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Primeira Edição: Política Operária nº 77, Nov-Dez 2000
Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
No número especial da revista L’Histoire dedicado aos “crimes do comunismo” (nº 247, Outubro 2000), são retomadas as teses nos últimos anos desenvolvidas nos livros de Stephane Courtois e François Furet, o Livro Negro do Comunismo e Le passé d’une illusion. Já aqui argumentámos em torno dessas teses (P. O. nº 63) mas vale a pena determo-nos um momento no quadro traçado por Courtois. Para ele, “todos os regimes comunistas foram criminosos”, “responsáveis pela morte de milhões de indivíduos”, responsabilidade que viria já de Lenine, o qual, “com o cinismo de um político profissional”, “rompeu com o socialismo democrático e apelou à guerra civil geral e ao desencadeamento de uma revolução proletária mundial”. Lenine nem escapa à acusação de ter “abandonado a Rússia ocidental aos Impérios Centrais” em 1918, o que é realmente excessivo…
A “tragédia comunista” conduziu no plano económico ao “desastre geral”, com o fiasco da URSS, “um dos países mais ricos em matérias-primas”, o atraso da Europa de leste a partir de 1945, a “falência permanente” do regime cubano… O comunismo é ainda responsável pela “destruição de civilizações” (saque de igrejas na URSS, destruição de objectos de arte na “revolução cultural” chinesa), por catástrofes ecológicas como a de Tchernobyl. Mas o principal crime atribuído ao comunismo é, naturalmente, a destruição de vidas humanas, com os milhões de mortos nos campos de concentração, no Terror dos anos 30, na revolução cultural chinesa, no Camboja, etc… Courtois chega assim à cifra que celebrizou o seu trabalho: 100 milhões de pessoas teriam perecido por causa do comunismo.
Sobre a ruína económica e cultural que teria sido causada pelos regimes comunistas nem vale a pena discutir. No espaço de meio século (entre 1920 e 1970, aproximadamente) um terço da humanidade passou da miséria e das trevas medievais para o mundo moderno. Nenhuma das celebradas revoluções burguesas fez nada de semelhante, nem de longe – e sabe-se os terríveis custos humanos que estas acarretaram.
Contudo, alega-se, o preço em vidas da transformação socialista foi esmagador, o que, só por si, a condenaria em definitivo. É esse o ponto forte da crítica de Courtois, o qual, para tornar a sua tese mais impressiva, não hesita em arredondar a soma com as vítimas de guerras, fomes e catástrofes causadas nesses países pelo cerco económico e militar das “democracias”, e inclusive com os comunistas mortos em defesa da revolução, os mortos das guerras civis de Angola e Moçambique, etc…
No afã de isolar o comunismo como uma excepção monstruosa, ele vai mais longe: contesta que se deva atribuir um lugar à parte aos crimes do nazismo (25 milhões de mortos civis), com argumentos pelo menos estranhos: inicialmente Hitler pensava apenas em expulsar os judeus, não em matá-los; o extermínio dos judeus é da mesma natureza do plano bolchevique de “liquidar a burguesia como classe”; o assassinato industrial nas câmaras de gás e nos fornos crematórios só começou em 1942… Haveria portanto uma rectificação de fundo a fazer, pois “a uma hipermnésia dos crimes nazis corresponde uma amnésia dos crimes comunistas”.
A lógica que preside a estes raciocínios já tem sido analisada. Para Courtois todo o desvio ao modelo democrático burguês, idealizado como o mais perfeito, é uma “experiência” anómala, que só pode conduzir ao desastre e ao crime. Alguém deve ser responsabilizado, portanto, pelo facto de a Rússia e a China não terem passado à modernidade pela via “normal” europeia. Lenine, Mao e os partidos comunistas devem ser condenados porque o “ódio à burguesia” e o “mito do proletariado” por eles alimentado foram “motores essenciais do totalitarismo”. Ou seja, deste ponto de vista toda a corrente social que ponha em causa o capitalismo e lute pelos direitos do proletariado é potencialmente criminosa. Podemos detectar aqui a atitude fascista a emergir da lógica de classe da burguesia levada às suas últimas consequências.
Num outro artigo desta revista o historiador Nicolas Werth faz uma abordagem mais séria da questão, no que se refere à URSS, baseada na consulta dos arquivos soviéticos. Ele regista 800.000 pessoas condenadas à morte entre 1921 e 1953, na sua grande maioria as vítimas do Terror de 1937-38; 25.000 polacos executados sumariamente em 1940; pelo Gulag passaram, entre 1930 e 1953, 15 milhões de soviéticos, um quarto dos quais por motivos políticos; deste total, Werth calcula em cerca de um milhão e meio o número de mortos, por privações, doenças, rigor do clima, abandono; o ano de 1933, de grande fome, foi particularmente mortífero para os presos. Depois, há que ter em conta os deportados, cerca de 6 milhões no total, com destaque para os kulaks, sujeitos a tremendas privações em regiões inóspitas. Por fim, as vítimas das grandes fomes: 5 milhões de mortos em 1921-22, 6 milhões em 1932-33, meio milhão em 1946-47.
A discussão em torno dos massacres e catástrofes ocorridos em nome da ideologia comunista, muito tempo ocultada, tem que prosseguir. Os comunistas são os mais interessados nisso. Mas com os seus próprios conceitos e rejeitando os critérios burgueses, que falsificam a investigação. Primeiro, porque lançam à conta dos regimes “socialistas” situações de catástrofe deliberadamente causadas pelas “democracias ocidentais”. Segundo, porque apresentam revoluções envolvendo centenas de milhões de pessoas como “experiências” de que se deveria pedir contas a líderes fanáticos e tresloucados. Terceiro, porque comparam uma época de tempestuosas transformações sociais no Leste com regimes burgueses estabilizados no Ocidente; se pusermos em comparação as catástrofes do Leste com as causadas pela burguesia europeia no período do seu ascenso, veremos que não se afastam muito. Quarto, finalmente, porque, ao fazer o balanço dos “crimes de massa” deste século, os críticos do “totalitarismo” fogem a pôr no prato da balança a responsabilidade determinante das democracias nas terríveis matanças das duas guerras mundiais, como se estas fossem produto da fatalidade, e os milhões de vítimas de Dresde, Hiroshima e Nagasaki, das guerras da Coreia, da Argélia, do Vietname, dos massacres no Ruanda, Indonésia, América Latina, da fome em África – da sucessão de modernos genocídios que servem de pano de fundo ao “progresso e estabilidade” do Ocidente.
Inclusão | 10/06/2018 |