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Antes da Revolução de Outubro, o Partido Bolchevique forjara-se, sob a direção de Lênin, em sua luta implacável contra a autocracia tsarista e seus sustentáculos. Herdeiro da tradição marxista, vanguarda experimentada do proletariado revolucionário, nunca desdenhara, em sua atividade ilegal, a herança e os ensinamentos táticos dos movimentos populares anteriores: ao contrário, inspirou-se metodicamente em sua longa experiencia prática; continuou-a e enriqueceu-a, sem, todavia, fazer a esses movimentos caducos a menor concessão de princípio.
Os narodniks (populistas) que militavam, entre 1870 e 1880, intelectuais, plebeus e trabalhadores manuais, nas mãos do inimigo, tinham, muitas vezes, dado prova de uma consciência e de uma audácia revolucionarias que, pela admiração que inspiravam ao povo, haviam contribuído fortemente para o esplendor de sua causa e para a educação das massas.
Alguns dentre eles souberam tão vitoriosamente enfrentar seus acusadores, seus juízes, que os próprios historiadores burgueses se inclinam perante sua coragem e seu valor.
O resultado desses processos “não foi completamente, apesar das condenações aplicadas, o que esperava o governo. Graças à publicidade dos debates, que não se ousava então suprimir completamente ainda, o público pôde instruir-se dos métodos arbitrários e violentos da polícia e atentar para o devotamento e zelo quase evangélico dos acusados; as declarações retumbantes, de Sofia Bardina encontraram eco por toda a parte”.(1)
Os dois grandes processos que dominaram a época são o dos Cinquenta e o dos Cento e Noventa e Três. Ambos tiveram lugar no ano de 1877. Cada um deles impôs ao respeito universal uma bela figura revolucionária: o dos Cinquenta, o tecelão Alexéiev; o dos Cento e Noventa e Três, o intelectual Michkin.
Os Cento e Noventa e Três propagandistas, que foram condenados a 24 de janeiro de 1878, não estavam agrupados numa organização homogênea: pertenciam a essa juventude intelectual que “ia ao povo” e não estavam ligados entre si a não ser por certa comunhão de fé revolucionária. No decorrer desse grande processo,, seu porta-voz mais notável e corajoso foi Hipólito Michkin.
Não obstante as interrupções incessantes do presidente, que pretendia confiná-lo em seu papel de acusado e interditar-lhe qualquer ataque contra o regime tsarista, Michkin obteve êxito em expor, para a edificação do povo, o essencial das ideias professadas pelo movimento revolucionário, em denunciar a política da autocracia. Sustentou uma luta emocionante até sua expulsão da sala de audiência.
À primeira interpelação do presidente, que lhe pedia contas de sua participação numa sociedade secreta, ilegal e subversiva, respondeu altivamente: “Confesso ser membro, não de uma sociedade ilegal, mas do Partido Socialista Revolucionário”.(2)
E eis que esboça os sofrimentos do povo esmagado pela opressão econômica e politica; recompõe a história dos movimentos de emancipação; e demonstra que o programa do seu Partido corresponde às aspirações populares.
Como a acusação exprobasse aos 193 acusados a nocividade de suas ideias, Michkin, interrompido a cada frase, contra-ataca:
— “No ideal social, cuja realização constitui o objetivo de minha atividade, não há lugar para o castigo por causa da difusão de ideias, por mais nocivas que sejam, inclusive as ideias religiosas... Não há lugar para a violência para com o pensamento ou para com a consciência individual. De acordo rom nossa concepção, não deve haver força que obrigue, sob a pressão de ameaças de punição, a mentir e a ser hipócrita...”(3)
Ao presidente, que protesta e o convida a abster-se de “semelhantes insinuações”, Michkin retruca:
— “Segundo nossas leis em vigor, não posso, sob pena de ser tratado como criminoso de direito comum, abjurar a ortodoxia por um outra religião: trata-se, pois, de uma lei que coage à hipocrisia!”(4)
Impossível continuar: mas o principal estava dito. Impossível descrever as torturas empregadas para a extorsão das confissões: mas a inquisição estava denunciada. O discurso final permanecerá inacabado: mas o povo saberá como e porque:
— “Depois das numerosas interrupções com que fui honrado pelo Sr. presidente, só me resta fazer uma declamação, que será provavelmente a última. Adquiri, hoje, definitivamente, a convicção de que meus camaradas tinham razão em recusar antecipadamente qualquer explicação ao tribunal, na ideia de que, apesar da ausência de publicidade dos debates não nos seria permitido lançar toda a luz sobre o verdadeiro caráter da questão. Agora, é evidente para todo o mundo que, aqui, a cada palavra sincera, se fecha a boca ao acusado. Agora posso, tenho pleno direito, de afirmar que isto não é justiça, mas uma comédia, até mesmo algo de pior, de mais repugnante, de mais vergonhoso…”
A estas palavras, os gendarmes apossam-se de Michkin, fecham-lhe a boca. Com a voz sufocada, conclui num sopro:
— “... do que uma casa de tolerância. Nela, mulheres, sob a pressão da miséria, vendem seu corpo; aqui, juízes mergulhados na ignomínia, no servilismo, movidos pelo atrativo da promoção e de altos ordenados, vendem a vida de outrem, prostituem a verdade e a justiça, o que há de mais sagrado para a humanidade.”(5)
Arrancam-no do seu banco e levam-no. É tal o escândalo no auditório, que se faz evacuar a sala.
Alguns meses antes, em fevereiro-março de 1877, tinha sido ouvida a linguagem altiva de outro homem: outra linguagem, uma linguagem de classe; e o instinto de classe dominava nele a ideologia populista. Esse homem não ia ao povo: estava nele. Era um operário perfeitamente consciente, que conhecia, por tê-la vivido, por tê-la sofrido, a exploração do capital e a opressão do regime.
Na pessoa de Pedro Alexeiev, é já o proletariado que faz sua entrada na sala de audiências e apresenta ao tribunal inimigo sua conta a ajustar. Uma conta tão terrível quanto simples. Essa conta é um passivo, essa defesa é um libelo.
Que diz Alexeiev? Diz(6) a vida cotidiana do operário, suas jornadas de trabalho de 17 horas, seu salário miserável de 40 copecs, do qual, por um nada, se descontam multas; diz de sua fadiga embrutecedora, das humilhações com que o sobrecarregam, do desprezo a que se votam suas necessidades mais elementares.
— “Será que temos lazeres para nos instruir? Será que se nos dá, a nós, pobres, alguma instrução em nossa infância? Faltam-nos livros uteis e accessíveis ao operário... Examinai a literatura popular russa. Nada mais aborrecido do que os livros que se editam entre nós para uso do povo... Eis porque, no povo operário, se formaram bizarras concepções sobre a leitura: Os livros ou são para a distração ou piedosos. Tal a realidade. E o governo engana-se ao supor que os operários não têm consciência disso. Será que não vemos, em torno de nós, todos se enriquecerem e se distraírem à nossa custa? Será que somos tão estúpidos para não compreender porque somos tão mal pagos e para onde vai o fruto de nossos sofrimentos? Uns, sem trabalhar, vivem na opulência... O povo operário, se bem que privado de qualquer instrução, encara tudo isso como um mal passageiro e o governo como o poder político temporariamente usurpado pela força”.(7)
Mas, como irá ele concluir? Mas, com que podem os trabalhadores contar? Para que lado se voltam a fim de procurar uma saída para sua miséria, para libertar-se?
Até então, as gerações de acusados, os intelectuais dominados pela influência de Bakunin desdenhavam a resistência à opressão politica. Devia caber a um operário, como Pedro Alexeiev, declarar guerra à autocracia, ligar a revolução politica à revolução social e sustentar perante os juízes do tsar a mesma linguagem mantida, sete ou oito anos antes, perante um tribunal do Segundo Império, pelos operários parisienses da Primeira Internacional.
— “O povo trabalhador da Rússia só deve contar com suas próprias forças. Não espera socorro de ninguém... a não ser da juventude intelectual...”(8)
Mas o presidente grita-lhe que se cale. Alexeiev, então, eleva o tom:
— “... e o jugo do despotismo, protegido pelas baionetas dos soldados, será quebrado!”(9)
Essa audácia nova produz tal efeito de estupor em todo o auditório e mesmo nos guardas que, declarou seu defensor, “se Alexeiev se tivesse dirigido para a saída, ninguém o teria impedido: toda a gente perdera a cabeça”.
O discurso de Alexeiev, editado em brochura, obteve o maior sucesso popular e serviu por muito tempo para agitação.
Desses revolucionários, dos Michkin, dos Alexeiev é que os bolcheviques se constituíram herdeiros e continuadores pela coragem, pela intransigência revolucionária e pela estratégia ofensiva. Foi a experiência acumulada por esses combatentes, que eles retomaram, adaptaram, rejuvenesceram. Sua tarefa, porém, era muito mais completa; por um lado, o inimigo empregava métodos muito menos primitivos, muito mais apurados; por outro, não bastava mais denunciar o regime: era necessário loca lizar o Partido, relativamente aos outros, demonstrar a clarividência de sua análise e a justiça de seus objetivos, expor sobriamente, claramente, seu programa e sua tática.
Em que momento? No momento em que essa exposição pudesse ser melhor ouvida, isto é, na sala de audiências, perante o tribunal. Ainda mesmo que os debates tivessem lugar a portas fechadas, o que se tornara o caso geral, a presença de um advogado serviria, ao menos para salvaguardar um mínimo de publicidade e para impedir o sufocamento total da defesa: era difícil para o governo evitar que, por intermédio do defensor e da literatura clandestina, fosse conhecido um pouco da verdade.
As coisas eram completamente outras antes dos debates, durante a instrução, que era estritamente secreta. As declarações do acusado somente poderiam ser utilizadas contra ele, sem nenhuma vantagem para a propaganda. Para despistar os ardis da famosa Okhrana (polícia política secreta) dos magistrados instrutores do processo, a tática menos perigosa, mais indicada, era a do silêncio. Em vista disso, na maioria das vezes, os bolcheviques recusavam responder aos interrogatórios.
As instruções arrastavam-se por muito tempo: seu objeto, a preocupação dominante dos policiais e dos juízes, era arrancar aos detentos informações utilizáveis sobre a organização e sua atividade. Com esse fito, empregavam-se os mais variados, meios: a tortura ou a mentira, o terror ou o apelo aos “bons sentimentos”. Pelo fim do último século, a Okhrana capacitara-se de que o método brutal não conseguia vergar a resistência inflexível dos militantes experimentados. É então que, sob a. direção do famoso Zubatov, iniciador do “socialismo policial”, a polícia experimentou o método suave. Uma vez que ri ameaça e as pancadas não produziam efeito, experimentaram-se a promessa e a “discussão”. O espião da nova escola oferecia cigarros ao suspeito, exprimia-lhe sua simpatia e sugeria-lhe que sua salvação dependeria de seu “franco falar”. Se o suspeito hesitava, dava-se-lhe a entender que se sabia de tudo, que seus camaradas tinham falado.
Muitos revolucionários inexperientes caíram na armadilha: estavam consequentemente perdidos. Ou confessavam, informavam o inimigo sobre o que este queria conhecer, denunciando, mesmo sem o saberem, seus camaradas, e enveredavam sem remissão pela estrada da traição e, uma vez comprometidos aos olhos dos seus, tornavam-se presa fácil para a Okhrana. Ou chicaneavam e se embrulhavam: agravavam, então, seu próprio caso, sem conseguir salvar seus camaradas; arriscavam-se até a fornecer, sem o saberem, o fio condutor que faltava à polícia para atingir a organização. Isso também era a morte política.
Assim, os que falavam, perdiam quase sem exceção. E eis porque o Partido bolchevique recomendava a seus militantes não responder ao juiz de instrução.
Depois da revolução de 1905 e da queda de Zubatov, a polícia voltou ao método violento e a tortura foi novamente erigida em sistema normal de obter confissões. A recusa em responder implicava em grave acréscimo de sofrimentos físicos. Mas um bolchevique afrontava esse perigo com coragem e preferia, em todo caso, isso ao terrível perigo político de uma palavra imprudente.
Se, todavia, ao caráter secreto da formação de culpa era mister opor o melhor segredo defensivo, o do silêncio, convinha, ao contrário, utilizar no máximo a publicidade direta ou indireta dos debates, transformar o pretório em tribuna e fazer-se porta-voz do Partido. Ainda aí nem uma palavra sobre a organização e sua atividade, mas uma profissão de fé preparada com antecedência, uma exposição precisa do programa bolchevique. Essas exposições que, em sua carta de 1905 sobre a defesa. Lénin considerava muito desejáveis, muito uteis, eram publicadas na imprensa ilegal e, clandestinamente difundidas, contribuíam poderosamente para a educação revolucionária das massas.
Antes que a ala revolucionária do Partido social-democrata se tornasse Partido bolchevique, aconteceu, em 1901, que as oficinas clandestinas do seu órgão, a Iskra, fosse descoberta e muitos militantes presos. Entre eles, Léon Goldmann. Quando, depois de dois anos de formação de culpa se realizou o processo a portas fechadas, Goldmann conseguiu sustentar a luta em duas frentes: contra o inimigo externo, que qualificava de “amotinamento” a propaganda revolucionária, e contra o inimigo interna (“economistas”, neopopulistas, liberais), de que se desfazia então o Partido de Lênin.
A defesa de Goldmann foi um ato político importante uma exposição do programa da Iskra. Foi no decorrer de sua argumentação de defesa que ele gritou:
— “A vontade do povo é uma lei. E, quando um governo quer julgar o povo, é porque soou a hora em que o povo deve pôr seu governo no banco dos réus”.(10)
Quatro anos depois,, o mesmo tema era retomado perante os juízes de Moscou:
— “Se fosseis consequentes para convosco mesmos, seria o caso de colocar no banco dos réus todo o povo russo. Neste caso, porém, ficaria claro quem é o juiz e quem o acusado?”(11)
Essa linguagem altiva era utilizada por um bolchevique, do Comitê de Moscou, Bogdan Knunianz. Isso algumas semanas depois do “domingo vermelho”, de São Petersburgo, depois do massacre do Palácio de Inverno (9 de janeiro de 1905). Com Knunianz apenas tinha sido encontrado o manuscrito de um artigo: não havia outra prova de sua filiação ao Comitê. Se se tivesse querido limitar a uma defesa jurídica, não lhe teria sido difícil obter a absolvição. Não foi, porém, sua pessoa, mas sua causa, o que ele defendeu.
Uma vez que a Corte sentenciou a portas fechadas, ele declarou:
— “Já que o julgamento, a portas fechadas, torna impossível o controle da opinião pública, único juiz no litígio entre revolucionários e o governo, considero inútil minha participação nos debates judiciários e advirto-os de que não responderei às perguntas. Reservo-me o direito de pronunciar a última palavra, porquanto creio ser meu dever revolucionado aproveitar todas as ocasiões que se apresentem para propagar minhas ideias”.(12)
E teve, efetivamente, a “última palavra”, que foi para precisar a doutrina de Marx e Engels, o programa dos bolcheviques:
— “Temos a certeza de que nem reformas especiais, nem melhorias parciais conduzirão, no regime burguês, o proletariado ao socialismo, porém, que só uma luta impiedosa contra a base desse regime, a propriedade dos meios de produção e a passagem destes para as mãos da coletividade, porá termo à exploração das camadas sociais umas pelas outras. A ditadura do proletariado, a tomada do poder político pela classe operaria é a condição indispensável para isso”.(13)
E Knunianz enfeixa com um desafio:
— “Será que não é preciso ser sonso para exigir a deportação perpétua, quando nenhum dentre vós tem, certeza do dia de amanha? Toda a Rússia é presa de uma efervescência tremenda. Da noite para o dia, não restará pedra sobre pedra nem do antigo governo, nem de todo esse acervo de sentenças, de vereditos judiciários, e os que, hoje, atirastes no banco dos réus, passarão a ser os mais ativos militantes da jovem Rússia... Como podeis perder vosso tempo em tomar resoluções de papel?”(14)
O tribunal assim bombardeado não ousou condenar Knunianz a mais de quatro meses de prisão.
Tais as condições de luta em que se formou a rica experiência dos bolcheviques. Dessa experiência, adaptada à situação instável das relações de forças, é que Lênin, em 1905, às vésperas da revolução, em sua carta ao Comitê Central, formulava clara e fortemente os primeiros dados.
A estratégia da repressão variava: a estratégia da defesa devia, também ela, renovar-se. À coragem, era mister associar a agilidade, o espírito de iniciativa, para assegurar à energia revolucionária seu melhor rendimento.
Eis porque tão modestamente, Lênin negava a suas “reflexões antecipadas” o caráter de “tentativas de solução do problema”, e recomendava a seus camaradas que se inspirassem, em cada caso, “com as circunstancias concretas e com o instinto do revolucionário”.
Nem por isso é menos evidente que a autodefesa politica é comandada por alguns princípios essenciais, a maioria dos quais já está resumida nessa carta de Lênin, que analisamos atrás: atitude na formação de culpa, atitude na audiência, relações com os defensores.
A partir de então, a experiência confirmou os dados de Lênin e, mesmo antes do processo de Leipzig, numerosos revolucionários comportaram-se, nas prisões e perante os tribunais de todos os países, como verdadeiros êmulos dos bolcheviques.
Notas de rodapé:
(1) Lavisse et Rambaud, Histoire Générale, 2.a ed., t. XII, p. 393. (retornar ao texto)
(2) Tchernomordik: A Atitude dos Bolcheviques perante os juízes, p. 24, B.E., 1932. (retornar ao texto)
(3) Idem, p. 25. (retornar ao texto)
(4) Idem, p. 26. (retornar ao texto)
(5) Idem, ps. 25-26. (retornar ao texto)
(6) Idem, p. 26. (retornar ao texto)
(7) Idem, p. 27. (retornar ao texto)
(8) Idem, ps. 27-28. (retornar ao texto)
(9) Idem, p. 28. (retornar ao texto)
(10) Idem, p. 31. (retornar ao texto)
(11) Idem, p. 35. (retornar ao texto)
(12) Idem, p. 33. (retornar ao texto)
(13) Idem, p. 34. (retornar ao texto)
(14) Idem, p. 35. (retornar ao texto)