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Estávamos na Primavera de 75 e a chuva e o frio ainda se faziam sentir. Alguém nos tinha convidado a realizar uma digressão à zona de São Pedro do Sul. Nesse dia fomos parar a uma aldeia desconhecida, perdida num planalto. A professora recebeu-nos com frieza, moderada.
Montámos o cenário e vestimo-nos. Aos poucos, os miúdos e as miúdas foram chegando. À entrada era obrigatório descalçarem-se, “para não acarretarem lama para a sala”, justificou a professora, o que implicava um penetrante cheiro a chulé.
A hora de principiar o espectáculo, respirava-se uma atmosfera de grande mal-estar e de tensão. Através das janelas vislumbrava-se um ou outro homem de espingarda em riste, a “controlar” a situação. O mais presente e atrevido assomava-se por vezes a uma das janelas com a arma bem à mostra.
Nós procurávamos desbloquear a situação e estabelecer diálogos com os miúdos, que sistematicamente se fechavam em copas. A peça que íamos representar contava a história de um tal Migalhães, senhor de muitas migalhas, que não tinha no passado permitido que os velhos fossem à escola e que agora impedia que os jovens se realizassem. Ele era o dono de tudo e de todos e não estava disposto a abdicar dos seus privilégios. Era pois um cacique à maneira.
Estávamos acostumados a que, numa certa cena, os espectadores desatassem a chamar fascista ao Migalhães. Nós não o fazíamos abertamente, mas abríamos o jogo de forma que tal acontecia com aparente espontaneidade. É bom recordar que nessa época, nas zonas das grandes cidades, os miúdos haviam deixado de brincar aos polícias e ladrões e agora jogavam aos pides e copcons.
Devagar, a frieza inicial foi-se desvanecendo, o mau cheiro ignorado e o homem da espingarda continuava a vigiar a nossa actuação, agora já escancarado numa das janelas. Com o desempenho, os miúdos foram-se descontraindo e, no momento de apreciarem o comportamento do sr. Migalhães, chamaram-lhe comunista. O espectáculo terminou em delírio, com o coro acusatório de “comunista” audível a muitos metros em redor. No final de tudo, procurámos saber porque tinham considerado ser comunista o sr. Migalhães. E a resposta surgiu pronta: “porque queria tudo para ele e só pensava no dinheiro e nos lucros”.
O homem da espingarda continuava cá fora, vigilante, de cara fechada. Então, refeito da explicação dada, tomei a iniciativa de me dirigir ao nosso guardião e de lhe perguntar se andava a caçar perdizes. “Não, respondeu ele, “a época da caça às perdizes já terminou. Agora estamos é a caçar comunistas, que andam por estas bandas a raptar crianças”. Despedimo-nos e prometemos voltar.
★★★
“Faz de conta que agora estamos no paraíso. Antes ganhávamos 64$00 por dia e agora 125$00. Era uma exploração, chegávamos ao fim da semana e não tínhamos dinheiro para comprar as couves. Agora já temos carrinhas que nos levam até casa e nos vão buscar. Antes fazíamos todos os caminhos a pé, com os filhos atrás. O reumático, ao fim do dia, muitas vezes nem nos deixava quase pôr-nos direitas. O dinheiro que ganhamos agora, mais o do nosso homem, que também anda nos ranchos, já dá para deixarmos os filhos com alguém. Antes era a gente a trazê-los atrás, à chuva e ao frio. Ficavam por aí; quando a gente vinha para almoçar já eles nos tinham comido o comerzito todo, que era pouco o que podíamos trazer. Chorávamos”.
(Mulheres de um rancho trabalhando na Quinta de Alorna, em Almeirim, A Capital, 17/1/75).
Inclusão | 23/11/2018 |