Contra o federalismo

J. V. Stálin

28 de março de 1917


Primeira publicação: “Pravda” (“A Verdade”), n.° 19. 28 de março de 1917. Assinado: K. Stálin.
Fonte: J. V. Stálin, Obras. Editorial Vitória, Rio de Janeiro, 1953, págs. 31-38.
Tradução: Editorial Vitória, da edição italiana G. V. Stálin - "Opere Complete", vol. 3 - Edizione Rinascita, Roma, 1951.
HTML: Fernando Araújo.
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capa

No n.° 5 do Dielo Naroda(1) apareceu um artigo intitulado A Rússia, união regional. O artigo propõe nem mais nem menos que a transformação da Rússia em uma “união regional”, em um “estado federal”. Escutai:

“O estado federal russo que receba os atributos da soberania da parte das regiões isoladas (Pequena Rússia, Geórgia, Sibéria, Turquestão, etc.)... mas conceda a soberania interna às regiões isoladas. Que a próxima Assembleia Constituinte crie a união regional russa.”

O porquê é explicado pelo autor do artigo (J. Okulitch) da seguinte maneira:

“Admitamos que exista um único exército russo, uma única moeda, uma única política exterior, uma única Corte Suprema de Justiça. Mas as regiões isoladas do Estado único que sejam livres no sentido de criar cada qual uma nova vida, de maneira independente. Se desde 1776... os americanos constituíram os ‘Estados Unidos’ com um pacto federal, não podemos nós constituir em 1917 uma durável união regional?”.

Isto diz o Dielo Naroda.

É preciso reconhecer que o artigo é interessante sob muitos aspectos e, em todo o caso, original. É interessante, além disso, o seu tom elevado e solene e, poder-se-ia dizer, “próprio de manifesto” (“seja”, “admitamos que seja”!)

Não obstante tudo isso, é preciso observar que, no seu conjunto, esse artigo constitui um estranho mal-entendido, na base do qual está um modo mais que superficial de considerar os fatos da história da formação estatal dos Estados Unidos da América do Norte (como também da Suíça e do Canadá).

Que nos diz essa história?

Em 1776, os Estados Unidos não eram uma federação, mas uma confederação de colônias ou Estados até então independentes. Isto é, eram colônias independentes, mas em seguida essas colônias, para defender os interesses comuns, sobretudo contra os inimigos externos, contraíram entre si uma aliança (confederação), sem cessar de serem unidades estatais completamente independentes. No decênio 1860-1870 sucedeu uma reviravolta na vida política do país: os Estados do Norte exigem um laço político mais forte entre os Estados, contra a vontade do Sul que protesta contra o “centralismo” e defende a situação anterior. Estoura a “guerra civil”, na qual os Estados do Norte levam a melhor. Constitui-se na América uma federação, isto é, uma união de Estados soberanos, que dividem o poder com o governo federal (central). Mas esse estado de coisas não dura por muito tempo. A federação vem a ser, como a confederação, uma medida transitória, A luta entre os Estados e o governo central não cessa, a dualidade do poder torna-se insuportável e como consequência da ulterior evolução, os Estados Unidos transformam-se de federação em Estado unitário (unido) com uma única Constituição, com uma limitada autonomia (não estatal, mas político-administrativa) dos Estados, admitida por essa Constituição. O termo “federação” aplicado aos Estados Unidos torna-se uma palavra destituída de sentido, um resto do passado que há tempo não corresponde mais à situação real.

As mesmas coisas devem ser ditas da Suíça e do Canadá, também citados pelo autor do artigo mencionado. Encontramos aqui os mesmos Estados originariamente independentes (os cantões), a mesma luta por uma união deles mais sólida (a guerra contra o Sonderbund(2) na Suíça, a luta entre ingleses e franceses no Canadá), a mesma transformação ulterior da federação em um Estado unitário.

Que dizem esses fatos?

Simplesmente que na América, como no Canadá e na Suíça, o desenvolvimento partiu inicialmente das regiões independentes para chegar, através de sua federação ao Estado unitário; que a tendência do desenvolvimento não é a favor da federação, mas contra esta. A federação é uma forma de transição.

E isso não acontece por acaso. De fato o desenvolvimento do capitalismo nas suas formas superiores e a respectiva ampliação das fronteiras do território econômico, com suas tendências centralizadoras, exigem uma forma unitária e não federal da vida do Estado.

Não podemos deixar de levar em conta essa tendência se, naturalmente, não quisermos fazer girar para trás a roda da história.

Por conseguinte é ilógico reclamar para a Rússia a forma federal, que a própria vida condena a desaparecer.

O Dielo Naroda propõe que se efetue na Rússia a experiência que os Estados Unidos realizaram em 1776. Mas existe alguma analogia, ainda que remota, entre os Estados Unidos de 1776 e a Rússia de nossos dias?

Os Estados Unidos eram então um conjunto de colônias independentes, entre as quais não existia laço algum e que no máximo desejavam associar-se em confederação. Esse seu desejo era de todo compreensível. Encontramos algo de semelhante na Rússia hodierna? Certamente que não! É claro para todos que as regiões da Rússia (regiões periféricas) estão intimamente ligadas à Rússia Central por laços econômicos e políticos que serão mais fortes, quanto mais a Rússia for democrática.

Há mais. Para constituir na América a confederação ou a federação, foi necessário unir as colônias, entre as quais não existia ainda nenhum laço, o que se efetuava no interesse do desenvolvimento econômico dos Estados Unidos. Mas para transformar a Rússia em uma federação, teriam que ser rompidos os laços econômicos e políticos já existentes entre as regiões, o que é absolutamente ilógico e reacionário.

Enfim a América (como o Canadá e a Suíça) está dividida em estados (cantões) não na base da nacionalidade, mas segundo um critério geográfico. Lá os estados tiveram a sua origem nas comunidades de colonos, independentemente de sua composição étnica. Nos Estados Unidos existem algumas dezenas de estados, ao passo que os grupos nacionais não são mais de sete ou oito. Na Suíça há vinte e cinco cantões (regiões), ao passo que os grupos nacionais são somente três. Na Rússia a situação é diferente. As que na Rússia são chamadas comumente regiões que, digamos, têm necessidade de autonomia (Ucrânia, Transcaucásia, Sibéria, Turquestão, etc.) não são regiões puramente geográficas como os Urais ou o Além-Volga, porém zonas determinadas da Rússia, com determinados costumes e com determinada composição étnica (não russa). Justamente por isso na América e na Suíça a autonomia (ou a federação) dos estados não só não resolve a questão nacional (nem por outro lado se propõe resolvê-la!) como nem sequer a apresenta. Ao invés, a autonomia (ou a federação) das regiões da Rússia é proposta justamente para colocar e resolver a questão nacional na Rússia, quando a divisão regional da Rússia é de caráter nacional.

Não se torna evidente então como vem a ser artificiosa e absurda a analogia que é estabelecida entre os Estados Unidos de 1776 e a Rússia de hoje?

Não se torna evidente então que na Rússia o federalismo não resolve e não pode resolver a questão nacional e não traz outra coisa senão confusão e complicações com suas tentativas quixotescas de fazer girar para trás a roda da história?

Não, a proposta no sentido de se aplicar à Rússia a experiência da América de 1776 é decididamente inútil. A federação, forma equívoca de transição, não satisfaz e não pode satisfazer aos interesses da democracia.

A solução da questão nacional, para ser viva, radical e definitiva, deverá basear-se:

  1. — no direito de separação garantido às nacionalidades que habitam determinadas regiões da Rússia e que não podem e não querem permanecer dentro das fronteiras do Estado;
  2. — na autonomia política nas fronteiras do Estado unitário (unido), com normas constitucionais únicas para as regiões que se distinguem por uma particular composição étnica e que permanecem dentro das fronteiras do Estado.

Assim, e não de outra maneira, deve ser resolvido o problema das regiões da Rússia,

NOTA DO AUTOR

O presente artigo reflete a atitude, então dominante em nosso Partido, que emitia um juízo negativo da ordem federal do Estado. Essa atitude negativa sobre a ordem federal do Estado foi expressa do modo mais claro na conhecida carta de Lênin a Chaumian, de novembro de 1913. Lênin nessa carta diz:

“Somos pelo centralismo democrático, sem reservas. Somos contra a federação... Somos por princípio contra a federação porque enfraquece os laços econômicos e é uma ordem má para um Estado. Queres a separação? Vai também para o diabo que te carregue, se conseguires romper os laços econômicos, ou melhor, se a opressão e os atritos devidos à ‘coabitação’ forem de tal maneira que arruínem e destruam os laços econômicos. Não queres a separação? Mas então, desculpa, não decidas por mim, não penses ter ‘direito’ à federação” (vide volume XVII, Pág. 90).

É característico que na resolução sobre a questão nacional aprovada pelo Partido em 1917, na Conferência de Abril,(3) a questão da ordem federal do Estado permaneceu completamente na sombra. Na resolução fala-se de direito de separação das nações, da autonomia das regiões nacionais dentro das fronteiras do Estado unitário e, enfim, da publicação de uma lei fundamental contra todos os privilégios nacionais, mas não se diz uma palavra sobre a admissibilidade da ordem federal do Estado.

Com o livro de Lênin O Estado e a Revolução (agosto de 1917) o Partido, na pessoa de Lênin, dá o primeiro passo sério no sentido do reconhecimento da admissibilidade da federação como forma de transição para a “república centralizada”, acompanhando porém esse reconhecimento com sérias reservas.

“Como Marx — diz Lênin nessa obra — Engels defende, do ponto de vista do proletariado e da revolução proletária, o centralismo democrático, a república una e indivisível. Ele considera a república federativa ou como uma exceção à regra e um obstáculo ao desenvolvimento, ou como uma transição entre a monarquia e a república centralizada e, em certas condições particulares, como ‘um passo à frente’. E entre essas condições particulares coloca em primeiro plano a questão nacional... Até na Inglaterra, onde as condições geográficas, a comunhão da língua e uma história multissecular pareceriam ‘ter posto fim’ à questão nacional para isoladas e pequenas subdivisões do país, até ali Engels leva em conta o fato evidente de que a questão nacional ainda não está superada e reconhece por isso que a república federativa constituiria ‘um passo à frente’. Evidentemente não existe nisto nem sombra sequer de renúncia a criticar os defeitos da república federativa e a promover a mais resoluta propaganda e luta a favor da república unitária, democrática, centralizada” (vide vol. XXI, pág. 419).(4)

Somente após a Revolução de Outubro, o Partido tem sustentado com firmeza e decisão o ponto de vista do Estado federal, apresentando-o como projeto apropriado de ordem estatal das repúblicas soviéticas durante o período de transição. Esse ponto de vista foi expresso pela primeira vez na conhecida Declaração dos direitos do povo trabalhador e explorado, de janeiro de 1918, escrita por Lênin e aprovada pelo Comitê Central do Partido. Nessa declaração diz-se:

“A República Russa dos Soviets é constituída na base de uma livre união de nações livres, como federação de repúblicas nacionais soviéticas” (vide volume XXII, pág. 174).(5)

Esse ponto de vista foi oficialmente aprovado pelo VIII Congresso do Partido (1919).(6) Como é sabido, nesse congresso foi aprovado o programa do Partido Comunista da Rússia. Nesse programa diz-se:

“O Partido propõe a unificação federativa dos Estados organizados segundo o tipo soviético, como uma das formas de transição no sentido da unidade completa” (vide Programa do Partido Comunista da Rússia).

Esse é o caminho que o Partido percorreu desde a negação da federação até ao seu reconhecimento como “forma de transição no sentido da unidade completa dos trabalhadores das diferentes nações” (vide Teses sobre a questão nacional,(7) aprovadas pelo II Congresso da Internacional Comunista).

Essa evolução das concepções do nosso Partido a propósito da federação estatal deve explicar-se por três motivos.

Em primeiro lugar, no período da Revolução de Outubro numerosas nacionalidades da Rússia acharam-se de fato completamente divididas e separadas umas das outras, e para elas a federação constituía um passo à frente com relação ao fracionamento das massas trabalhadoras dessas nacionalidades, e levava à sua aproximação, à sua união.

Em segundo lugar, as próprias formas da federação, como se delinearam no curso da edificação soviética, não se revelaram tão em contraste com 0 objetivo de estabelecer mais estreitos contatos econômicos entre as massas trabalhadoras das várias nacionalidades da Rússia, como parecia anteriormente, ou se revelaram até mesmo inteiramente conformes com esse objetivo, como a realidade demonstrou em seguida.

Em terceiro lugar, o peso específico do movimento nacional revelou-se muito mais sério e o caminho que leva à unificação das nações muito mais complexo do que podia parecer anteriormente, no período de pré-guerra, ou antes da Revolução de Outubro.

J. St.
Dezembro de 1924.


Notas de fim de tomo:

(1) Dielo Naroda (A Causa do Povo), jornal dos social-revolucionários. Publicou-se em Petrogrado de 15 de março de 1917 a janeiro de 1918. (retornar ao texto)

(2) Sonderbund — união reacionária dos sete cantões católicos da Suíça, constituída em 1845, que sustentava o fracionamento político do país. Em 1847 acendeu-se a luta armada entre o Sonderbund e os outros cantões que eram pela centralização do poder. A guerra terminou com a derrota do Sonderbund e a transformação da Suíça, de uma federação de Estado, num único Estado federal. (retornar ao texto)

(3) A VII Conferência de Toda a Rússia (Conferência de Abril) do P.O.S.D.R. (b) realizou-se de 24 a 29 de abril de 1917 em Petrogrado. Foi a primeira conferência legal dos bolcheviques e teve para o Partido a importância de um congresso. No informe sobre a situação política, Lênin desenvolveu os princípios que já havia exposto nas Teses de Abril. Stálin pronunciou um discurso em apoio da resolução de Lênin sobre a situação política e apresentou um informe sobre a questão nacional. A conferência condenou a atitude oportunista e capitulacionista de Kámenev, Rikov, Zinóviev, Bukhárin e Piátakov, os quais haviam declarado que a Rússia ainda não estava madura para a revolução socialista e haviam assumido, na questão nacional, uma posição nacionalista e chovinista. A Conferência de Abril orientou o Partido Bolchevique no sentido da luta pela transformação da revolução democrático-burguesa em revolução socialista. Vide a resolução da Conferência de Abril sobre a questão nacional em "O P. C. (b) da URSS nas Resoluções e Decisões dos Congressos, Conferências e Plenos do C. C.", sexta edição em língua russa, 1940, parte I, pág. 233. (retornar ao texto)

(4) Vide: Lênin, Obras Escolhidas em dois volumes, Edições em línguas estrangeiras, volume II, Moscou, 1948, págs. 175-176. (retornar ao texto)

(5) Ibidem, pág. 249. (retornar ao texto)

(6) O VIII Congresso do Partido Comunista (bolchevique) da Rússia foi realizado em Moscou de 18 a 23 de março de 1919. O Congresso repeliu decididamente as concepções chovinistas e imperialistas de Bukhárin e Piátakov sobre a questão nacional (v. O Programa do Partido Comunista da Rússia aprovado por esse Congresso, em O P. C. (b) da URSS nas Resoluções e Decisões dos Congressos, Conferências e Plenos do C. C., cit., págs. 281-295). Vide também História do P. C. (b) da URSS, tradução brasileira, Edições Horizonte, págs. 93-97. (retornar ao texto)

(7) Vide: O II Congresso da Internacional Comunista, julho-agosto de 1920, Moscou, 1934, pág. 492. (retornar ao texto)

Inclusão: 18/02/2024