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Para falar na minha participação no 25 de Abril, tenho de ir um bocado atrás. Em Coimbra, em 69, toda aquela malta que tinha tomado consciência com o processo das eleições começou a procurar outras coisas. Eu era católica e vinha da JUC, com outros. Metemo-nos na Associação, num curso de Economia Política. Às tantas, apercebi-me que havia ali dois grupos diferentes, um trotskista e outro maoísta, uns e outros a querer-me puxar. Fui para o grupo trotskista. Fazíamos formação a ler “O Capital” e a estudar; os outros eram do Grito do Povo, eram mais práticos, só queriam acção. Diziam que o que era preciso era ir para a fábrica.
Na altura não fui, mas ficou-me aquilo na cabeça. Vim para Lisboa e em Maio de 72 liguei-me a um grupo que trabalhava numa cooperativa cultural da Amadora, a Vis; fui para lá dar aulas aos operários. Aí também estava metida gente de várias tendências: pcs e maoístas de vários grupos. Todas as noites saía do emprego e ia para a Amadora, havia sempre actividades na cooperativa, reuniões, canto livre. Às vezes ajudava a distribuir o Grito do Povo nas escolas, cheguei a ir buscar os jornais ao Porto e a Aveiro; mas nunca aderi e esfriei com eles porque tinham a mania de se intitular promotores de todas as acções que havia. Acabei por me ligar a um dos grupos que estava metido na cooperativa, o Luta Comunista. Foi aí que me decidi mesmo a ir trabalhar para a fábrica. Vimos que o mais fácil para entrar era na indústria alimentar, pois os patrões não faziam perguntas nenhumas. Em Setembro de 73 fui para a Heller, na zona dos Cabos Ávila.
Entrávamos às sete da manhã, fazíamos nove horas por dia, mais os sábados, ganhava-se trinta a trinta e cinco escudos por dia, fora os descontos. Passava-se mesmo fome. Eu estava na embalagem, e como despachava bem o serviço fui aconselhada pelos camaradas do meu grupo a propor que ajudássemos as que produziam menos, para todas termos direito ao prémio de produção que a fábrica pagava. Não foi fácil e resultou pouco porque a maior parte das mulheres não queria saber de solidariedades. Viviam no bairro da Boavista, muitas eram mulheres de estivadores que só trabalhavam às vezes, eram elas que tinham que aguentar a casa e os filhos. Havia as que arranjavam esquemas com os chefes, havia de tudo. Tive crises de desânimo porque aquilo não condizia nada com a imagem que eu tinha da classe operária, toda consciente e revolucionária.
De qualquer modo, fizemos uma concentração que foi importante. Os patrões não queriam dar férias às que tinham entrado nesse ano. Como no sindicato não nos davam saída, resolvemos parar, cinquenta mulheres. Parámos o serviço e os tipos vieram mesmo falar connosco. Passados dois dias, reconheceram que tínhamos razão. Foi uma alegria, as colegas passavam por mim no serviço e faziam-me o V da vitória. A partir daí, corri as secções todas por castigo de ter sido “cabecilha”, mas nunca me sentia isolada.
No 25 de Abril, saí de casa às seis da manhã para ir para a fábrica. Na paragem do autocarro comecei a ouvir conversas esquisitas, uns diziam que andava a polícia contra o exército, outros que era o Tomás contra o Marcelo, uma confusão. Cheguei à fábrica, ninguém sabia ao certo o que era, começou-se a falar em sairmos todos do trabalho para ir saber. Aparece o patrão, que estivéssemos calmas, que não havia nada de grave e que não se podia abandonar o trabalho. Fomos almoçar e voltámos a pegar ao serviço, quando as fábricas da zona já estavam todas vazias. Mas as mulheres estavam com medo de perder o emprego e eu achei que não as devia abandonar. O que me custou a passar aquele dia!
No dia seguinte, claro, já não fui trabalhar. Fui para Coimbra, ver os pides saírem da sede. Estavam barricados lá dentro e não se rendiam, com o povo todo cá fora. Foram dos últimos a render-se. Passei lá a noite toda de sexta-feira. Na segunda-feira voltei para a fábrica. Já tudo falava à vontade e os do PC apareciam às claras. Decidimos ir ocupar o sindicato, que era em Alcântara. Juntou-se lá pessoal das indústrias alimentares, vindos de Leiria e de outros sítios. Desmascarou-se em comunicados os nomes dos “amarelos” que nos tinham andado a vender, na minha fábrica era a chefe de pessoal que fazia parte da direcção do sindicato.
A 10 de Maio fui para a rua. O patrão chamou-me e disse-me de caras: “Você vai-se embora por ser comunista”. Respondi-lhe que ele tinha era medo do momento histórico que se vivia em Portugal e vim-me embora. Meteram-me logo na organização da ORPC que se estava formar nessa altura. Eram reuniões atrás de reuniões, vinha de lá com a cabeça em fogo, queria fazer tudo. Ofereci-me para ir para a linha de Cascais alargar a organização: os núcleos dos vários grupos estavam a juntar-se. Em Carcavelos, ocupámos um prédio de gente rica que estava desabitado, foram para lá morar as pessoas que viviam num bairro de lata ali ao lado. Também ocupámos casas para sedes: Algés, Linda-a-Velha, Paço de Arcos, Carcavelos, Cascais... Os moradores diziam-nos quais eram as casas vazias e nós íamos lá ocupar.
Em Paço de Arcos, na Quinta do Mocho, criámos um núcleo forte de assalariados da Câmara de Oeiras, principalmente cantoneiros (eram os mais revoltados e mais activos). Isto deve ter sido desde o 28 de Setembro até princípios de 75. Foi quando se formaram mais Grupos de Vigilância Antifascista. Fazíamos comícios em colectividades, para esclarecimento e para angariar pessoas. Esta gente depois veio toda para a UDP.
Veio o 11 de Março e fui logo para a sede. Estava lá o João Pulido Valente a dizer: “É preciso limpar as sedes e preparar já a resistência”. Eu só dizia: “Resistência com quê, se não temos uma arma?”. Depois da manifestação ao Ralis, formou-se um grupo que foi dali atacar a casa do Spínola, partiram-lhe para lá uma data de coisas, tiraram livros e papéis. Ainda fiquei umas noites nos turnos que estavam de guarda à sede da UDP, no Campo de Santana.
Em Setembro, quando chegou a notícia de que o Franco tinha garrotado os seis antifascistas, fui para o consulado de Espanha na Avenida da Liberdade. Vi a malta a escalar a parede e a entrar pelas janelas. O Manuel Monteiro saltou para cima duma caixa da electricidade e pôs-se a discursar, estava tudo muito excitado. Fomos dali para a Praça de Espanha. Assisti a uma parte do assalto, mas entretanto chamaram-me e fui com um grupo pintar o comboio que saía para Espanha, em Santa Apolónia, “Franco assassino”, “Franco assassino”, por dentro e por fora, em letras garrafais. Enquanto uns pintavam, eu e outros tirámos um banco da estação e sentámo-nos na linha para o comboio não poder sair. Apareceu a polícia e como a gente não saía mesmo tiraram-nos à força, mas o comboio lá foi. Não sei se chegou assim a Espanha, todo pintado.
No 25 de Novembro, fomos para a porta do quartel de Oeiras, porque uns tipos da Lisnave disseram que iam distribuir armas para resistir ao golpe de direita. Estivemos lá até às três da manhã, até que nos vieram dizer que não havia nada para ninguém. Nos dois ou três dias seguintes foi um sofrimento terrível, meteu-se tudo em casa, não se sabia o que se estava a passar. Foi uma desilusão completa, caiu-nos em cima toda a esperança anterior.
Enquanto o movimento durou, andava sempre tão contente! Mesmo sabendo que aquilo ainda não era o que a gente queria, íamos sempre avançando, ganhando posições. Foi uma época que, quando hoje a recordo, me aparece como extraordinária. Foi um tempo diferente. Havia luta, por isso mesmo quando aparecia a tropa ou a polícia a gente não tinha medo.
★★★
“Nós, operários da A. Caetano, pedimos ao Ministério das Finanças o mais urgentemente possível uma peritagem à firma para descoberta de possíveis falcatruas e uma revista geral ao escritório da sua residência, à garagem onde tem documentos e se possível à casa dele em Francelos”.
(De uma entrevista ao jornal Combate, Outubro 1974)
Inclusão | 23/11/2018 |