próximos. Pressionaram-se os partidos comunistas, particularmente os das “democracias populares” da Europa oriental, para se depurarem de elementos “suspeitos” que pudessem estar conluiados com a direcção Jugoslava ou advogar a tolerância para com ela. Assim surgiram os processos que acabaram no fuzilamento de Slansky, Rajk, Rostov e muitos outros comunistas desses países, condenados não apenas como simpatizantes da via titista (que provavelmente eram) mas como espiões, agentes do antigo regime, colaboracionistas no tempo da guerra… Só a infamação total servia os propósitos de Staline, porque no regime “soviético” agonizante, a luta política cedia o lugar ao enredo policial.
O PCP encontrava-se nessa época, pelo próprio isolamento resultante da clandestinidade, um pouco ao abrigo do fervilhar de intrigas e suspeições do Cominform, mas não descurava nem por um momento a solidariedade incondicional para com a URSS. O desmascaramento de eventuais simpatizantes do titismo terá surgido como uma prova palpável de “firmeza”, isto é, de aprovação explícita à depuração em curso.
E aqui, as suspeitas que, devido à onda de prisões, possivelmente já pairavam em torno da lealdade de Domingues terão ganho um tremendo impulso ao ser associadas aos seus contactos fora do país. Ele fizera dez anos de militância no estrangeiro, em lugares e momentos particularmente perigosos: primeiro na União Soviética, no início dos processos de Moscovo; depois, na guerra de Espanha, em contacto com as brigadas internacionais; por fim, na França ocupada, durante praticamente todo o tempo da guerra. Se admitirmos por hipótese que tenha saído do campo de internamento juntamente com jugoslavos (em 1941?) e que a eles tenha estado ligado durante o resto da guerra; ou que já antes tivesse sido referenciado pelo KGB por camaradagem com jugoslavos nas Brigadas Internacionais em Espanha; ou até, pior ainda, que, quando da sua estadia em Moscovo, tivesse feito comentários imprudentes acerca dos grandes processos que então começavam, pode dizer-se que a sua denúncia como espião estava certa. No ambiente de caça às bruxas suscitado pela “guerra fria”, seria grande milagre que um militante comunista com um percurso destes não saísse chamuscado.
No auge da campanha antititista e da repressão interna, quando a suspeita de uma infiltração envenenava a atmosfera na direcção do partido, a questão ter-se-lhes-á posto: “Se todos estão a descobrir espiões, seremos ingénuos ao ponto de acreditar que só o PCP não os tem?” Aqui, a comunicação pelo PC Francês de que Domingues fora considerado provocador no tempo da guerra pode ter sido o elemento decisivo que faltava para ser dado o passo final: a morte do “espião”.
É certo que o folheto que vimos comentando afirma que a denúncia do PCF só aqui foi recebida “em 1952”, ou seja, no ano seguinte à morte de Domingues. Mas talvez não seja excessivo admitir que essa comunicação tenha chegado antes (em 1950 ou 1951) e que a data tenha sido “corrigida” no folheto para ressalvar a “vigilância” do partido e este não aparecer na dependência de informações vindas do exterior. É decerto apenas uma hipótese. Mas continuaremos no terreno das hipóteses enquanto os directos intervenientes não decidirem relatar o que sabem.
Uma coisa é certa: enquadrada a expulsão e execução de Manuel Domingues na campanha de caça aos “espiões titistas” de 1950-53, torna-se compreensível por que foi a direcção do PCP forçada a fazer silêncio sobre o assunto, até hoje. As acusações contra Tito foram retiradas após a morte de Staline, como uma malévola invenção de Béria (ele, sim, “espião do imperialismo” e por isso fuzilado); logo, Domingues deixou de ser agente dos nazis e norte-americanos; por outro lado, a direcção do PCP não dispunha de elementos que provassem a colaboração de Domingues com a PIDE — o processo teve que ser encerrado. Com uma lógica muito sua, os dirigentes do PCP acharam que mantendo um mutismo total sobre o assunto poderiam livrar-se de perguntas incómodas.
E de facto assim foi. Mas, por estas e por outras, não há meio de o PCP conseguir escrever a sua própria história…
Notas de rodapé:
(1) IV Reunião Ampliada do CC, de Abril de 1952, noticiada no Avante nº 168, de Junho desse ano, e no Militante nº 68, do mesmo mês. (retornar ao texto)
(2) Pseudónimo de Joaquim Pires Jorge, que teve durante algumas décadas funções dirigentes no PCP. (retornar ao texto)
(3) Lutemos contra os espiões e provocadores. Breve história de alguns casos de provocação no PCP. Edições Avante, Dezembro de 1952. (retornar ao texto)
(4) Id., p. 31. (retornar ao texto)
(5) Nomeadamente: “Sobre a organização e defesa do trabalho de direcção”, resolução do CC (Militante 121, de Dezembro de 1962), “Para uma melhor defesa do Partido”, intervenção de “Ferreira ” à reunião do CC de Agosto de 1963, “Defender o Partido, primeira tarefa de todo o Partido e de cada militante”, resolução do CC (Militante 125, Outubro de 1963), Documentos do CC do PCP, 1965/74, Edições Avante, 1975, “A Defesa acusa” (folheto), edições Avante, Abril de 1969; e os artigos: “A defesa do Partido é inseparável do reforçamento da organização”, (Militante 102, de Outubro de 1959), “Ensinamentos de uma série de traições” (Militante 110, Maio de 1961), “Por uma viragem radical no trabalho conspirativo” (Militante 104, Maio de 1960), “Sobre a defesa do Partido” (Militante 118, de Setembro de 1962), “Lutemos intransigentemente contra a traição” (Militante 119, de Outubro de 1962), “Guerra aos traidores” (Militante 131, de Novembro de 1964), “Militão Ribeiro, herói comunista” (Militante 141, de Janeiro de 1966), “50! aniversário do PCP” (Avante 427, de Março de 1971), etc., etc. (retornar ao texto)
(6) Segundo testemunho deste em entrevista gravada em 1996. Joaquim Carreira, natural da Marinha Grande, foi funcionário do PCP nos anos 50-70. (retornar ao texto)
(7) José Magro, Cartas da Prisão. Ed. Avante, Lisboa, 1975. (retornar ao texto)
(8) Lutemos contra…, p. 24. (retornar ao texto)
(9) Discurso às comissões da União Nacional, 12 de Dezembro de 1950. (retornar ao texto)
(10) Pensamos nas demarcações dum Mário Soares e de tantos outros democratas que hoje apresentam como grandes batalhas da clandestinidade as suas prudentíssimas escaramuças com a PIDE. (retornar ao texto)
Inclusão |