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A casa onde Stalin nasceu fica numa pequena cidade do Cáucaso. Parece ainda mais miserável do que a cabana onde nasceu Lincoln, porque os troncos naturais de que esta é feita pelo menos nos relembram as mãos do homem que os cortou e os reuniu. A casa onde nasceu Stalin é um miserável casebre de tijolo com quatro pequenas divisões; um lado é rebocado, a parte de cima sendo de tábuas de diversos comprimentos, pregadas; à soleira da porta, uma pedra deitada, na qual, sem dúvida, as visitas já tropeçavam há sessenta e dois anos, quando sua mãe deu a luz esse menino. Vi a velha senhora uma vez, em 1925, em Tiflis; voltava, depois de um passeio, para um apartamento muito modesto; grave e abatida pelos cuidados, usava o véu escuro habitual das mulheres da região; era obviamente tão indiferente às riquezas e prazeres da vida quanto seu filho, de quem, como senhor de duzentos milhões de almas, ela poderia exigir e obter tudo.
As mães são talvez as figuras mais comoventes que rodeiam o homem no poder, porque elas rezam todas as noites pedindo, não poder, e sim proteção para a vida que geraram. As mães heróicas que estavam preparadas para ver seus filhos morrerem em nome da glória eram, evidentemente, mais raras, mesmo no mundo antigo, do que a lenda nos quer fazer crer. Nos nossos tempos, quando os reis estão desaparecendo e três plebeus governam uma parte importante da terra, as emoções de uma tal família não podem ser encontradas na púrpura e magnificência da realeza; temos que procurá-las nos traços tristes do rosto de uma velha e nos olhos dolorosos que não refletem senão amor materno.
Na miserável choupana de tijolo, que custava um e meio rublos de aluguel, a mulher desse sapateiro conseguia reservar duas horas por dia para cozinhar e arranjar a casa; porque ela era também operária e seu marido, que mais tarde se empregou numa fábrica de sapatos, não era um camponês, como se diz hoje às crianças russas falando-lhes do pai de Stalin. Como a maioria dos seus vizinhos, tinha só uma pequena horta e às vezes uma vaca e algumas galinhas. Foi aí que o pequeno recebeu sua primeira magra instrução; mas o ambiente da sua infância era completa e inteiramente do proletário que nada possui: nem terras, nem tradição, nem Deus, nem esperança.
Quais devem ser as primeiras emoções de um menino vivo, de doze anos, nesse meio? Que vê diante de si para invejar e desejar? Seu pai diz-lhe que ele próprio nasceu escravo, porque a escravatura foi abolida no Cáucaso no mesmo ano que na América, 1865. A palavra usada não era escravatura, era direito de propriedade, o que vinha a dar na mesma coisa. Foi abolida lá, não por uma grande guerra e sim por um ato de graça de um Tzar invisível, que reinava a mil milhas de distância, e a mil milhas acima das nuvens. Os grandes latifundiários, porém, permaneceram onde sempre estiveram e continuaram a tratar seus camponeses como gado — a não ser que suas emoções sofressem uma súbita mudança, à maneira russa, e viessem sentar-se nas cabanas dos seus servos, e tomar chá com eles segurando um pedaço de açúcar entre os dentes e sorvendo-o através deles.
Que havia num meio assim para consolar e inspirar um menino meio negligenciado? Teria sido muito mais natural para ele vir a ser um proletário do que um estadista, porque havia muitas circunstâncias que concorriam para a primeira hipótese e nenhuma para a segunda.
Nessa terra da Geórgia, que fica ao sul do Cáucaso, entre os mares Negro e Cáspio, só um menino bem alimentado e bem vestido, que frequenta uma escola alegre e limpa, olha para mapas e modelos, e brinca diariamente num belo campo de esportes, pode aprender a apreciar e admirar as montanhas selváticas da região. Os cumes altaneiros, mais altos do que os dos Alpes, lembram os magníficos picos do México. Se lhe tivessem dado alimentação, sono bastante e bons professores, poderia também ter estudado, na sua terra natal, onde havia tal variedade de raças, georgianos, armênios, kurdos, turcos, judeus e muitas outras intermediárias, que seria ridículo tentar determinar a qual delas pertence Stalin. Nos mercados e bazares de Tiflis, muito perto, um pequeno esperto, que soubesse usar os olhos, poderia aprender a distinguir muitas dessas raças, como também maometanos e várias seitas cristãs; poderia também observar as igrejas e as mesquitas, e uma vida matizada e cheia de cor, que lembra ao visitante do oeste Smyrna ou Cairo.
Mas tudo isso ficou um livro selado para o pequeno proletário mal vestido e mal alimentado. Sua paixão — porque a fibra de Stalin ardia já até ao âmago com um fogo intenso como o que deve inflamar os primeiros anos de um homem — podia dirigir-se contra duas coisas que rodeavam suas visões e desejos com uma recusa hostil: as pessoas e a classe que mandavam nele e em seus pais.
Os sentimentos evocados por estes dois fenômenos diferiam largamente um do outro. Os georgianos, um velho povo culto que pode ser comparado com a nobreza espanhola no orgulho e quixotismo, viviam em bons termos com os russos, estando ligados a eles pela religião. A guerra russo-caucasiana tinha sido movida unicamente contra as tribos maometanas locais. Mas os georgianos tinham sido sempre a parte fraca e tinham tido que aceitar a liderança dos chamados Grandes Russos, isto é, dos que mandavam em S. Petersburgo e Moscou. Militarmente mais fracos do que os russos, mas culturalmente mais fortes — o que ainda hoje são —- os georgianos estavam para com os russos mais ou menos como os austríacos para os prussianos. O impulso de Stalin para a Rússia Maior foi como o de Hitler para a Prússia.
No Cáucaso, como no resto da Rússia, um punhado da nobreza, não mais de dois milhares ao todo, vivia e gozava a vida à custa das outras classes. Esses Junkers, que se deleitavam especialmente gastando as rendas de suas propriedades georgianas na Rue de Rivoli, em Paris, eram protegidos nas suas terras hereditárias pelas tropas do Tzar, porque era seu apoio que, por sua vez, mantinha o soberano. Mais de um governante imperial tinha sido assassinado pela nobreza. Que podia tal déspota, supondo-se que sentisse alguma cousa pelos cem milhões de camponeses, a quem governava, fazer em oposição aos interesses de cem mil proprietários de terras?
Mesmo os pequenos proprietários de terras — intitulavam-se príncipes, no Cáucaso, aqueles cujas propriedades consistiam de meia dúzia de acres e pouco mais de duas vezes esse número de vacas — tinham que ser protegidos pela máquina tzarista do Estado. Havia uma lei Universal: os camponeses tinham que ser mantidos na pobreza e na ignorância, na base da pirâmide.
Porque na realidade era o camponês que, nada possuindo, trabalhava oitenta e cinco por cento da terra. Quem teria ousado profetizar, nós tempos da escravatura, ou mesmo até trinta anos antes, que estava prestes a chegar o dia em que o camponês possuiria suas próprias terras, ou as arrendaria ao Estado; que a metade deste imenso império seria industrializada e que não existiriam mais condes nem príncipes? Uma transformação assim rápida ocorre muito raramente na história.
Idéias desta ordem não podiam ter ocorrido ao menino que crescia na imundície e na ignorância e muito menos poderia ele ter sonhado que representaria um papel decisivo nessa transformação.
Sempre que interrogava seu pai, sempre que lia o jornal para si, ou sempre que olhava em volta dele em Tiflis e via os brilhantes esquadrões de cossacos, os opulentos coches, tirados a três parelhas, da nobreza, ou uma princesa circassiana com seus elegantes sapatos apeando-se da carruagem para entrar na porta do palácio onde era esperada, tinha imediatamente diante dele o segundo objeto do seu ódio. A meta e o propósito de toda sua vida já estavam fixados para esse ousado menino, quando tinha treze anos de idade: visavam os georgianos, os ricos. Uma vez que nem a religião nem a filosofia proviam o contra-balanço na sua alma, seu primeiro ímpeto tinha de ser destrutivo.
Nesse ponto, sua mãe interveio. Com o auxílio de um parente, a pobre mulher do sapateiro conseguiu matricular o pequeno, obviamente esperto, num seminário ortodoxo, em Tiflis, onde teria casa e alimentação e se prepararia para o sacerdócio. Talvez sua mãe fosse religiosa; há um fundo religioso em todo eslavo. Quanto às idéias sobre Deus e o destino, que Stalin me manifestou, falarei mais adiante.
Quando o menino de quatorze anos entrou no seminário, por vontade de sua mãe, para preparar-se para o sacerdócio, não desapareceu, como Lutero, numa célula monástica. O espírito russo estava num estado de tumulto e revolta por, pelo menos, um século, e era inevitável que essas mesmas condições existissem nas escolas religiosas. Vinte anos antes, já tinha havido revoltas e choques nesse mesmo seminário. De uma vez, o reitor fulminara a língua georgiana e um estudante levantara-se e derrubara-o. Algum tempo depois um estudante de dezenove anos de idade apunhalou um arcebispo e um subsequente relatório de Tiflis ao Santo Sínodo dizia que a metade dos estudantes aplaudia o assassinato. Stalin não foi, certamente, o primeiro a ver-se complicado nesse seminário.
Mas, obviamente, foi o primeiro a tornar-se socialista por via dos estudos para o sacerdócio. O Presidente Masaryk, da Tchecoslováquia, filho de um cocheiro imperial, disse-me uma vez que, na idade de seis anos, já era nacionalista no coração devido à atitude desdenhosa dos condes boêmios para com seu pai. Mas, quando perguntei a Stalin se as privações por que passara na infância tinham feito dele o que era, respondeu-me pela negativa e ofereceu-me a seguinte surpreendente explicação:
— Meus pais não tinham educação, mas fizeram muito por mim. Essas coisas que me conta de Masaryk não fizeram de mim um socialista, nem na idade de seis, nem na de doze anos. Tornei-me socialista no seminário, porque a natureza da disciplina me exasperava. Aquela casa era um viveiro de espionagem e cavilação. Às nove da manhã reuníamo-nos para tomar chá e quando voltávamos para nossos quartos todas as gavetas tinham sido revistadas. E, assim como devassavam nossos papéis, devassavam também nossas almas.
Não podia suportar isso; tudo me enfurecia. E por esse tempo os primeiros grupos ilegais de socialistas russos estavam chegando ao Cáucaso. Fizeram uma profunda impressão em mim, e imediatamente adquiri o gosto pela literatura proibida.
Parece que o menino pouco aprendeu sobre religião no seminário, mas muito sobre canto, porque se encontra referência a ele como uma espécie de cantor ou líder de cânticos sacros; e uma vez, no dia do aniversário natalício do Tzar, cantou um solo numa igreja ortodoxa, tendo sido muito elogiado pelo modo como o fez. Como são cômicas as histórias que chegam até nós da infância de revolucionários!
Por esse tempo, Stalin deu seu primeiro passo nesse internacionalismo que estava destinado a determinar sua vida mais tarde: trocando lições com um colega de uma localidade qualquer de nome impronunciável da Ásia, assenhoreou-se do dialeto estrangeiro, enquanto o outro aprendia a língua georgiana.
Mas a coisa mais importante a que Stalin se entregou foi discutir esse meio tipicamente russo de esclarecer, comparar e definir as próprias idéias. O seguinte é um relato feito mais tarde por um colega estudante, numa versão, evidentemente, ligeiramente dramatizada:
"Uma manhã encontrei Stalin rodeado pelos colegas, na praça Pushkin. Estávamos todos excitados por causa de vários panfletos e artigos que um ou outro de nós descobrira. Alguém citou o nome de Tulin, cujo artigo lêramos secretamente. Mas sabíamos que esse era o pseudônimo de um escritor exilado que às vezes se assinava Lenine. Stalin ouviu e disse: "Preciso conhecer esse homem!". A sineta da escola dispersou os rapazes. Mais tarde arrebatamos das mãos uns dos outros o único exemplar em Tiflis do Das Kapital, de Marx."
Depois de passados quatro anos, Stalin, com dezoito anos de idade, foi expulso do seminário. Podemos imaginar o que isso significou para sua mãe que esperara assegurar o futuro do filho. Seu senso de honra sentiu-se ofendido, também, de maneira que, mesmo depois de velha, negava a expulsão, e ao passo que jornalistas e biógrafos se referiam com orgulho a este incidente da vida de Stalin, uma voz levantou-se perante mim protestando. Muito depois mesmo de seu filho ter sido feito ditador — devia estar perto da casa dos oitenta — sua mãe explicava com veemência:
— "Não, não foi expulso. Trouxe-o para casa por causa de sua saúde. Quando entrou para o seminário estava bem e forte. Mas estudou demais e o médico disse que podia entisicar. Foi por isso que o tirei de lá. Ele teria gostado de ficar, porém trouxe-o comigo. Era meu filho único; um bom menino; nunca precisei castigá-lo. Não; não foi expulso!"
Esta tocante mentira — que a Velha sem dúvida aceitava como pura verdade — não visava demonstrar sua parte na formação revolucionária do filho. Ela queria só defender a honra da família. Tão completamente desconhecem os parentes mais próximos a missão dum homem extraordinário.
Onde estamos nós, na Europa ou na Ásia? Esta pergunta já foi formulada pelos geógrafos da antiguidade, Heródoto e Estrabão, quando falaram do Cáucaso. Transpondo, de auto, uma alta montanha do Cáucaso fiquei sumamente encantado vendo num poste uma tabuleta com dois braços em que estava pintado em caracteres russos: "Para a Europa!" "Para a Ásia!". O ano era 1925; nosso automóvel viajava quase todo o tempo com interrupção, o radiador esquentava demais cada quinze minutos, o motor tinha que parar periodicamente para esfriar, enquanto o chofer mexia no interior com um pedaço de arame. Eu estava pronto a crer que estava na Ásia.
As montanhas em volta são sombrias e magníficas, apesar dos picos não se delinearem com a clareza e a articulação dos Alpes suíços. Aqui tudo é, em excesso, opressivo e selvagem. Stalin sem dúvida aprendeu, na escola, que foi na sua terra natal que Odisseu visitou os Trogloditas, ainda se podendo ver as cavernas onde habitavam perto de Tiflis. A lenda hebraica dá as montanhas do Cáucaso como o local onde encalhou a arca de Noé, enquanto que os gregos se referem a elas na epopéia dos Argonautas em que Jasão e seus companheiros procuraram o tosão de ouro. O jovem Stalin não pode ter ligado muito a qualquer delas. Mas, quando soube que Prometeu, na antiguidade, tinha sido acorrentado a uma dessas rochas, talvez tenha meditado tempo bastante sobre essa história para conjecturar se o semideus conseguira jamais desembaraçar-se das cadeias e escapar-se: porque desembaraçar-se de cadeias devia tornar-se uma preocupação importante desse muitas vezes capturado e recapturado revolucionário.
Sim, era Ásia, e é só como uma personagem asiática que Stalin pode ser compreendido. Tudo nesse jovem, que emergia lentamente, é asiático e ficará asiático para sempre: a paciente persistência, a existência silenciosa, a frieza. Aquilo que designamos como tipicamente georgiano, mas que é russo, é exatamente o contrário. Sabemos isso por numerosas novelas famosas, como também pela história e pela lenda. O caráter típico russo é fundamentalmente de um natural melhor, mais brando; é capaz de matar num momento de exaltação e chorar logo depois com remorsos. Lenine confessou a Gorki como sofreu quando teve que recorrer ao reinado do terror durante a guerra civil para salvar a Revolução. Podemos ter a certeza de que não chorou com os olhos e sim com o coração.
Contrastando com ele, Stalin, o georgiano e caucasiano, cujo torrão natal fica muito distante do poste indicador onde a estrada segue para o sul, está mais perto, no feitio mesmo dos seus olhos, do tipo mongol. Seu coração, provavelmente, não chorou quando mandou executar por alta traição seus mais antigos camaradas; sem dúvida dormiu bem à noite. Comparemos os ditadores. Stalin é quatro anos mais velho do que Mussolini e dez mais velho do que Hitler; tem um ano mais do que Trotsky e é nove anos mais moço do que Lenine.
Comparemos o retrato de Stalin aos vinte e dois anos com os dos outros dois ditadores na mesma idade e já se perceberá a diferença dos seus caracteres e mesmo uma previsão sobre seus respectivos futuros, talvez mais importante do que a variedade astrológica.
Antes dos vinte e um anos, Mussolini era pobre demais para se fazer fotografar; vingou-se disso, como um amigo me disse, tornando-se o homem mais fotografado do seu tempo. Mas retratos seus, como um jovem socialista e professor, mostram-nos um rosto iluminado de onde parece haver um espírito fogoso a contemplar o mundo. Não tinha ainda a cabeça de um imperador romano envelhecendo, nem nela se encontrava ainda qualquer traço do criminoso. Hitler, que nos é apresentado na mesma idade como um soldado de grandes bigodes, impressiona-nos como um histérico, pálido, indeciso, escrutador.
De Stalin, na idade de vinte e dois anos, temos dois retratos feitos na mesma ocasião; eles mostram-nos o homem. No de perfil, vemo-lo com uma barba de marinheiro, rala, solta, uma grande cabeleira, uma expressão meditativa e uma gravata mole de artista, de maneira a parecer um idealista que poderia escrever versos ou imaginar uma nova teoria filosófica. Mas, no retrato de frente, com o bigode preto, um casaco escuro, o semblante carregado, parece um conspirador. A linha de sua vida corre entre esses dois pólos extremos; seguiu um ideal, mas nunca recuou diante de qualquer ato para atingir a meta. Dos três ditadores, Stalin, com sua paciência e sua desconfiança, é, talvez, no fim das contas, o mais forte. Essa segunda fotografia não tem um paralelo com as de quaisquer líderes revolucionários de nosso tempo.
Tendo alcançado o poder mais lentamente do que qualquer dos outros, mantém-se mais firme nele. Acusar um homem desses de ambição é ignorar a psicologia dos fortes; porque, sem ambição, teríamos poucos grandes homens e estes só entre pensadores e artistas. Sem ambição, a vida ativa desapareceria completamente. Rivalidade e competição, o intenso desejo de ganhar o jogo é inato no homem, e só os sem esperança e puritanos são impelidos pelo chamado puro desejo objetivo de ajudar a pátria ou a humanidade.
Mas, ao passo que Mussolini e Hitler — e naturalmente nossos dois grandes líderes democratas também(1) — são impelidos pela idéia da fama, Stalin é completamente despido de emoções patéticas e não quer nada melhor do que a solidão para que possa moldar seu poder inteiramente de acordo com os seus planos. Nenhum desses homens pensa, sequer de leve, no dinheiro; mas Stalin não tem nem mesmo o menor pensamento para o que o rodeia. Sua sala no Kremlin, onde dentro em pouco introduzirei o leitor, parece o consultório de um médico. Todas as coisas necessárias a Hitler e a Mussolini para suas recepções e para quando aparecem em público são inteiramente alheias a Stalin como o eram a Lenine.
Quando este jovem asiático se entregou às perigosas e ingratas pequenas tarefas dos partidos ilegais — o socialista primeiro e o bolchevista depois — falava ainda um russo imperfeito; foi só muito depois, quando já passara dos quarenta anos, que aprendeu uma pronúncia mais ou menos correta. O fato de não ser russo deu um ímpeto especial às suas primeiras atividades. Napoleão, o corso, deu-se à França, o país que seus antepassados sempre odiaram e que ele, também, odiava na sua juventude, porque conquistara sua terra natal. Pilsudski, o meio lituano, deu-se à Polônia da mesma forma, como um austríaco oprimido, Hitler, que não faz outra coisa senão odiar, escolheu o odiado, porém admirado opressor, a Prússia, como a nação que governaria. Dessas conquistas nascem, como na luta do amor entre homens e mulheres, súbitas e inesperadas emoções de amor; então, o ditador vitorioso é como o feliz conquistador de uma mulher. Foi por isso que Napoleão depois amou a França; Pilsudski, Hitler e Stalin se tornaram filhos de suas pátrias adotivas quando se tornaram seus pais.
Mas, entre esses cinco homens, só o histérico Hitler é levado pela sua perversidade a desonrar e destruir seus próprios compatriotas, os austríacos, enquanto que os outros têm tido sempre uma atitude protetora para a terra onde nasceram. Stalin teve sempre, e frequentemente a manifestou, uma especial consideração para com a Geórgia. Mas, quando se tratou de assuntos políticos, esmagou impiedosamente a revolta de sua terra natal, em 1922 e 1924; foi mesmo censurado por isso por Lenine antes da morte deste.
Durante a década entre seus vigésimo e trigésimo anos de idade, Stalin, com o seu nome impronunciável, não era ainda Stalin, porém Sosso, Koba, e meia dúzia de outros nomes, porque ele e seus camaradas viviam sempre fugindo da polícia tzarista. A Ocrana, que tinha também diversos nomes, foi o protótipo da organização que Stalin formou mais tarde como a G. P. U. e o modelo para a Gestapo de Himmler. Os Tzares foram os verdadeiros descobridores do sistema, como a tortura refinada foi a descoberta do fanatismo da Idade Média.
É difícil reconstituir o primeiro período da vida de Stalin por documentos; um homem que leva essa espécie de existência queima sempre suas cartas, destrói os vestígios de reuniões e até apaga suas pegadas; de maneira que quase não se pode aplicar-lhe a advertência de Long-fellow para não deixarmos "pegadas nas areias do tempo." A propaganda política de Stalin nos últimos anos pouco material oferecia para falsificações concernentes aos seus primeiros anos. Tudo o que seus adversários querem provar é que até à Revolução, quando tinha trinta e oito anos, Stalin não despertara a mais leve atenção. Isto, porém, está inteiramente de acordo com o seu caráter, porque, mesmo se a esse tempo ele já sonhasse com uma grande carreira, fazia parte de sua natureza asiática esconder esses sonhos dos seus camaradas.
Aos vinte e três anos, foi preso pela primeira vez. Isso deu-se em Batum. Depois, veio a conhecer uma dúzia de prisões, enquanto Mussolini vagava onze vezes de prisão em prisão. Durante esta primeira experiência, Stalin procurou imediatamente pôr-se em contacto com outros presos políticos. Um deles descreve o incidente da seguinte maneira:
"Nossos primeiros esforços não tiveram êxito. Depois, soube que um meu compatriota entregava lenha na prisão. Ele e seu companheiro, um chofer chamado Mikh, concordaram em levar-me para o pátio da prisão como um trabalhador que empilhava a lenha. O passo seguinte era saber a que horas Stalin saia para exercício, de maneira que pudéssemos carregar nossa lenha ao mesmo tempo.
"Na entrada da prisão havia uma barraca de legumes de propriedade de um persa a quem era permitido entrar na prisão uma vez por dia para vender frutas aos presos. Por acaso descobri que ele tinha um irmão trabalhando na mesma fábrica que eu. Esse seu irmão tinha inclinações para o nosso lado. Por seu intermédio, conseguimos que o vendedor de legumes se informasse quando Stalin saía para o pátio e lhe desse um recado.
"Chegou o dia e empilhei a minha parte da lenha o mais devagar possível. Os presos andavam acima e abaixo no pátio e a guarda ficava no centro. De cada vez que Stalin passava por mim murmurava rapidamente algumas palavras: instruções para o trabalho de nossa organização. Assim continuamos o nosso trabalho mesmo com Stalin preso.
"Durante uma de minhas visitas ao pátio da prisão ele deixou cair um papel aos meus pés. Apanhei-o. Era um manifesto aos operários dos poços petrolíferos de Batum. Quando nossos trabalhadores leram o manifesto espantaram-se como Stalin conhecia bem sua vida e necessidades. Expôs o que se devia exigir para cada ramo de trabalho. Esse manifesto teve grande importância porque concorreu para unir os operários."
Uma coisa é certa: entre 1903 e 1913, Stalin, sob seus vários nomes, foi preso seis vezes pela polícia e seis vezes foi mandado para a Sibéria. Mas fugia invariavelmente. Certamente, um prisioneiro tzarista achava mais fácil desembaraçar-se das cadeias do que um Prometeu. A completa desagregação da máquina tzarista do Estado pode-se avaliar pelo fato de que, enquanto mantinha um dispendioso sistema de espionagem, detetives e negociadores, nunca pôde conservar presos os inimigos que capturava.
A imensa desordem que reinava na Rússia e que os bolchevistas vinham combatendo fazia vinte anos não era menos evidente na administração do império do que na alma dos seus súditos. Aquele era um povo que tinha pouco de dramático, mas muito de ditirâmbico na alma; daí ser seu drama fraco e sua coreografia soberba. Assim como a ferocidade e a ternura se encontram ao lado uma da outra na alma russa, vemos revolucionários condenados, enviados geração após geração para a Sibéria, muitas vezes tratados pelos seus guardas com grande bondade! O campo de concentração era completamente desconhecido sob os Tzares. A Sibéria é um vasto e belo país, muito frio no inverno e muito quente no verão. Embora muitos dos deportados fossem escritores, temos informes vívidos que contêm poucas queixas. Aos escritores parece não ter faltado nada, exceto o campo de suas atividades.
Stalin foi um daqueles que puderam, no exílio, pôr-se em dia com a leitura, o que na sua vida agitada de propagandista era impossível. Mais do que isso, gostando de caçar e pescar diariamente, pôde robustecer admiravelmente sua saúde na Sibéria. Stalin, que quase ficou tuberculoso na sua mocidade, curou-se dessa predisposição na Sibéria. O súbito e terrível vento gelado que varre as estepes, o Buran, como é chamado, apanhou-o uma vez quando atravessava um rio congelado. Lutou contra ele durante horas antes de alcançar a cabana de um camponês. Os moradores tomaram-no por um fantasma. Caiu na porta; levaram-no para dentro, e aqueceram-no; dormiu oito horas e desde então ficou livre do perigo da tuberculose.
Na Sibéria, Stalin também fez alguma coisa para completar sua educação, e nisto se parece com Mussolini, que me falou com grande satisfação na leitura que conseguira fazer nas suas onze prisões. Parece que o intento do Tzar de destruir seus inimigos redundava em melhorá-los física e intelectualmente. Stalin teve sua primeira real compreensão de Karl Marx, que tinha sido estudado pelos intelectuais russos por quase três gerações, na paz dos seus exílios na Sibéria. Nas crônicas dos revolucionários há descrições de cenas encantadoras: presos lendo o Kapital de Karl Marx para seus guardas cossacos, estes adormecendo entediados e aqueles conservando-se bem acordados.
Até à Revolução, os russos eram refratários à disciplina, e no decurso de sessenta anos perderam três guerras sucessivamente; no vagamente governado, informe, imenso império, havia uma espécie de escada por onde o ilegal subia de degrau em degrau até à legalidade. Por isso podia-se sempre encontrar revolucionários entre condes, aventureiros felizes entre os operários e engodadores prontos a traírem sua carne e seu sangue, em todas as classes.
As massas, que o jovem propagandista e seus colegas tinham de trabalhar, haviam sido atraídas em grande número para os poços petrolíferos de Bakú que se desenvolveram no fim do século passado, entre 1870 e 1880: no começo do século XX, centenas de milhares de operários, numa grande mistura de raças e religiões, já estavam concentrados ali. Vivendo nas suas miseráveis barracas de folhas de zinco e cabanas de colmo, eram um excelente material para o movimento socialista. Lá, Stalin passou aquela laboriosa e obscura terceira década de sua vida, voltando sempre e sempre da Sibéria para recomeçar o trabalho de unificação dos operários; uma interminável série de conferências, demonstrações, panfletos, avulsos, espalhando e esclarecendo a revolta.
Mas a metade da luta de Stalin, talvez mais da metade, não era dirigida contra o Tzar, mas contra outros partidos de operários. Desde muito jovem, ele se inteirara da guerra dentro de sua própria classe, o apaixonado antagonismo das seitas umas contra as outras. Toda sua vida — especialmente as épocas sombrias a que sacrificou uma parte do seu período construtivo — todo o desenvolvimento do seu caráter só pode ser compreendido tendo-se em vista essa contenda incessante com camaradas que tinham o mesmo objetivo, mas queriam reconstruir o Estado e a sociedade sobre outras bases.
Já em Bakú, mesmo antes da revolução de 1905, Stalin escreveu, falou, e agitou apaixonadamente contra os menchevistas, anarquistas e sociais revolucionários — todos os quais eram movimentos relacionados que o irritavam mais do que o Tzar. Na sua mocidade, sempre pertenceu à mais radical esquerda, não tardando a assumir a liderança no Cáucaso. Ilustrando suas atividades e a firme consistência de sua posição, que lhe granjeou a confiança dos operários, há este episódio relembrado por um dos participantes:
"A 17 de Outubro de 1905, o Tzar, amedrontado, publicou um manifesto prometendo liberdades democráticas e a convocação de uma assembléia legislativa. Os bolchevistas advertiram-nos de que o manifesto era uma cilada; os menchevistas saudaram-no e disseram que tínhamos ganho tudo. Numa das nossas reuniões, o Camarada Koba (nome de Stalin no Partido a esse tempo) disse: "Vocês têm um mau hábito; vamos ser francos a respeito. Não importa quem seja o orador, não importa o que ele diga, têm o mesmo bom acolhimento para todos e aplaudem tudo o que se diz. Quando o orador grita: "Viva a liberdade!" aplaudem; quando um outro grita; "Viva a revolução!" aplaudem. Mas, quando um orador lhes diz: "Abaixo as armas!" aplaudem também. Mas qual a revolução que pode triunfar sem armas, e que espécie de revolucionário é o que grita: "Abaixo as armas!"?
"Quem quer que ele possa ser, esse homem é um inimigo da Revolução... A reunião animou-se com estas palavras e Koba desceu da plataforma diante de uma multidão que o aclamava."
Por esse tempo, o próprio Stalin escreveu:
"Antes, o nosso Partido parecia uma família patriarcal hospitaleira e estava pronto para aceitar todos os simpatizantes no seu meio. Mas agora, que se tornou uma organização centralizada, desfez-se do aspecto patriarcal e passou, em todos os sentidos, a parecer uma fortaleza, cujas portas só se abrem para os dignos".
Notas:
(1) Refere-se provavelmente a Roosevelt e a Churchill. (retornar ao texto)
Inclusão | 28/04/2011 |