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Apesar reviravolta que tinha começado cerca do fim de Julho na guarnição renovada de Petrogrado, no decorrer de Agosto, predominavam ainda os socialistas-revolucionários e os mencheviques. Certos efectivos militares continuavam impregnados de uma grande desconfiança em relação aos bolcheviques. O proletariado não tinha armas: a Guarda vermelha só tinha conservado alguns milhares de espingardas. A insurreição, nestas condições, teria podido terminar por uma cruel derrota, ainda se as massas, de novo voltassem aos bolcheviques.
A situação modificava-se constantemente no decorrer de Setembro. Após a revolta dos generais, os conciliadores perderam rapidamente o seu apoio na guarnição. À desconfiança em relação aos bolcheviques sucederam as simpatias, no pior dos casos uma neutralidade de expectativa. Mas a simpatia não era activa. A guarnição continuava, do ponto de vista político, extremamente pouco claro e, à moda dos mujiques, desconfiada: os bolcheviques não enganariam? Dariam efectivamente a paz e a terra? Lutar por tais tarefas sob a bandeira dos bolcheviques, a maioria dos soldados ainda não se dispunha a isso. E como na composição da guarnição restava uma minoria pouco mais ou menos irredutível, hostil aos bolcheviques (de cinco a seis mil junkeres, três regimentos de cossacos, um batalhão de blindados), a conclusão do conflito apresentava-se mesmo em Setembro como duvidosa. Ajudando, a marcha dos acontecimentos deu ainda uma lição de coisas na qual a sorte de Petrogrado encontrou-se indissoluvelmente ligada à sorte da revolução e dos bolcheviques.
O direito de dispor de contingentes de homens armados é o direito fundamental de um poder de Estado. O primeiro governo provisório, imposto ao povo pelo Comité executivo, tinha-se comprometido em não desarmar e nem evacuar de Petrogrado as tropas que tinham participado à insurreição de Fevereiro. Tal é o princípio formal de uma dualidade militar inseparável no fundo da dualidade de poderes. Os grandes terramotos políticos dos meses seguintes – demonstração de Abril, jornadas de Julho, preparação do motim korniloviano e a sua liquidação – concluíam inevitavelmente cada vez à questão de submeter a guarnição de Petrogrado. Mas os conflitos sobre esse terreno entre o governo e os conciliadores tinham, finalmente, um carácter familiar e se terminavam amigavelmente. Com a bolchevização da guarnição, o assunto tomava outro aspecto. Agora os próprios soldados lembravam o compromisso concluído em Março pelo governo ao Comité executivo central e violado traiçoeiramente pelas duas partes. A 8 de Setembro, a secção dos soldados do soviete reclama o regresso a Petrogrado dos regimentos expedidos para a frente no seguimento dos acontecimentos de Julho. Ora, os participantes da coligação questionavam-se como expulsar os outros regimentos.
Em grande número de cidades provinciais, a situação era pouco mais ou menos a mesma que na capital. No decorrer de Julho e Agosto, as guarnições locais sofreram a reforma patriótica; no decorrer do mês de Agosto e Setembro, as guarnições renovadas cederam à bolchevização. Era preciso recomeçar, isto é, renová-las. Preparando um golpe em Petrogrado, o governo começou pela província. Os motivos políticos eram cuidadosamente dissimulados sob motivos estratégicos. No 27 de Setembro, a assembleia unificada dos sovietes de Reval, da cidade e da fortaleza, sobre a questão da expulsão das tropas, decidiu: não admitir como possível um reagrupamento dos efectivos só com o consentimento prévio dos sovietes respectivos. Os dirigentes do soviete de Vladimir perguntaram a Moscovo se eles deviam se submeter à ordem de Kerensky ordenando a partida de toda a guarnição. O Burô regional moscovita dos bolcheviques constatou que «as ordens deste tipo tornam-se sistemáticas em relação às guarnições animadas de um espírito revolucionário». Antes de ceder todos os seus direitos, o governo provisório tentava utilizar o direito essencial de todo o regime – o de dispor das forças armadas.
A deslocação da guarnição de Petrogrado tornava-se de tal forma urgente que o próximo congresso dos sovietes devia, de uma maneira ou outra, levar a luta pela conquista do poder até à sua conclusão. A imprensa burguesa, governada pela Rietch dos cadetes, repetia cada dia que não se podia deixar aos bolcheviques a possibilidade «de escolher o seu momento para declarar a guerra civil». Isso significava: ataquemos nós próprios no melhor momento os próprios bolcheviques. A tentativa de modificação prévia das relações de força na guarnição decorria daí inevitavelmente. Os argumentos de ordem estratégica tinham um ar convincente após a queda de Riga e da perca das ilhas Monsund. O estado-maior do bairro enviou instruções ordenando mudanças dos efectivos de Petrogrado tendo em vista expedi-los para a frente. Ao mesmo tempo, a questão era, sobre a iniciativa dos conciliadores, levada à secção dos soldados. O plano dos adversários não era mau: após ter apresentado um ultimatum estratégico ao soviete, arrancar aos bolcheviques de um só golpe o apoio militar que eles tinham, ou então, em caso de resistência do soviete, provocar um conflito grave entre a guarnição de Petrogrado e a frente que necessitava de reforços e de revezamento.
Os dirigentes do Soviete, que se davam conta da armadilha preparada, tinham a intenção de apalpar primeiro o terreno antes de dar um passo irremediável. Recusar a execução de uma ordem só era possível com a condição de estar seguro que os motivos da recusa seriam exactamente compreendidos pela frente. No caso contrários, podia ser mais vantajoso efectuar, de acordo com as trincheiras, uma troca de contingentes da guarnição contra as tropas revolucionárias da frente que necessitavam repouso. É precisamente nesse espírito, como já se viu mais acima, que o soviete de Reval já se tinha pronunciado.
Os soldados abordavam a questão de uma maneira mais directa. Ir à frente agora, no fim de outono, resignar-se a uma nova campanha de inverno – não, essa ideia não lhes entrava na cabeça. A imprensa patriótica abriu imediatamente fogo sobre a guarnição: os regimentos de Petrogrado, que engordaram na ociosidade, traíam mais uma vez a frente. Os operários interpuseram-se a favor dos soldados. Os das fábricas de Potilov foram os primeiros a protestar contra a evacuação dos regimentos. A questão não deixava de estar na ordem do dia não somente nas casernas, mas também nas fábricas. Isso ligou mais estreitamente as duas secções do Soviete. Os regimentos apoiaram então com diligência particularmente a reivindicação do armamento dos operários.
Esforçando-se em aquecer o patriotismo das massas com a ameaça da perca de Petrogrado, os conciliadores introduziram, no dia 9 de Outubro, no soviete, a proposição de criar «um comité de defesa revolucionário», que teria como tarefa participar na defesa da capital com o concurso activo dos operários. Recusando tomar a responsabilidade «da pretensa estratégia do governo provisório, e, em particular, da evacuação das tropas de Petrogrado», o soviete, todavia, não se apressava em se pronunciar sobre a ordem, mas decidiu verificar os motivos e as razões. Os mencheviques tentaram protestar: não é admissível que se intrometam nas ordem dadas pelo comando para as suas operações. Mas, seis semanas antes, eles tinham dito o mesmo das ordens do conspirador Kornilov – e lembram-lhes disso. Para verificar se a evacuação dos regimentos era ditada por considerações militares ou políticas, acharam que tinham necessidade de um órgão competente. Para estupefacção dos conciliadores, os bolcheviques adoptaram a ideia de um «Comité de defesa»: precisamente era ele que deveria concentrar nas suas mãos todos os dados sobre a defesa da capital. Foi um passo importante. Ao arrancar uma arma perigosa das mãos do adversário, o soviete guardava para ele a possibilidade, segundo as circunstâncias, de voltar a decisão sobre o envio para a frente das tropas num sentido ou outro, mas, de qualquer forma, contra o governo e os conciliadores.
Os bolcheviques apoderaram-se naturalmente do projecto menchevique de um Comité militar que, nas suas próprias fileiras, tinham-se entendido mais de uma vez sobre a necessidade de formar um órgão soviético autorizado que dirigia a futura insurreição. Na Organização militar do partido elaboravam mesmo um projecto com esse objectivo. A dificuldade que, até então, não se podia ultrapassar, foi de combinar o órgão da insurreição com o soviete eleito e agindo abertamente, onde se encontravam aliás representantes dos partidos hostis. A iniciativa patriótica dos mencheviques veio a propósito facilitar a criação de um Estado-maior revolucionário, que logo tomou o nome de «Comité militar revolucionário» e tornou-se a principal alavanca da insurreição.
Dois anos depois dos acontecimentos relatados aqui, o autor desse livro, num artigo consagrado à insurreição de Outubro, escrevia: «Logo que a ordem de evacuar os efectivos foi transmitido do estado-maior de bairro ao Comité executivo do Soviete de Petrogrado. Tornou-se claro que esta questão, no seu desenvolvimento ulterior, podia tomar importancia política decisiva. «A ideia da insurreição começou logo a tomar corpo. Não havia necessidade de se inventar mais um órgão soviético. O destino efectivo do futuro Comité foi sublinhado de forma inequívoca pelo facto que a relação sobre a saída dos bolcheviques do pré-parlamento terminou, por Trotsky, na mesma sessão, com esta exclamação: «Viva a luta directa e aberta pelo poder revolucionário no país!» Era traduzir na linguagem da legalidade soviética a palavra de ordem: «Viva a insurreição armada!».
Mesmo no dia seguinte, a 10, o Comité central dos bolcheviques adoptou em sessão secreta a moção de Lenine, fazendo da insurreição armada a tarefa prática dos próximos dias. O partido adoptava desde então uma posição de combate clara e imperativa. O comité de defesa inseria-se na perspectiva da luta imediata pela conquista do poder.
O governo e os seus aliados rodeavam a guarnição com círculos concêntricos. No dia 11, o general Tcheremissov, comandante da frente Norte, comunicou ao ministro da Guerra uma reclamação dos comités do exército, exigindo a substituição dos efectivos cansados da frente pelos da retaguarda, os de Piter. O estado-maior da frente não era, nesse caso, senão uma instância de transmissão entre os conciliadores do exército e seus dirigentes de Petrogrado que se esforçavam em criar um extenso disfarce para os planos de Kerensky. A imprensa da coligação acompanhava a operação de cerco por uma sinfonia de patriotismo enraivecido. As reuniões diárias de regimentos e de fábricas provavam, todavia, que a música dos dirigentes não produzia sobre a base a menor impressão. No dia 12, a assembleia geral dos operários de uma das mais revolucionárias fábricas da capital (Stary-Parvyeinen) respondeu aos ataques incessantes da imprensa burguesia: «Nós afirmamos com firmeza que manifestaremos na rua quando julgarmos indispensável. Não temos medo da luta que se anuncia em breve e acreditamos firmemente que sairemos vencedores.»
Criando uma comissão para elaborar os estatutos do «Comité de defesa», o Comité executivo de Petrogrado fixou ao futuro órgão militar as tarefas seguintes: ligar-se com a frente Norte e com o Estado-maior do bairro de Petrogrado, com a organização central do Báltico (Tsentrobalt) e o soviete regional da Finlândia para elucidar a situação de guerra e tomar as medidas indispensáveis; fazer o recenseamento do pessoal da guarnição de Petrogrado e arredores, assim como o inventário das munições e do abastecimento; tomar medidas para manter a disciplina nas massas dos soldados e dos operários. As formas eram muito gerais e, ao mesmo tempo, equívocas: elas estavam quase todas nos limites entre a defesa da capital e a insurreição armada. Todavia, esses dois problemas, que se excluíam até então um ao outro, aproximavam-se agora de facto: tendo tomado o poder, o soviete deverá encarregar-se também da defesa militar de Petrogrado. O elemento de disfarce da defesa não era de forma a introduzir pela força exterior, mas procedia até um certo grau das condições de véspera de insurreição.
Com o objectivo de proceder aos mesmos disfarces, colocaram à cabeça da comissão encarregada de elaborar os estatutos do Comité um socialista-revolucionário em vez de um bolchevique, um jovem e modesto funcionário da intendência, Lasimir, um desses socialistas-revolucionários de esquerda que, antes da insurreição, marchavam completamente com os bolcheviques, sem prever, na verdade, onde isso lhes levaria. O projecto primitivo de Lasimir foi submetido à redacção de Trotsky em dois sentidos: as tarefas práticas da conquista da guarnição foram precisadas, o objectivo geral revolucionário foi ainda mais esbatido. Aprovado pelo Comité executivo, apesar dos protestos de dois mencheviques, o projecto introduzia no Comité militar revolucionário os escritórios do soviete e da secção dos soldados, da frota, do Comité regional da Finlândia, do sindicato dos ferroviários, dos comités de fábrica, dos sindicatos em geral, das organizações militares do partido, da Guarda vermelha, etc. A base organizativa era a mesma em muitos outros casos. Mas a composição do Comité era pré-determinada pelas suas novas tarefas. Supunha-se que as organizações enviariam representantes competentes nos assuntos militares ou familiarizados com a guarnição. A função devia determinar o órgão.
Não menos importante foi outra nova formação; junto do Comité militar revolucionário, criaram uma Conferência permanente da guarnição. A secção dos soldados representava a guarnição do ponto de vista político: os deputados foram eleitos sob as bandeiras dos partidos. Mas a Conferência da guarnição devia compor-se de comités de regimentos que, dirigindo a vida diária das tropas, eram a sua representação «corporativa», prática, a mais imediata. A analogia entre os comités de regimento e os de fábrica impunha-se por ela própria. Por intermediário da secção operária do soviete, os bolcheviques podiam apoiar-se com segurança, nas grandes questões políticas, sobre os operários. Mas, para se tornarem mestres nas fábricas era indispensável arrastar os comités de fábrica. Pela sua composição, a Secção dos soldados garantia aos bolcheviques as simpatias políticas da maioria da guarnição. Todavia, para dispor praticamente das tropas, era preciso apoiar-se directamente sobre os comités de regimento. Assim se explica como, no período que precedeu a insurreição, a conferência da guarnição tomou um lugar de primeiro plano, retrogradando naturalmente a Secção dos soldados. Os delegados que mais se destacavam na Secção faziam aliás parte da Conferência.
Num artigo escrito poucos dias antes, A crise amadureceu, Lenine advertia:
«Que fez o partido para estudar as posições das tropas? etc.»
Apesar do trabalho cheio de abnegação da Organização militar, as queixas de Lenine eram justas. O estudo, de um ponto de vista puramente militar, das forças e dos meios conseguia dificilmente ter êxito no partido: não havia o hábito, não se sabia como fazer. A situação se modificou de uma vez a partir do momento que surgiu a Conferência da guarnição: desde então, sob os olhos dos dirigentes decorreu, cada dia, o panorama das guarnições, não somente da capital, mas também nos arrabaldes militares.
No dia 12, o Comité executivo examinou as disposições elaboradas pela comissão de Lasimir. À porta fechada, os debates terão, em grande medida, um carácter equívoco: «Diziam uma coisa e ouvia-se outra», escreveu com razão Sokhanov. As disposições tomadas previam junto do Comité das secções da defesa, do abastecimento, da ligação, da informação, etc.: era um estado-maior ou um contra-estado-maior. O fim confesso da Conferência era de saber quais eram as capacidades combativas da guarnição. Não havia aí nada de falso. Mas a capacidade combativa podia ser aplicada de forma diversa. Os mencheviques, com uma indignação impotente, constatavam que a ideia lançada por eles com fins patrióticos, se transformava em disfarce de insurreição que se preparava. A dissimulação era menos que impenetrável: toda a gente compreendia o que se passava; mas, ao mesmo tempo, ela continuava insuperável: era exactamente assim, com efeito, que tinham agido antes os próprios conciliadores, agrupando à volta deles, nos momentos críticos, a guarnição e criando os órgãos de poder paralelo aos órgãos governamentais. Os bolcheviques pareciam continuar somente as tradições da dualidade de poderes. Mas, nos velhos moldes, eles davam-lhe um novo conteúdo. O que tinha servido antes à conciliação servia agora à guerra civil. Os mencheviques exigiram que se inscrevesse no processo-verbal que eles se opunham ao empreendimento no seu conjunto. Tiveram conta deste pedido platónico.
No dia seguinte, na secção dos soldados, que muito recentemente ainda constituía a Guarda dos conciliadores, debatia-se a questão do Comité militar revolucionário e da Conferência da guarnição. O lugar principal nesta sessão extremamente notável foi ocupada pelo presidente do Tsentrobalt o marinheiro Dybenko, um gigante de barba negra que não tinha papas na língua. O discurso do convidado de Helsingfors passou como uma corrente de ar marítimo, fresco e picante, na atmosfera pesada da guarnição. Dybenko falou da ruptura definitiva da frota com o governo e das novas relações com o comando. Antes de iniciar as últimas operações navais, o almirante tinha pedido ao Congresso dos marinheiros que tinha lugar nesses dias, se eles executariam as ordens de combate. «Nós respondemos: executaremos, sob a condição que haja um controlo da nossa parte. Mas… se nós vemos que a frota está em perigo de se perder, o almirante será o primeiro enforcado na grande verga.» Para a guarnição de Petrogrado era uma nova linguagem. Era aliás adaptada na frota somente há alguns dias. Era uma linguagem da insurreição. O pequeno grupo dos mencheviques, estupefacto, resmungava no seu canto. O Burô considerava ansioso a massa compacta dos capotes cinzentos. Nem uma só voz de protesto nas suas fileiras! Os olhos queimam nos rostos exaltados. Um espírito de coragem plana sobre a assembleia.
Em conclusão, Dybenko, aquecido pelo assentimento geral, declarou com firmeza:
«Fala-se da necessidade de encaminhar a guarnição de Petrogrado pela defesa dos proximidades da capital e, em parte, de Reval. Não acreditem nisso. Nós próprios defenderemos Reval. Fiquem aqui e defendam os interesses da revolução… Quando necessitarmos do vosso apoio, nós próprios diremos e estou certo que vocês nos apoiarão».
Este apelo, que era feito para entrar na cabeça dos soldados, levantou uma tempestade de verdadeiro entusiasmo na qual se afogaram definitivamente os protestos de alguns mencheviques. A questão da evacuação das tropas podia desde então ser considerada como resolvida.
O projecto de disposições apresentada por Lasimir foi adoptado por uma maioria de duzentos e oitenta e três votos contra um, com vinte abstenções… Esses números, inesperados para os próprios bolcheviques, davam a medida do progresso da pressão revolucionária das massas. O voto significava que a secção dos soldados transmitia abertamente e oficialmente a direcção da guarnição, retirada ao estado-maior governamental, às mãos do Comité revolucionário. Logo devia ser provado que não era uma simples demonstração.
Nesse mesmo dia, o Comité executivo dos sovietes de Petrogrado publicou uma informação anunciando a criação a seu lado de uma secção especial da Guarda vermelha. O assunto do armamento dos operários que, sob os conciliadores, foi derrotada, e tornou-se alvo de uma perseguição, apresentou-se como um dos problemas mais importantes do soviete bolchevista. A atitude desconfiada dos soldados em relação à Guarda vermelha foi desde há muito esquecida. Pelo contrários, em quase todas as resoluções dos regimentos, reclamaram o armamento dos operários. A Guarda vermelha e a guarnição alinham-se desde então conjuntamente. Logo elas estarão ainda mais ligadas pela sua subordinação comum ao Comité militar revolucionário.
O governo inquietou-se. Na manhã do dia 14 teve lugar, em casa de Kerensky, uma conferência dos ministros no decurso da qual foram aprovadas as medidas tomadas pelo estado-maior contra «a manifestação» que se preparava. Os mestres do poder conjecturavam: desta vez, o assunto se limitaria a uma manifestação armada ou tornar-se-ia uma insurreição? O comandante do distrito militar declarava aos representantes da imprensa: «Em todos os casos, estamos prontos.» Os condenados sentem frequentemente um afluxo de forças na véspera da sua execução.
Na sessão unificada dos Comités executivos, Dan, retomando as entoações que tinha tido em Junho Tseretelli, que se tinha refugiado no Cáucaso, exigia dos bolcheviques uma resposta a esta questão: teriam eles ideia de marchar e, se tinham, quando? Da resposta de Riazanov, o menchevique Bogdanov deduziu, não desprovida de fundamento, que os bolcheviques preparavam a insurreição e seriam à cabeça dos insurrectos. O jornal dos mencheviques escrevia: «É evidente sobre a não evacuação da guarnição que são baseados os cálculos dos bolcheviques para a próxima tomada do poder.» Mas a tomada do poder era aqui colocada entre aspas: os conciliadores não acreditavam ainda seriamente sobre o perigo. Eles apreendiam menos a vitória dos bolcheviques que o triunfo da contra-revolução em resultado dos novos afrontamentos da guerra civil.
Tendo-se encarregado de armar os operários, o soviete devia abrir o caminha para os depósitos de armas. Isso não se fez de uma só vez. Cada diligência prática em frente tinha sido aqui ainda sugerida pela massa. Era preciso somente considerar atentamente as suas proposições. Quatro anos após os acontecimentos, Trotsky contava numa noite dedicada às lembranças sobre a Revolução de Outubro: «Quando surge uma delegação dos operários para nos dizer que nós precisávamos de armas, eu respondi: «Mas o arsenal não está entre as nossas mãos.» Eles replicavam: «Fomos à fábrica de armas de Sestroretsk.» - «Bem, e então?«: «Lá nos disseram-nos: se o soviete ordena, nós vos daremos isso.» «Dei ordem de entregar cinco mil espingardas, e os operários receberam-nas no mesmo dia. Era uma primeira experiência.» A imprensa do inimigo gritou imediatamente, a propósito da entrega das armas por uma fábrica do Estado, por ordem de um indivíduo que foi acusado de alta traição e libertado sob caução. O governo calou-se. Mas então entrou em cena o órgão supremo da democracia, lançando uma ordem severa: não entregar armas a ninguém sem a autorização do Comité executivo central. Parecia que, na questão da entrega de armas, Dan ou então Gotz eram pouco qualificados para proibir, como Trotsky para autorizar ou ordenar: as fábricas e os arsenais eram da responsabilidade do governo. Mas o desdém em relação aos poderes oficiais no momentos importantes constituiu a tradição do Comité executivo central e estava fortemente consolidado nos hábitos do próprio governo, porque isso respondia a natureza das coisas. A infracção cometida em relação aos usos e costumes veio portanto de um outro lado: tendo deixado de distinguir entre os trovões do Comité executivo central e os relâmpagos de Kerensky, os operários e os soldados não se lembravam nem duns nem dos outros.
Era mais cómodo exigir a evacuação dos regimentos de Petrogrado em nome da frente, do que em nome dos gabinetes da retaguarda. Partindo dessas considerações, Kerensky subornou a guarnição de Petrogrado ao comandante chefe da frente Norte, Tcheremissov. Desistindo do ponto de vista militar da sua autoridade sobre a capital, como chefe do governo, Kerensky lisonjeava-se de submetê-la melhor como generalíssimo. Pelo seu lado, o general Tcheremissov, que deveria assumir uma pesada tarefa, procurava a ajuda dos comissários e membros dos comités. Diante de tais esforços, elaboraram o plano das próximas operações. Para o dia 17, o estado-maior da frente, conjuntamente com as organizações do exército, convocou, em Pskov, os representantes do Soviete de Petrogrado para lhes dizer, diante das trincheiras, a sua vontade.
Não restou ao soviete de Petrogrado nada senão aceitar o desafio. A delegação de algumas dezenas de homens, pouco mais ou menos metade dos membros do Soviete, metade representantes dos regimentos, constituida no decurso da sessão do 16, tinha à cabeça: o presidente da secção operária Federov e os dirigentes da secção dos soldados e a Organização militar dos bolcheviques, Lachevitch, Sadovsky, Mekhonochine, Dachkevitch e outros. Um certo número de socialistas-revolucionários de esquerda e de mencheviques internacionalistas, incluidos na delegação, tinham-se comprometido em defender em Pskov a política do soviete. Em conferência da delegação, antes da partida, adaptaram um projecto de declaração preparado por Sverdlov.
No decurso da mesma sessão do soviete, houve um debate sobre o estatuto do Comité militar revolucionário. Apenas formada, esta instituição tomava, cada vez mais, aos olhos dos adversários, uma aparência cada vez mais detestável. «Os bolcheviques não deram resposta – exclamou um orador da oposição – a esta questão directa: preparam um levantamento? É cobardia ou um sinal de firmeza das suas próprias forças.» Na assembleia rebenta a risada unanime: o representante do partido do governo pede que o partido da insurreição abra o seu coração. «O novo Comité, continua o orador, não é outra coisa senão um «estado-maior revolucionário para a tomada do poder». Eles, mencheviques, não entrarão aí.» Quantos vocês são?» Gritam-lhes na sala. No soviete, os mencheviques são, na verdade, pouco numerosos, no máximo cinquenta, mas eles sabem seguramente que «as massas não aprovam de forma nenhuma o levantamento». Na sua réplica, Trotsky não nega que os bolcheviques dispõem-se a tomar o poder: «Não fazemos disso um segredo.» Mas, pelo momento, não se trata disso. O governo formulou a exigência da evacuação das tropas revolucionárias de Petrogrado, «e nós responderemos sim ou não». O projecto de Lasimir é adoptado por uma esmagadora maioria de votos. O presidente convida o Comité militar revolucionário a meter-se ao trabalho logo no dia seguinte. Assim, um passo foi assim dado.
O comandante do distrito militar, Polkovnikov, faz um novo relatório ao governo, nesse dia, sobre o levantamento preparado pelos bolcheviques. O relatório redigido com um tom corajoso: a guarnição no conjunto está ao lado do governo, as escolas dos junkers receberam ordem para estarem prontos. Num manifesto à população, Polkovnikov prometia aplicar, em caso de necessidade, «as medidas mais rigorosas». O presidente da câmara municipal, Schreider, socialista-revolucionário, suplicava, pelo seu lado, «para que não se façam desordens, riscando provocar certamente a fome na capital». Ameaçando e conjurando, fanfarronando e assustando, a imprensa alarmava-se.
Para agir sobre as imaginações dos delegados do soviete de Petrogrado em Pskov, prepararam uma recepção militar de tipo teatral. No local do Estado-maior, à volta das mesas de grandes mapas, sentaram-se os senhores generais, os altos-comissários, com Voitinsky à cabeça, e os representantes dos comités do exército. Os chefes das secções do estado-maior leram os relatórios sobre a situação das forças armadas sobre terra e mar. As conclusões dos relatores concordavam num ponto: é indispensável avançar imediatamente a guarnição de Petrogrado para defender as imediações da capital. Os comissários e os membros de comités afastavam com indignação as desconfianças sobre uma política de corredor: toda a operação era ditada pela necessidade estratégica. Os delegados não tinham provas directas do contrários: em tais assuntos, as provas não andam pelas ruas. Mas toda a situação desmentia os argumentos de estratégia. Não eram homens que faziam falta à frente, mas os homens não queriam combater mais. O estado de espírito da guarnição de Petrogrado não estava de forma nenhuma disposta a consolidar a frente quebrada. Além disso, as lições dos dias kornilovianos ainda estavam frescas nas memórias de todos. Profundamente convencida de ter razão, a delegação manteve facilmente frente ao ataque do Estado-maior e voltou a Petrogrado mais unanime que no momento quando tinha partido.
As provas formais que faltavam então aos participantes, os historiador têm-as agora à sua disposição. A correspondência militar secreta demonstra que não era a frente que reclamava os regimentos de Petrogrado, que era Kerensky que as impunha à frente. A um telegrama do ministro da Guerra, o comandante em chefe da frente Norte respondia: «secreto, 17, X. A iniciativa de envio de tropas da guarnição de Petrogrado para a frente veio de você e não de mim… Quando foi claro que os contingentes da guarnição de Petrogrado não queriam ir para a frente, quer dizer que eles não estavam em condições de combater, eu, num entrevista particular com o vosso representante, um oficial, disse que… nós tínhamos já bastantes contingentes iguais na frente; mas, visto o seu desejo de os expedir para a frente, não recusei e não recuso de os receber se você continua em pensar indispensável que eles evacuem Petrogrado.» O tom do telegrama, que é meio polémico, explica-se pelo facto que Tcheremissov, general tendente à alta política, que era considerado no exército czarista como «um vermelho» e que tornou-se mais tarde, segundo a expressão de Miliokov, «o favorito da democracia revolucionária», tinha chegado, visivelmente, a esta conclusão que seria melhor se afastar a tempo do governo no seu conflito com os bolcheviques. A conduta de Tcheremissov durante os dias da insurreição confirma completamente este esclarecimento.
A luta pela guarnição se complicava-se com outra, a luta pelo Congresso dos sovietes. Até à data anteriormente fixada, só restava quatro ou cinco dias. O «levantamento» foi esperado por ocasião do Congresso. Supunha-se que, como durante as jornadas de Julho, o movimento devia desenvolver-se segundo o tipo de uma manifestação armada de massas com combates de rua. O menchevique de direita Potressov, apoiando-se inverosimilhante sobre as informações da contra-espionagem ou da missão militar francesa, que fabricava ousadamente falsos, expunha na imprensa burguesa o plano do levantamento bolchevique que devia ter lugar na noite do 16 ao 17 de Outubro. Os inventivos autores do plano não esqueceram de prever que os bolcheviques arrastariam com eles «elementos do crime organizado». Os soldados dos regimentos da Guarda sabem rir como os deus de Homero. As próprias colunas brancas e os lustros do Instituto Smirnov pareciam agitar-se sob as gargalhadas que rebentavam quando se leu o artigo de Potressov em sessão do soviete. Mas o douto governo, que não sabia ver o que se passava sob os seus olhos, assustou-se seriamente pelo falso absurdo e se reuniu de urgência, às duas horas da manhã, para afastar «os elementos do crime organizado». Após novas consultas de Kerensky com as autoridades militares, as medidas indispensáveis foram tomadas: reforçaram a guarda do palácio de Inverno e do Banco de Estado; chamaram duas escolas de tenentes de Oranienbaum e mesmo um comboio blindado da frente romena. «No última hora, os bolcheviques – segundo Miliokov – contramandavam seus preparativos. Porquê eles agiram assim, não é muito claro.» Alguns anos após os acontecimentos, o douto historiador preferia acreditar ainda a uma invenção que se desmentia por ela própria.
As autoridades encarregaram a milícia de explorar as redondezas da cidade para encontrar traços dos preparativos do levantamento. Os relatos da milícia apresentaram uma combinação de observações vivas com estupidez policial. No bairro de Alexandre Nevsky, onde se encontra as grandes fábricas, os observadores constataram uma calma completa. No distrito de Vyborg, a necessidade de derrubar o governo era abertamente proclamada, mas «exteriormente reinava a calma». No distrito de Vassili Ostrov, havia exaltação, mas, também aí, não se observava qualquer sinal exterior de um levantamento próximo». No bairro de Narva, uma propaganda intensa era feita pelo levantamento; mas não se podia obter de ninguém uma resposta a esta questão: quando precisamente? Ou então o dia e a hora estavam guardadas a sete chaves, ou ninguém sabia de nada. Decidiram reforçar as patrulhas às portas dos bairros, os comissários da milícia deverão mais frequentemente inspectar os postos.
O relato do correspondente de um jornal liberal moscovita completa bastante bem o relatório da milícia: «Nos bairros, nas fábricas de Petrogrado, Nevsky, Obokhov e Potilov, a agitação bolchevique pelo levantamento atinge o ponto culminante. O estado de espírito dos operários é tal que eles estão prontos a meterem-se a caminho a qualquer momento. Nesses últimos dias, em Petrogrado, observou-se um fluxo de desertores nunca visto antes… Na gare de Varsóvia, está cheia de soldados de aspecto duvidoso, de olhos inflamados, com ares excitados… Há informações sobre a chegada a Petrogrado de verdadeiros bandos de malfeitores que pressentem a ocasião de dar um bom golpe. O banditismo organiza-se, as casas de chá e as tascas estão cheias deles…». Os terrores da pequena burguesia e os boatos de polícia ligam-se aqui à crua realidade, aproximando da conclusão, a crise revolucionária atingia os abismos sociais até ao fundo. E os desertores, e os bandos de ladrões tinham-se efectivamente revoltado ao trovar do sismo que se aproximava. As cimeiras da sociedade consideravam com um terror físico as forças enfurecidas do seu regime, seus vícios e suas úlceras. A revolução não os tinha criado, ela somente tinha-as mostrado.
Nesses dias, em Dvinsk, no Estado-maior do corpo do exército, o barão Budbersg, que nós já conhecemos, reaccionário detestável, provido de capacidade de observação e de uma original perspicácia, escrevia: «Os cadetes, os cadetóides, os outubristas e os revolucionários de toda a especie, das antigas formações e das de Março, sentem aproximar-se o seu fim e vaticinam tanto quanto podem, lembrando os muçulmanos que tentam impedir uma eclipse da lua com matracas.
No dia 18, pela primeira vez, foi convocada a Conferência da guarnição. Um telegrama enviado aos efectivos convidava os homens a se absterem de cometer actos irreflectidos e só executar as decisões do Estado-maior que teria sido contra-assinadas pela secção dos soldados. O soviete tentava assim resolutamente tomar abertamente o controlo da guarnição. O telegrama não era outra coisa senão um apelo ao derrube das autoridades existentes. Mas podia-se, se se quisesse, interpretá-lo como um acto pacífico de substituição dos bolcheviques ao conciliadores no mecanismo de dualidade de poder. Praticamente, isso significava a mesma coisa, mas uma interpretação mais suave dava lugar às ilusões. O burô do Comité executivo central, que se considerava como o mestre de Smolny, tentou suspender a expedição do telegrama. Assim ele consegui somente, ainda uma vez, ele próprio a comprometer-se. A assembleia dos representantes dos comités de regimento e de companhia de Petrogrado e dos arredores teve lugar na hora marcada e foi extremamente numerosa.
Graças à atmosfera criada pelos adversários, os relatórios dos participantes na Conferência da guarnição concentraram-se eles próprios sobre a questão do próximo «levantamento». Houve um memorável recenseamento que os dirigentes não teriam ousado fazer de sua própria iniciativa. Contra o levantamento pronunciaram-se: a escola dos tenentes de Peterhof e o 9º regimento de cavalaria. Os esquadrões de marcha da cavalaria da Guarda inclinaram-se para a neutralidade. A escola dos tenentes de Oranienbaum submeter-se-ia à decisão do Comité executivo central. Mas a isso se limitaram as declarações hostis ou neutras. Declararam-se prontos a marchar à primeira chamada do soviete de Petrogrado: os regimentos Eguersky (caçadores), moscovita, volyniano, Pavlovsky, Keksholmsky, Semenovsky, Ismailovsky, o 1º de atiradores e o 3º de reserva, o 2º das tripulações do Báltico, o batalhão de engenharia (electricistas), a divisão de artilharia da Guarda. O regimento dos Granadeiros só sairá à chamada do Congresso dos sovietes: isso basta. Efectivos menos importantes seguem a maioria. Os representantes do Comité executivo central que considerava ainda recentemente, e com razão, como a fonte da sua força a guarnição de Petrogrado, viram desta vez recusar quase unanimemente a palavra. Num estado de irritação impotente, eles abandonaram a assembleia « desprovida de poderes jurídicos» que, por proposição do presidente, confirmou imediatamente isto: nenhuma ordem não é válida sem a assinatura do Soviete.
O que estava preparado pela consciência da guarnição no decurso dos últimos meses, sobretudo nas últimas semanas, se cristalizava agora. O governo encontrava-se mais incompetente do que se pensava. Enquanto que na véspera corriam na cidade bastantes rumores sobre o levantamento e os combates sangrentos, a Conferência dos comités de regimento, onde se manifestou a preponderancia esmagadora dos bolcheviques, tornou no fim de contas inúteis as manifestações e os combates de massas. A guarnição marchava com segurança para a insurreição, considerando-a não como um levantamento, mas como a realização do direito incontestável dos sovietes em dispor do destino do país. Nesse movimento, havia uma força irresistível, mas, ao mesmo tempo, a lentidão. O partido necessitava de coordenar correctamente os seus actos com as diligencias política dos regimentos cuja maioria esperava um apelo do lado do Soviete, e alguns do lado do Congresso dos sovietes.
Para afastar o perigo de uma perturbação mesmo temporária no desenvolvimento da ofensiva, era necessários responder à questão que agitava não somente os inimigos, mas mesmos os amigos: o levantamento iria dar-se efectivamente hoje ou amanhã? Em trólei, na rua, nas boutiques, só se falava do próximo levantamento. Na praça do Palácio, diante do palácio de Inverno e diante do estado-maior, longas filas de oficiais propõem ao governo seus serviços e recebem em troca revólveres: no momento de perigo, nem os revólveres nem os seus possuidores se mostram. Os editoriais de todos os diários do dia são consagrados à questão do levantamento. Gorki exige dos bolcheviques, se eles não são «o brinquedo sem defesa da multidão de selvagens», que eles desmintam os rumores. A ansiedade diante do desconhecido penetrou também nos bairros populares, e sobretudo nos regimentos. Aí, começavam a acreditar que o levantamento se preparava sem eles. Por quem? Porquê Smolny se calava? A posição contraditória do soviete, como parlamento aberto e estado-maior revolucionário, criava, no último momento, grandes dificuldades. Tornava-se impossível calar-se mais tempo.
«Desde alguns dias – disse Trotsky no fim da sessão da noite do soviete – a imprensa é cheia de informações, de ruidos, de artigos sobre o próximo levantamento… As resoluções do soviete de Petrogrado são dados ao conhecimento de todos. O soviete é uma instituição electiva e… não pode tomar resoluções que não seriam conhecidas dos operários e dos soldados. Declaro, em nome do Soviete: nenhuma manifestação armada não foi macada por nós. Mas se o Soviete, segundo a marcha das coisas, foi forçado a apelar a uma manifestação, os operários e os soldados marchariam sob sinal dele como um só homem… Diz-se que assinei a ordem de entregar cinco mil espingardas… Sim, assinei… O Soviete continuará a organizar e a armar a Guarda operária.» Os delegados compreendiam: a batalha está próxima, mas, sem eles, fora deles, o sinal não será dado.
Todavia, independentemente das explicações tranquilizadoras, as massas necessitam de uma clara perspectiva revolucionária. O relator liga entre elas duas questões: a evacuação da guarnição e o próximo Congresso dos sovietes. «Temos com o governo um conflito que pode tomar um carácter extremamente grave… Não permitiremos…, que se enfraqueça Petrogrado da sua sua guarnição revolucionária.» Esse conflito está subordinado, aliás, a outro que se anuncia.» A burguesia sabe que o Soviete de Petrogrado proposerá ao Congresso dos sovietes a tomar o poder nas suas mãos… Prevendo a batalha inevitável, as classes burguesas esforçam-se em desarmar Petrogrado. «A insurreição está ligada politicamente pela primeira vez a esse discurso com uma total nitidez: dispomo-nos a tomar o poder, necessitamos da guarnição, nós não a deixaremos partir.» A primeira tentativa da contra-revolução para suprimir o Congresso, nós responderemos por uma contra-ofensiva que será implacável e que nós levaremos até aos fim.» A proclamação de uma ofensiva política resoluta concretiza-se, ainda desta vez, por uma fórmula de defesa armada.
Sokhanov, que se tinha mostrado na sessão com o projecto estéril de comprometer o Soviete a festejar o jubileu de Gorki, comentava bem a seguir o que a revolução tinha atado um nó sólido nesse dia. Para Smolny, a questão da guarnição é a da insurreição. Para os soldados, trata-se da sua sorte. «É difícil imaginar um ponto de partida mais conseguido da política nesses dias.» Isso não impedia Sokhanov de considerar como perigosa a política dos bolcheviques no conjunto. Com Gorki e milhares de intelectuais radicais, o que ele tem mais é esta multidão que pretendem «selvagens», que, com notável regularidade, desenvolve cada dia a sua ofensiva.
O soviete é bastante impotente para proclamar abertamente um programa de insurreição no Estado e mesmo fixar a data. Ao mesmo tempo – mesmo incluindo o próprio dia marcado por ele para uma vitória completa – o Soviete é impotente em numerosas questões, pequenas ou grandes. Kerensky, já reduzido a nada em política, promulga ainda decretos no palácio de Inverno. Lenine, inspirador do irresistível movimento de massas, leva uma vida clandestina, e o ministro da Justiça, Maliantovich, prescreveu de novo nesses dias ao procurador de lançar contra ele um mandato de captura. Mesmo no Smolny, sobre o seu próprio território, o poderoso Soviete de Petrogrado parece viver por favor. A administração do Instituto, da caixa, da expedição, dos automóveis, dos telefones encontra-se ainda nas mãos do Comité executivo central que, ele próprio, se mantêm graças aos finos fios do direito de sucessão.
Sokhanov conta como, após a sessão, tarde na noite, ele foi ao largo do Instituto Smolny, nas trevas profundas, sob uma forte chuva. Toda uma multidão de delegados marcava passo desesperadamente diante dois automóveis fumarentos e mal-cheirosos que foram concedidos ao Soviete bolchevique pelas ricas garagens do Comité executivo central. «Para essas viaturas – conta o observador omnipresente – tinha avançado também o presidente Trotsky. Mas, tendo parado e olhado um instante, ele troçou, a seguir afasta-se pelas poças de água e desapareceu na obscuridade.» Sobre a plataforma de um trólei, Sokhanov encontra-se em presença de um pequeno homem de aparência modesta, de barba negra aparada em ponta. O desconhecido tentou de reconfortar Sokhanov a propósito dos inconveniente de uma locomotiva lenta. «Quem é?» perguntou Sokhanov a uma viajante bolchevique que o acompanhava. «Um velho militante do partido, Sverdlov.» Menos de quinze dias depois, esse pequeno homem de barbicha negra era o presidente do Comité executivo centra, órgão supremo da República dos Sovietes. Inverosimilhante, Sverdlov tinha reconfortado o seu companheiro de viagem num sentimento de gratidão: oito dias antes, no apartamento de Sokhanov, na verdade sem que ele soubesse, tinha tido lugar a sessão do Comité central dos bolcheviques que tinha metido na ordem do dia a insurreição armada.
No dia seguinte pela manhã, o Comité executivo central tentou dar aos acontecimentos uma guinada no sentido contrário. O burô convocou um assembleia «legal» da guarnição, convocando mesmo os comités atrasados, não renovados pela eleição havia já bastante tempo, que não estiveram presentes na véspera. A verificação complementar da guarnição, dando qualquer coisa de novo, confirmou claramente o quadro da véspera. Contra o levantamento se pronunciaram desta vez: a maioria dos comités dos efectivos que se mantinham na fortaleza Pedro e Paulo, e os comités de divisão dos carros blindados; uns e outros declararam que se subordinavam ao Comité executivo central. É impossível de não ter isso em consideração.
Edificada sobre uma pequena ilha que rodeia o Neva com o seu canal, entre o centro da cidade e dois distritos, a fortaleza domina as pontes mais próximas e cobre, ou melhor, pelo contrário, esvazia do lado do rio os acessos ao palácio de Inverno, onde está instalado o governo. Desprovida de qualquer importância militar nas operações de grande envergadura, a fortaleza pode ter algum significado nos combates de rua. Além disso, e isso talvez é o mais importante, a fortaleza tem ligação ao arsenal de Kronwerk: os operários necessitam de espingardas, e aliás os regimentos mais revolucionários estão quase desarmados. A importância dos carros blindados nos combates de rua não necessita explicações: do lado do governo, eles pode causar um grande número de vítimas inúteis; do lado da insurreição, eles encurtarão o caminho da vitória. Os bolcheviques terão de ter uma atenção particular nos próximos dias sobre a fortaleza e sobra a divisão dos carros blindados. Pelo resto, a relação de forças na Conferência continuava a ser a mesma que na véspera. A tentativa do Comité executivo central para fazer adoptar a sua decisão muito circunspecta encontrou uma resistência fria da maioria esmagadora: não tendo sido convocada pelo Soviete de Petrogrado, a Conferência não se via legitimizada a votar resoluções. Os líderes conciliadores tinham vindo por eles próprios diante desse último golpe.
Encontrando o acesso aos regimentos barricado por baixo, o Comité executivo central tentou apoderar-se da guarnição tomando-a por cima. De acordo com o estado-maior, ele designou como comissário principar para todo o distrito militar o capitão Malevsky, socialista-revolucionário, declarou que consentia em reconhecer os comissários do Soviete sob condição que eles se subordinariam ao comissário principal. A tentativa feita para se apoiar sobre a guarnição bolchevique, com os meios de um capitão que ninguém tinha ouvido falar, era evidentemente desesperada. Afastando-a, o Soviete suspendeu as conversações.
Denunciado por Potressov, o levantamento não teve lugar no dia 17. Agora, os adversários davam com segurança uma nova data: o 20 de Outubro. Nesse dia, como se sabe, se ligava primitivamente a abertura do Congresso dos sovietes, e a insurreição seguia o Congresso como a sua sombra. Na verdade já tinham adiado o Congresso a cinco dias mais tarde; mas pouco importava: o objecto tinha sido mudado, a sombra ficava. O governo toma ainda desta vez todas as medidas necessárias para impedir «o levantamento». Nos bairros os postos são reforçados. Patrulhas de cossacos percorriam os bairros operários toda a noite. Em diversos pontos de Petrogrado foram emboscados pelas reservas da cavalaria. A milícia está sobre pé de guerra, e, metade, alerta constante nos comissariados. Diante do palácio de Inverno foram colocados carros blindados, a artilharia ligeira, metralhadoras. As redondezas do palácio são guardadas por piquetes da tropa.
A insurreição que ninguém preparava e a qual ninguém fazia apelo, não teve lugar ainda desta vez. O dia passava mais tranquilo que muitos outros, o trabalho nas fábricas não parou. Dirigias por Dan, as Izvestia celebravam la vitória ganha contra os bolcheviques: «A sua aventura sobre uma manifestação armada em Petrogrado é um assunto terminado.» Os bolcheviques viram-se esmagados pela indignação da democracia unificada: «Eles já se rendem.» Literalmente pode-se pensar que os adversários, tendo perdido a cabeça, tinham-se dado como objectivo, em suscitando os temores antes do tempo e lançando de uma maneira ainda mais oportuna os golpes de corneta da vitória, em desorientar a sua própria «opinião pública» e de dissimular os planos dos bolcheviques.
A decisão de criar um Comité militar revolucionário, tomada pela primeira vez no dia 9, não passou pelo plenários do Soviete senão uma semana mais tarde: o Soviete não é o partido, a sua máquina é pesada no arranque. Era preciso ainda quatro dias para formar o Comité. Esta dezena de dias, todavia, não foi perdida: ocupava-se activamente em conquistar a guarnição, a conferência dos comités de regimento teve tempo de provar a sua vitalidade, o armamento dos operários se perseguiu, de maneira que o Comité militar revolucionário, iniciando o trabalho somente no dia 20, cinco dias antes da insurreição, teve imediatamente nas mão os meios de agir. Diante do boicote dos conciliadores, o Comité compôs-se de bolcheviques e socialista-revolucionários de esquerda: isso facilitou e simplificou a tarefa. De todos os socialistas-revolucionários só Lasimir militava aí. Ele foi mesmo colocado à cabeça do Burô para melhor sublinhar o carácter de origem soviética e não de partido da instituição. Na realidade, o Comité, cujo presidente foi Trotsky, com, como principais militantes, Podvoisky, Antonov-Ovseenko, Lachevitch, Sadovsky, Mekhonochine, apoiava-se exclusivamente sobre os bolcheviques. O Comité não se reunia nunca, mesmo uma só vez na sua totalidade, com a participação dos representantes de todas as instituições enumeradas nos estatutos. Os assuntos correntes eram resolvido pelo Burô sob a direcção do presidente, e, em todos os casos importantes, chamavam Sverdlov. Estava aí o estado-maior da insurreição.
O Boletim do Comité regista modestamente as suas primeiras diligências: nos efectivos de combate da guarnição, em certas instituições e certos depósitos, «para a vigilância e direcção», foram nomeados comissários. Isso significou que, conquistando a guarnição do ponto de vista político, o Soviete submetia-se agora ao ponto de vista da organização. Na selecção dos comissários, a Organização militar dos bolcheviques jogou um grande papel. Entre o cerca de milhar de membros que faziam parte em Petrogrado, havia um bom número de homens resolvidos e absolutamente devotados à revolução, soldados e jovens oficiais que tinham recebido, após as Jornadas de Julho, a têmpera necessária nas prisões de Kerensky. Os comissários escolhidos no seu meio encontravam nos contingentes da guarnição um terreno suficientemente preparado: consideravam-os como gente em si e obedeciam-lhes prontamente.
A iniciativa para meter a mão sobre os estabelecimentos públicos provinha muitas vezes de baixo. Os operários e os empregados do arsenal ligados à fortaleza Pedro e Paulo levantaram a questão da necessidade do controlo sobre a entrega de armas. O comissário que foi aí enviado conseguiu impedir o armamento complementar dos junkeres, sequestro dez mil espingardas destinadas à região do Don, e estoques menos importantes que iam entregar a um certo número de organizações e personagens duvidosas. O controlo estendia-se logo a outros depósitos, mesmo aos armazéns privados dos armeiros. Bastava dirigir-se a um comité de soldados, operários ou de empregados de um estabelecimento ou de uma boutique para que a resistência da administração fosse imediatamente quebrada. As armas só eram entregues sobre ordem dos comissários.
Os operários tipógrafos, por intermediário dos seus sindicatos, chamaram a atenção do Comité sobre a multiplicação de panfletos e de brochuras ultra-reaccionárias (Cem Negros). Decidiu-se que, nos casos duvidosos, o Sindicato dos tipógrafos se dirigissem, para ter uma solução, ao Comité militar revolucionário. O controlo, por intermediários dos operários tipógrafos, era o meio mais eficaz de todos os meios possíveis de vigilância sobre a imprensa de agitação dos contra-revolucionários.
Não se limitando a desmentir formalmente os boatos de insurreição, o Soviete fixou abertamente, para domingo 22, uma revista pacífica das suas forças, não sob o aspecto de manifestação de rua, mas por comícios nas fábricas, nos quartéis e todos os grandes lugares da capital. Com o objectivo evidente de suscitar as desordens sangrentas, misteriosos beatos fixaram para o mesmo dia uma procissão religiosa nas ruas da cidade. Um apelo lançado por cossacos desconhecidos convidava os cidadãos a tomar parte na procissão «em lembrança da libertação de Moscovo em 1812». O motivo escolhido não era de actualidade; mas os ordenadores propunham além disso ao Todo-poderoso de benzer as armas dos cossacos «para a defesa contra os inimigos da terra russa», o que se relacionava evidentemente já a 1917.
Não havia nenhuma razão em recear um manifestação séria contra-revolucionária: o clérigo era, em Petrogrado, impotente; sob as bandeiras da Igreja não se podia levantar-se contra o Soviete senão os miseráveis restos dos bandos dos Cem Negros. Mas com a ajuda dos provocadores experientes da contra-espionagem e dos oficiais cossacos, encontros sangrentas não eram impossíveis. Na ordem das medidas preventivas, o Comité militar revolucionário começou por reforçar a sua acção sobre os regimentos de cossacos. Na residência do estado-maior o mais revolucionário, um regime mais severo foi instituído. «Tornou-se desde então pouco fácil entrar no Instituto Smolny – escreve John Reed – o sistema do livre-acesso foi modificado com intervalos de algumas horas, porque os espiões penetravam constantemente no interior.»
Na Conferência da guarnição do 21, consagrado à «jornada do Soviete» do dia seguinte, o relator propunha uma serie de medida preventivas contra possíveis afrontamentos na rua. No 4º regimento de cossacos, o mais à esquerda, declarou pelo seu delegado que não tomaria parte na procissão. O 14º regimento de cossacos assegurou que ele combateria com todas as suas forças os atentados da contra-revolução, mas, que ao mesmo tempo ele consideraria como «não oportuno» um levantamento pelo tomada do poder. Sobre os três regimentos de cossacos, só um ausentou-se, o de Ural, o mais atrasado, que tinha sido levado a Petrogrado em Julho para esmagar os bolcheviques.
A Conferência tomou, sobre o relatório de Trotsky, três breves resoluções: 1º «A guarnição de Petrogrado e dos arrabaldes prometeu ao Comité militar revolucionário de apoiar inteiramente em todas as suas demarches…» 2º «A jornada do 22 de Outubro será a de um recenseamento pacífico da forças… A guarnição dirige-se aos cossacos:… Nós convidamos às nossas reuniões de amanhã. Bem-vindos, irmãos cossacos!»; 3º «O Congresso pan-russo dos sovietes deve tomar o poder e assegurar ao povo a paz, a terra e o pão.» A guarnição promete solenemente de colocar todas as suas forças à disposição do Congresso. «Contem connosco, representantes do poder dos soldados, operários e camponeses. Nós estamos todos a postos, prontos a vencer ou a morrer.» Centenas de mãos levantaram-se por essas resoluções que confirmam o programa da insurreição. Houve cento e cinquenta abstenções: eram os «neutros», isto é os adversários hesitantes. Nem uma mão não se levantou contra. O nó se apertava ao pescoço do regime de Fevereiro.
No decorrer do dia soube-se já que os iniciadores misteriosos da procissão tinham renunciado a manifestar assim «sobre a proposição do comandante em chefe do distrito». Esse sério sucesso moral, que considerava melhor que toda a força da pressão da Conferência da guarnição, permitia esperar firmemente que os inimigos, em geral, não ousariam mostrar-se no dia seguinte na rua.
O Comité militar revolucionário indicou ao estado-maior do distrito três comissários: Sadovsky, Mekhonochine e Lasimir. As ordens do comandante só são válidas após a assinatura de um dos três. Sobre o apelo telefónico de Smolny, o estado-maior envia para a delegação um auto: os hábitos da dualidade de poderes subsistem ainda. Mas, inesperadamente, a amabilidade do estado-maior não significava que ele estivesse disposto a fazer concessões.
Tendo ouvido a declaração de Sadovsky, Polkovnikov respondeu que ele não reconhecia nenhum comissário e não precisava de tutela. A delegação tendo insinuado que o estado-maior riscava, nessa via, encontrar resistência do lado da tropa, Polkovnikov respondeu secamente que ele tinha a guarnição na mão e que a submissão desta estava assegurada. «A sua firmeza era sincera – escreve nas suas Memórias Mekhonochen – não era nada de artificial.» Para voltar ao Instituto Smolny, os delegados não tiveram mais automóveis do estado-maior.
A Conferência extraordinária, à qual foram chamados Trotsky e Sverdlov, tomou uma decisão: reconhecer que a ruptura com o estado maior é um facto consumido e a considerar como um ponto de partida para uma ofensiva ulterior. Primeira condição de sucesso: os bairros devem estar ao corrente de todas as etapas e dos episódios da luta. Não se pode permitir ao adversário tomar as massas de improvisto. Por intermediário dos sovietes e dos comités de bairro do partido, uma informação é expedida para todos os lados da cidade. Os regimentos são imediatamente advertidos do que se passou. Nova confirmação: só executar as ordens que terão sido contra-assinada pelos comissários. Convidam a designar aos postos de guarda os soldados mais seguros.
Mas o estado-maior também tinha decidido de tomar medidas. Instigados, aparentemente, pelos conciliadores que aconselhavam, Polkovnikov convocou para uma hora da tarde uma conferência da guarnição, com a participação dos representantes do Comité executivo central. Antecipando o adversário, o Comité militar revolucionário convocou para as onze horas da manhã uma conferência extraordinária dos comités de regimento na qual foi decidido regular formalmente a ruptura com o estado-maior. O manifesto, logo redigido, às tropas de Petrogrado e dos arredores falava a linguagem de uma declaração de guerra. «Tendo rompido com a guarnição organizada da capital, o estado-maior torna-se o instrumento directo das forças contra-revolucionárias.» O Comité militar revolucionário declinou toda responsabilidade pelos actos do estado-maior e, colocando-se à cabeça da guarnição, toma a responsabilidade da «manutenção da ordem revolucionária contra os atentados da contra-revolução».
Foi um passo decisivo na via da insurreição. Ou, talvez, somente mais um conflito no mecanismo gerador de conflitos de dualidade de poderes? Foi assim que se esforçava, para se assegurar a si próprio, em interpretar o que se tinha passado, o Estado-maior, após ter consultado os representantes dos efectivos que não tinham ainda recebido a tempo o apelo do Comité militar revolucionário. Uma delegação enviada de Smolny, sob a direcção do tenete e bolchevique Dachkevitsch, comunicou brevemente ao estado-maior a decisão da Conferência da guarnição. Os poucos representantes das tropas confirmaram a sua fidelidade ao Soviete e, recusando formular uma moção, dispersaram-se. «Após uma breve troca de ideias – comunicou logo a imprensa inspirada pelo estado-maior – nenhuma decisão definitiva não foi tomada; reconheceu-se indispensável esperar a solução do conflito entre o Comité executivo centra e o Soviete de Petrogrado». O estado-maior imaginava a sua destituição como um assunto de rivalidade entre as instâncias soviéticas disputando-se o direito de controlar os seus actos. A política de cegueira voluntária tinha a vantagem que ela dispensava de declarar a Smolny uma guerra pela qual os dirigentes não tinham forças suficientes. Assim, o conflito revolucionário, já pronto a rebentar, tinha trazido, com a ajuda dos órgãos governamentais, no quadro legal da dualidade de poderes: temendo olhar a realidade em frente, o estado-maior colaborava firmemente na camuflagem da insurreição.
A conduta atordoada das autoridade não era, todavia, uma simples maneira de dissimular as suas verdadeiras intenções? O estado-maior não dispunha, em tomando as aparências ingenuidade burocrática, em levar ao Comité militar revolucionário um golpe improvisto? Tal atentado vindo da parte dos órgãos exaltados e desmoralizados do governo provisório era considerado em Smolny como pouco provável. Mas o Comité militar revolucionário tomou contudo as medidas de precaução mais simples: nos quartéis mais próximos montaram a guarda, dia e noite, companhias, armadas, prontas, ao primeiro sinal, de correr ao socorro de Smolny.
Mesmo se a procissão foi desconvocada, a imprensa burguesa anunciava para domingo uma efusão de sangue. Um jornal conciliador declarava logo pela manhã: «Hoje, as autoridades esperam uma manifestação com maior probabilidade do que no 20 de Outubro último». Foi assim que, pela terceira vez, numa semana, no 17, 20 e 22, o rapaz vicioso enganava o povo gritando «olha o lobo, olha o lobo!» Na quarta vez, se acreditamos na velha fábula, o rapaz devia cair sob os colmilhos do lobo.
A imprensa dos bolchevique, ao chamar as massas a reunir, falava de um recenseamento pacífico das forças revolucionárias na véspera do Congresso dos sovietes. Isso respondia completamente à concepção do Comité militar revolucionário: fazer uma revista gigantesca, sem afrontamentos, sem empregar as armas e mesmo sem as mostrar. Era preciso mostrar à base o que ela própria era, e o seu número, a sua força, a sua resolução. Pela unanimidade da multidão, era preciso forçar os inimigos a se esconderem, a desaparecer, a não se mostrarem. Pela demonstração de impotência da burguesia diante das formações de massa dos operários e dos soldados, era preciso apagar nas consciências destes as últimas lembranças redentoras da Jornadas de Julho. Era preciso chegar ao ponto que as massas, vendo-se a si próprias, digam: ninguém e nada nos poderá resistir.
«A população assustada – escrevia, cinco anos mais tarde, Miliokov – manteve-se afastada.» A burguesia ficava em casa: ela estava na verdade assustada pela sua imprensa. O resto da população foi logo pela manhã às reuniões: jovens e velhos, homens e mulheres, adolescentes e mães com o seus filhos nos braços. Tais comícios nunca tinham tido lugar durante todo o período revolucionário. Petrogrado inteira, excepção feita das cimeiras, era um imenso comício. Nas salas completas, o auditório renovava-se durante horas e horas. Vaga a vaga, os operários, soldados, marinheiros invadiam os edifícios e enchiam-os. Houve um tremor no povo da citadino, despertado pelos gemidos e aviso que lhe deviam faze medo. Dezenas de milhares de pessoas submergiam o enorme edifício da Casa do Povo, ocorriam nos corredores e, em massas compactas, exaltados, mas ao mesmo tempo disciplinados, preenchendo as salas do teatro, os corredores, refeitórios e lares, sobre candeeiros de ferro fundido, e às janelas, estavam suspensas grinaldas, cachos de cabeças humanas, pernas e braços. Havia no ar esta carga de electricidade que anuncia uma próxima explosão. Abaixo Kerensky! Abaixo a guerra! O poder aos sovietes! Nem um conciliador não se atreveu a mostrar-se diante das multidões ardentes para lhes opor objecções ou avisos. A palavra pertencia aos bolcheviques. Todos os oradores do partido, incluindo os delegados de província que tinham vindo para o Congresso, tinham sido estavam mobilizados. Aqui e ali, raramente, tomavam a palavra socialistas-revolucionários de esquerda, às vezes os anarquistas. Mas uns e outros esforçavam-se por distinguir-se o menos possível dos bolcheviques.
Durante horas mantinham-se lá gente dos bairros, das caves e das mansões, de casacos remendados, de bonés guarnecidos e com grandes lenços, de calçado inchados da lama das ruas, tossindo, apertados de ombro contra ombro, apertando-se cada vez mais para dar lugar aos outros, para dar lugar a todos, e escutavam sem cansaço, avidamente, apaixonadamente, reclamando, temendo deixar escapar o que eram necessário compreender, de assimilar e fazer. Parecia que, nos últimos meses, nas últimas semanas, nos últimos dias, todas as palavras tivessem sido ditas. Mas não, elas têm hoje outro son. As massas sentem-nas de uma forma nova, não como uma pregação, mas como uma obrigação de agir. A experiência da revolução, da guerra, da dura luta, de toda uma vida amargurada, sobe das profundezas da memória de todo o homem esmagado pela necessidade e se fixa nessas palavras de ordem simples e imperiosas. Isso não pode continuar assim, é preciso abrir uma brecha para o futuro.
Nesse dia simples e espantoso que se destacava nitidamente sobre o fundo pálido da revolução, os olhares de cada um dos militantes voltaram-se a seguir. A imagem de uma lava humana inspirada e contida no seu movimento indomável gravou-se para sempre na lembrança das testemunhas oculares. «O dia do soviete de Petrogrado – escreve o socialista-revolucionário de esquerda Mstislavsky – passou-se em numerosos comícios onde o entusiasmo era formidável.» O bolchevique Pestkovsky, que tinha tomado a palavra nas duas fábricas de Vassilievsky-Ostrov, testemunha: «Nós falávamos claramente às massas da nossa próxima tomada do poder e só ouvimos aprovações.» «À volta de mim – conta Sokhanov, sobre o comício na Casa do Povo – o ambiente estava próximo da extase… Trotsky formulou uma breve resolução geral… Quem vota a favor?… Uma multidão de milhares de pessoas, como um só homem, levantou os braços. Vi braços levantados e os olhos inflamados dos homens e mulheres, jovens, operários, soldados, mujiques e personagens tipicamente pequeno-burguesas… Trotsky continuava a falar. Numerosa multidão continuava a manter os braços no ar. Trotsky cadenciava as palavras: o vosso voto, que seja o vosso juramento… A numerosa multidão mantinha os braços no ar. Ela estava de acordo, ela jurava.» O bolchevique Popov relata qual juramento entusiasta foi levado às massas: «Avançar ao primeiro apelo do soviete.» Mstillavsky fala de uma multidão electrizada que jurava fidelidade aos sovietes. O mesmo quadro, ainda se em proporções mais pequenas, se reproduzia em todas as partes da cidade, no centro e nos bairros. Centenas de milhares de pessoas, simultaneamente e nas mesmas horas, levantavam a mão e juravam levar a luta até ao fim.
Se as sessões diárias do Soviete, da Secção dos soldados, da Conferência da guarnição, dos comités de fábrica e de oficina faziam a soldadura interna de uma larga camada de dirigentes; se certas assembleias de massas agrupavam as fábricas e os regimentos, a jornada do 22 de Outubro fundiu a alta temperatura, numa única caldeira gigante, as autênticas massas populares. As massas elas próprias reconheceram-se e viram os seus chefes, os líderes vierem e ouviram as massas. Dos dois lados, ficaram reciprocamente satisfeitos. Os líderes estavam convencidos: não se pode adiar para mais tarde! As massas disseram: desta vez, faz-se!
O êxito da revista das forças bolcheviques, no domingo, diminui a presunção de Polnikov e do seu alto comando. De acordo com o governo e com o Comité executivo central, o Estado-maior tentou entender-se com Smolny. Então porquê, não restabelecer os bons velhos hábitos amigáveis do contacto e da conciliação? O Comité militar revolucionário não recusou delegar representantes para uma troca de ideias: não se podia desejar melhor meio de reconhecimento. «As conversações foram breves – escreve Sadovsky nas suas Memórias. Os representantes do bairro militar aceitavam todas as condições formuladas antes pelo soviete… , em troca da anulação da ordem do Comité militar revolucionário do 22 de Outubro.» Tratava-se de um documento que declarava o Estado-maior instrumento das forças contra-revolucionárias. Os mesmos delegados do Comité que Polkovnikov tinha devolvido para eles dois dias antes, exigiram e receberam em mão própria, para um relatório a Smolny, um projecto de convenção assinado pelo Estado-maior. No sábado, essas clausulas de capitulação foram aceites. Mas hoje, segunda-feira, elas vinham demasiado tarde. O estado-maior esperava uma resposta, mas não a recebeu.
O Comité militar revolucionário dirigiu-se à população de Petrogrado, informando-a da nominação de comissários junto das tropas e para os pontos mais importantes da capital e dos arrabaldes. «Os comissários, como representantes do soviete, gozavam de imunidade. Toda a resistência aos comissários é uma resistência ao soviete dos deputados operários e soldados.» Os cidadãos são convidados a dirigirem-se, em caso de desordens, aos mais próximos comissariados para chamar as forças armadas. É a linguagem do poder. Mas o Comité ainda não deu sinal de insurreição aberta, Sokhanov pergunta: «Smolny faz asneiras, ou então jogará com o palácio de Inverno como o gato e o rato, provocando um ataque?» Nem um nem outro. Pela pressão das massas, com o peso da guarnição, o Comité expulsa o governo. Ele toma sem aviso o que pode tomar. Avança as suas posições sem dar um tiro, juntando e consolidando em marcha o seu exército; ele mede pela sua pressão a força de resistência do inimigo que não perde um só instante de vista. Cada novo passo em frente modifica as disposições em favor de Smolny. Os operários e a guarnição elevam-se na insurreição. O primeiro que chamará às armas se encontrará na marcha da ofensiva e do recuo. Agora, é já uma questão de horas. Se, no último minuto, o governo tem a audácia ou o desespero em dar o sinal da batalha, a responsabilidade cairá no palácio de Inverno, mas a iniciativa cabe na mesma a Smolny. O acto do 23 de Outubro significa a queda das autoridades antes mesmo que seja derrubado o próprio governo. O Comité militar revolucionário ligava o regime inimigo pelas extremidades antes de lhe bater na cabeça. A aplicação desta táctica «de penetração pacífica», consistindo em quebrar legalmente o esqueleto do inimigo e a paralizar por hipnose o que subsistia como vontade nele, só se podia com a preponderancia das forças que dispunha o Comité e que continua a crescer de hora em hora.
O Comité consultava diariamente a carta toda aberta diante dele da guarnição, tomava a temperatura de cada regimento, seguia as flutuações de opinião e de simpatia que se manifestavam nas casernas. Nada de inesperado não podia produzir-se desse lado. Na carta, continuava, todavia algumas manchas negras. Era preciso tentar eliminá-las ou, pelo menos, reduzi-las. Desde do dia 19, acontece que a maioria dos comités da fortaleza Pedro e Paulo estava nas disposições maldosas ou equívocas. Agora que toda a guarnição está com o Comité e que a fortaleza está cercada, pelo menos do ponto de vista político, é tempo de a tomar resolutamente. O tenente Blagonravov, nomeado comissário, encontrou resistência: o comandante da fortaleza, proposto pelo governo, recusava em reconhecer a tutela bolchevique, e mesmo – segundo certos rumores – gabava-se de prender o jovem tutor. Era preciso agir, e imediatamente. Antonov propôs introduzir na fortaleza um batalhão seguro do regimento Pavlovsky e de desarmar os efectivos hostis. Mas seria uma operação muito grave cujos oficiais teriam podido aproveitar para provocar uma efusão de sangue e destruir a unanimidade da guarnição. É efectivamente necessário chegar a uma medida extrema? «Para discutir esta questão, chamaram Trotsky… - conta Antonov nas suas Memórias. Trotsky jogou então um papel decisivo; com o seu instinto revolucionário, ele compreendeu o que tinha a nos aconselhar: propôs que se tomasse esta fortaleza a partir do interior. Isso só se pode fazer se as tropas, lá, simpatizem connosco», - e acontece que ele tinha razão. Trotsky e Lachevitch foram ao comício na fortaleza. «Em Smolny, esperavam com uma grande emoção os resultados de uma empresa que parecia arriscada. Trotsky evocou essas coisas a seguir: «No dia 23, fui à fortaleza cerca das duas horas da tarde. Havia um comício no pátio. Os oradores da ala direita estavam altamente circunspectos e evasivos… Escutaram-nos e seguiam-nos». No terceiro andar de Smolny, suspiraram de alívio quando o telefone anunciou a alegre notícia: a guarnição pedropaulina tinha-se solenemente comprometido a partir de então ao Comité militar revolucionário.
A mudança na consciência dos efectivos da fortaleza não era, compreende-se, o resultado de um ou dois discursos. Ela foi solidamente preparada pelo passado. Os soldados encontraram-se mais à esquerda que os seus comités. Só restava a casca rachada da velha disciplina, que tinha subsistido por detrás das muralhas mais tempo que nas casernas da cidade. Mas bastava um tremor para que ela caisse em bocados.
Blagonravov podia agora instalar-se com segurança na fortaleza, dispor do seu pequeno estado-maior, estabelecer a ligação com o Soviete bolchevique do distrito vizinho e com os comités das casernas mais próximos. Entretanto, as delegações das fábricas e das formações militares vêm pedir que lhes entregue armas. Na fortaleza reina então uma animação indescritível. «O telefone toca sem parar e traz notícias dos nosso novos sucessos nas reuniões e comícios». Às vezes, uma voz desconhecida informa a chegada na estação de destacamentos punitivos da frente. Verificação feita imediatamente demonstra que são mentiras metidas a circular pelo inimigo.
A sessão da noite, no Soviete, distingue-se, nesse dia, por uma afluência excepcional e por um certo ardor particular. A ocupação da fortaleza Pedro e Paulo e a tomada definitiva do arsenal de Kronwerk, onde estão depositados cem mil espingardas, é uma garantia séria de sucesso. Em nome do Comité militar revolucionário, Antonov faz um relatório. Com traços largos, ele desenha o quadro da expulsão dos órgãos governamentais pelos agentes do Comité militar revolucionário: estes são acolhidos por todo o lado como homens de confiança; obedecem-lhes não por medo, mas conscientemente. «De todos os lados reclamam a nomeação de comissários.» Os contingentes atrasados apressam-se a colocarem-se ao lado dos mais avançados. O regimento Preobrajensky que, em Julho, foi o primeiro a ouvir a calúnia acerca do ouro alemão, formulava agora, por intermediário do seu comissários Tchodnovsky, um violento protesto contra os rumores segundo os quais o regimento estava ao lado dos governantes: tal ideia é considerada como a última injúria!… É verdade que a guarda subiu como habitualmente – conta Antonov – mas com o consentimento do Comité. As ordens do estado-maior sobre a entrega de armas e automóveis não foram executadas. O estado-maior teve assim a inteira responsabilidade de ver quem era o mestre da capital.
Pediram ao relator se o Comité está informado do movimento das tropas governamentais da frente e dos arredores e quais são as medidas tomada para fazer frente; o relator responde: da frente romena enviaram contingentes da cavalaria, mas eles foram retidos em Pskov; a 17ª divisão de infantaria, tendo sabido a caminho qual era o seu destino e com qual objectivo recuaram, recusando ir mais longe; em Wanden, dois regimentos recusaram a marchar sobre Petrogrado; resta ainda a sorte desconhecida dos cossacos e dos junkeres que teriam sido enviados de Kiev, ao que parece, e tropas de choque chamadas de Tsarskoie-Selo. «Não ousam e não ousarão tomar no Comité militar revolucionário». Esta palavras não soam mal na sala branca de Smolny.
O relatório de Antonov dá à leitura esta impressão que o estado-maior da insurreição teria trabalhado com todas as portas abertas. Efectivamente: Smolny tem pouco a esconder. A conjuntura política da insurreição é tão favorável que mesmo a franqueza torna-se uma especie de camuflagem: é assim que se faz um levantamento? A palavra «levantamento», todavia, não é pronunciada por qualquer dos dirigentes. Não somente por prudência, mas porque o termo não corresponde à situação real: dir-se-ia que o governo de Kerensky deveria rebelar-se. Num relatório de Izvestia diz-se, é verdade, que Trotsky, na sessão do dia 23, tinha pela primeira vez reconhecido abertamente, como objectivo do Comité militar revolucionário, a tomada do poder. Sem dúvida, do ponto de vista de partida onde se declarava como tarefa do Comité a verificação dos argumentos estratégicos de Tcheremissov, todos já se tinham afastado. A evacuação dos regimentos quase que já se tinham esquecido. Mas no dia 23, tratava-se, mesmo assim, não de um levantamento, mas da «defesa» do próximo Congresso dos sovietes, se necessário com as armas na mão. Foi precisamente nesse espírito que foi formulada a resolução sobre o relatórios de Antonov.
Como apreciariam os acontecimentos em curso nas altas esferas governamentais? Fazendo conhecer por telefone, na noite do 21 ao 22, o chefe do estado-maior do Grande Quartel General, Dokhonine, as tentativas do Comité militar revolucionário para destacar os regimentos do comando, Kerensky acrescentou: «Penso que arranjaremos isso facilmente.» A sua chegada, generalíssimo, no Grande Quartel General, não se atrasou com apreensões diante de qualquer levantamento: «Passar-se-iam mesmo sem mim, visto que tudo está organizado.» Kerensky declarou aos ministros alarmados de uma maneira segura que ele, pessoalmente, está pelo contrário muito feliz de ver chegar o levantamento, dado que isso dará a possibilidade «de acabar de uma vez por toda com os bolcheviques». «Serei completamente disposto a um serviço religioso de acção de graças – responde o chefe do governo ao cadete Nabokov que frequentava o palácio de Inverno – se esta manifestação tivesse lugar.» - «Mas você está seguro de poder reprimi-la?» «Tenho mais forças do que necessito – eles serão esmagados definitivamente.»
Escarnecendo sobre o optimismo atordoado de Kerensky, os cadetes caiam evidentemente na amnésia: na realidade, Kerensky considerava os acontecimentos segundo o seu próprio ponto de vista. No dia 21, o jornal de Miliokov escrevia que, se os bolcheviques, ruídos por uma profunda crise inteiro, ousavam manifestar, eles seriam esmagados logo ali e sem piedade. Outro jornal cadete acrescentava: «Há trovoada no ar, mas talvez purificará a atmosfera.» Dan testemunha que, nos corredores do pré-parlamento, os cadetes e os grupos que lhes eram próximos sonhavam em voz alta de verem os bolcheviques manifestar mais cedo possível: «Em campo aberto serão completamente eliminados.» Notáveis cadetes diziam a John Reed: esmagados no levantamento, os bolcheviques já não poderão levantar a cabeça na Assembleia constituinte.
No decorrer dos dias 22 e 23, Kerensky consultava tanto os líderes do Comité executivo central, como o seu estado-maior: seria conveniente mandar prender o Comité militar revolucionário? Os conciliadores não eram dessa opinião: eles próprios tentaram resolver a questão dos comissários. Polkovnikov considerava também que não havia razão de apressar as prisões: forças militares, em caso de necessidade, havia «mais que o necessário». Kerensky dava atenção a Polkovnikov, mas ainda mais aos amigos conciliadores. Ele esperava firmemente que em caso de perigo, o Comité executivo central, apesar dos desentendimentos de familia, veriam ajudar no momento propício: tinha sido assim em Julho e Agosto; porquê não seria de novo assim?
Mas já não estávamos em Julho, nem em Agosto. Estávamos em Outubro. Nas praças e nos cais de Petrogrado sopravam, do lado de Cronstadt, os ventos frios e húmidos do mar Báltico. Nas ruas desfilava, cantando ares de bravura que abafavam a ansiedade, os junkeres com os seus capotes caindo sobre os tacões. Os milicianos a cavalo exibiam-se, com revólveres em estojos novos. Não, o poder tinha ainda um ar bastante imponente! Ou não seria uma ilusão óptica? Na esquina da Perspectiva Nevsky, John Reed, americano de olhos ingénuos e perspicazes, comprava uma brochura de Lenine: Os bolcheviques manterão o poder? Pagando-a com selos de correio que circulavam então como trocos.
Inclusão | 22/04/2013 |