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A atividade produtiva que diz respeito a objetos práticos – o trabalho – que é a base de toda cognição humana. Somente dentro dos modos de desenvolvimento histórico dessa atividade, que transforma a natureza, todas as formas de pensamento são formadas, e somente dentro disso essas formas funcionam. Marx e Engels (1956f, p. 545) escreveram: “[...] A base mais essencial e imediata para o pensamento humano é precisamente a modificação da natureza pelo homem, e não apenas a natureza como tal, e a razão do homem desenvolveu-se de acordo com a forma como o homem aprendeu a modificar a natureza”. Uma análise da origem e do desenvolvimento do pensamento deve começar com um esclarecimento das características da atividade laboral humana.
Para os seres humanos, as entidades da natureza funcionam como objetos e meios de pegar ferramentas e usá-las. Marx e Engels (1956g, p. 190) escreveram: “Assim, algo dado pela própria natureza torna-se um agente da sua [do homem(1) atividade, um agente que ele conecta aos órgãos do seu corpo, alongando então as dimensões naturais deste último, não obstante a Bíblia”.
O processo de utilização das ferramentas de trabalho pressupõe o estabelecimento de uma meta e a orientação pela meta como uma imagem ideal do produto necessário. Marx e Engels (1956g, p. 189) descreveu essa característica básica do trabalho da seguinte forma:
No final do processo de trabalho obtém-se um resultado que existia na concepção da pessoa, mesmo no início do processo – isto é, idealmente. O homem não muda somente a forma do que lhe é dado pela natureza; no que é dado pela natureza, ele, ao mesmo tempo, realiza seu próprio propósito consciente, que como uma lei, determina o método e o caráter de suas ações e ao qual ele deve subordinar sua vontade.
A modificação do que é dado pela natureza é um ato de superação de sua imediatez. Os objetos naturais em si mesmos não teriam adquirido a forma que lhes é atribuída em conformidade com as exigências do homem na comunidade. Aqui as pessoas devem levar em conta, antecipadamente, aquelas propriedades dos objetos que permitem metamorfoses que são apropriadas tanto ao propósito definido quanto à natureza dos próprios objetos.(2) Sem isso, o objeto pode não mudar na direção exigida pelo propósito. Consequentemente, no processo de trabalho, o homem deve levar em conta não apenas as propriedades externas dos objetos, mas também uma medida de sua capacidade de agitação – suas conexões internas, das quais uma avaliação permite que suas propriedades e forma sejam alteradas e traduzidas de um estado para outro.(3) Esta medida não pode ser revelada antes de uma transformação prática dos objetos ou sem ela, pois é somente nesse processo que ela se revela.
Na modificação forçada, a pessoa introduz o objeto em um sistema de outros objetos, em interação com os quais ele adquire certa forma de movimento. Marx e Engels (1956f, p. 392) observaram: “a circunstância de que esses corpos ocorrem em uma conexão recíproca inclui o fato de que eles influenciam uns aos outros, e essa influência recíproca deles um sobre o outro é o movimento”.
Desta forma, a imediatez do objeto é removida – ele adquire um ser mediado e revela conexões internas e essenciais em seu movimento.(4) Naumenko (1968, p. 250) escreveu: “O interno ou essencial, em contraste com o externo, tem existência apenas em um relacionamento, tem um ser refletido em vez de imediato, um ser mediado em si mesmo”. O objeto obtém essa qualidade mediada em relação a si mesmo, mas apenas por meio de certos modos de atividade de uma pessoa – e a forma do movimento do objeto é reproduzida nessa atividade.(5) Duas circunstâncias são importantes aqui. Em primeiro lugar, essa reprodução é feita repetidamente e em condições e situações externas mais ou menos mutáveis. Em segundo lugar, as pessoas transmitem os modos dessa atividade umas às outras, de geração em geração, e os modelos e padrões desses modos devem ser usados para essa transmissão. Essas duas circunstâncias exigem que as pessoas selecionem e estabeleçam apenas as condições decisivas e genuinamente necessárias para reproduzir uma certa forma de movimento dos objetos. As condições incidentais são filtradas. Permanecem aquelas condições que realmente e necessariamente determinam os modos de atividade representados por seus padrões sociais.
Assim, a transformação dos objetos no processo de trabalho revela suas propriedades internas essenciais – as formas necessárias de seu movimento. Lenin (s.d.b, p. 199) escreveu:
A atividade do homem, que compôs uma imagem objetiva do mundo, muda a realidade externa, destrói sua certeza ( = muda certos aspectos ou qualidades) e assim remove suas características de aparência, externalidade e insignificância, pedindo-lhe o real eu-em-si e eu-para-si ( = objetivamente verdadeiro).
Marx e Engels analisaram essa característica do trabalho usando o exemplo da categoria de causalidade. Sabe-se que observar uma sequência simples de um evento após outro ainda não prova sua conexão causal – ou seja, a conclusão de post hoc, ergo propter hoc(6) é ilegítima. Em que consiste, então, a prova de uma conexão causal? Marx e Engels (1956f, p. 544) responderem à questão da seguinte forma - esta “prova da necessidade está incluída na atividade humana, na experimentação, no trabalho: se eu posso fazer algo post hoc, então ele se torna idêntico ao propter hoc”. No trabalho e na experimentação como formas de atividade sensorial-objetiva, em atos de reprodução de uma sequência de eventos, sua sequência incidental, uma após a outra, pode ser diferenciada de uma conexão necessária: “[...] A atividade do homem faz uma verificação no que diz respeito à causalidade” (MARX; ENGELS, 1956f, p. 545). Aqui, num único ato de fazer, um evento perde sua imediatez e aparência, tornando-se idêntico a outro evento; passa para o outro, encontrando nele a forma para sua própria manifestação. Esta é também uma atualização da conexão interna, essencial, universal e necessária entre eventos dados.
Na presença de requisitos apropriados, as pessoas podem revelar um movimento (interação) completamente definido de objetos se recriarem, em seu trabalho, as condições necessárias nas quais ele ocorre na natureza. Além disso, como Marx e Engels 1956f, p. 544-545) observaram, as pessoas “são capazes de evocar movimentos que não são encontrados de forma alguma na natureza (indústria) – pelo menos, não encontrados nessa forma – e podemos atribuir a esses movimentos certas direções e dimensões que são predeterminadas”. Assim, pode-se usar um vidro curvo para concentrar os raios solares em foco e obter o mesmo efeito que a concentração de raios em uma fogueira comum produz – esta ação prática (na verdade um experimento especial) prova que o calor vem do sol.
Marx e Engels (1956f) citam outro exemplo: se uma pessoa carrega uma arma e dispara, ela está esperando um certo efeito, pois pode rastrear todo o processo de conversão de uma substância dura em um gás e a pressão deste último sobre a bala. Conhecer as condições para tal conversão permite afirmar que ela será, necessariamente, repetida na próxima vez – isto é, a causalidade dos fenômenos é provada aqui. Depois desse exemplo, Marx e Engels (1956f, p. 545) formularam a seguinte tese: “tanto a ciência natural como a filosofia negligenciaram até agora completamente a investigação da influência da atividade de uma pessoa no seu pensamento”.
A atividade laboral, experimental em sua essência, permite às pessoas revelarem conexões necessárias e universais em objetos. Marx e Engels escreveram (1956f, p. 548-549): “[...] A forma da universalidade é a forma da completude interna [...]. A forma da generalidade ou universalidade na natureza é uma lei [...]”. Se uma pessoa sabe que o cloro e o hidrogênio se combinam em um gás e causam uma explosão quando expostos à luz e a uma certa temperatura e pressão, então ela sabe que isso ocorrerá sempre e em todos os lugares em que tais condições se desenvolverem. Esse conhecimento não depende de “ocorrer uma vez ou se repetir milhões de vezes ou de quantos corpos celestes existem” (MARX; ENGELS, 1956f, p. 549).
Aqui, Marx e Engels estão discutindo conhecer, e a elevação mental do isolado ao particular e depois ao geral, mas é claro que essas condições, que completam o processo internamente, são buscadas apenas na experimentação prática como uma forma particular de atividade de produção. Se as pessoas são capazes, na sua experiência prática, de encontrar e ter em conta as condições para reproduzir um determinado acontecimento, então essas condições são suficientes e necessárias, e o próprio evento é efetuado nessa atividade de forma inteiramente natural, de forma universal, em sua completude interna.(7)
Com o desenvolvimento da atividade prática, que é social na origem e nos modos de execução, as pessoas começam a reproduzir nessa atividade, em princípio, quaisquer objetos da natureza, bem como a criar objetos que são incluídos apenas potencialmente.(8) Isso torna-se possível porque as pessoas tratam a natureza do ponto de vista de todos os seus semelhantes, de toda a humanidade. Um determinado objeto está envolvido em sua experiência prática apenas com base nas necessidades sociais. Somente por meio deles a natureza se torna realidade também para a produção social, que transforma os objetos da natureza de acordo com suas leis objetivas, revela suas próprias possibilidades e completude interna.(9) Marx e Engels (1956a, p. 566) escreveram o seguinte a esse respeito:
A criação prática de um mundo de objetos, a reformulação da natureza inorgânica, é a afirmação do homem de si mesmo como um ser consciente e semelhante [...]. É certo que um animal também produz [...] Mas o animal produz apenas aquilo de que ele próprio ou seus filhotes têm necessidade imediata; ele produz unilateralmente, enquanto o homem produz universalmente [...] O homem reproduz toda a natureza [...]. As formas dos animais importam apenas em conformidade com uma medida e uma exigência do tipo a que pertencem, enquanto o homem é capaz de produzir de acordo com medidas de qualquer tipo, e sempre que ele é capaz de aplicar uma medida apropriada a um objeto [...].
O problema do homem como medida das coisas surgiu mesmo na antiguidade (Protágoras e outros) e muitas vezes levou ao subjetivismo, em que o próprio homem era considerado apenas um ser puramente natural. Sua solução tornou-se possível quando o homem passou a ser considerado um homem social. A humanidade que formou uma sociedade, na proporção do grau de sua universalidade, é capaz de reproduzir e assimilar objetos em conformidade com sua própria medida e essência. Davydova (1964, p. 303) escreveu:
O homem demonstra ser a medida de todas as coisas porque reproduz, nos modos de sua atividade com as coisas, as formas universais de existência e evolução das próprias coisas. É somente no homem, em sua atividade, que essas formas universais funcionam em forma pura, como tal [...].(10)
A universalidade da prática, bem como a sua capacidade direta de incorporação na natureza humanizada, que encontra aqui a sua própria medida (generalidade), fazem dela a base de todas as formas de cognição, incluindo a cognição teórica. É esta circunstância que foi formulada por Lenin (s.d.b, p. 195): “A prática é superior à cognição (teórica), pois tem tanto o mérito da generalidade como da realidade imediata”.
Notas de rodapé:
(1) Acréscimo de Davydov. (retornar ao texto)
(2) N. A.: “Para que a intenção ou propósito de uma pessoa seja incorporado num produto real, as ações devem estar em conformidade com a natureza dos objetos, condições e ferramentas de atividade. A atividade construtiva também é uma condição e método para o conhecimento aprofundado do mundo circundante: agindo sobre os objetos, correlacionando-os entre si, a pessoa passa a conhecer suas propriedades” (ANTSYFEROVA, 1969, p. 79). (retornar ao texto)
(3) N. A.: “‘Minha atividade’ com um objeto funciona como uma forma de movimento próprio do objeto e gira de acordo com leis independentes da minha vontade” (BIBLER, 1969, p. 193). (retornar ao texto)
(4) N. A.: “Uma conexão interna é realizada apenas em movimento” (NAUMENKO, 1968, p. 251). (retornar ao texto)
(5) N. A.: “O trabalho por meio de ferramentas coloca a pessoa, não em confronto direto com os objetos materiais, mas em confronto com a interação deles, que ela mesma cria, reproduz e monitora. Nesse processo, a pessoa também passa a conhecê-las” (LEONT’EV, 1964, p. 90). (retornar ao texto)
(6) N. T.: em latim: depois disso, então por causa disso. (retornar ao texto)
(7) N. A.: “[...] A medida de uma coisa, que na forma ‘natural’ – isto é, na natureza em si e por si mesma – nunca funciona numa expressão pura, em toda a sua ‘placidez’ [...]; é detectada apenas como resultado da atividade de uma pessoa, no cadinho da civilização – isto é, na natureza ‘criada artificialmente’” (WENKOV, 1968, p. 261-262). (retornar ao texto)
(8) N. A.: “[...] como em princípio o homem pode fazer de tudo o objeto do seu trabalho, ele produz universalmente [...]” (KOPNIN, 1969, p. 142). (retornar ao texto)
(9) N. A.: Rubinshtein (1969, p. 351) escreveu: “O homem, como sujeito, deve ser conduzido para dentro, para a parte interna da estrutura do real, e o problema da cognoscibilidade do real e do conhecedor acontece dentro dele [...]. O problema de relacionar o homem com o ser como um todo inclui uma relação com o homem, com as pessoas, pois inclui tanto as coisas como os sujeitos, as personalidades das pessoas”. (retornar ao texto)
(10) N. A.: “O homem, em sua experiência prática, destaca sua própria forma e medida de uma coisa e é orientado para ela em sua atividade” (WENKOV, 1968, p. 261). (retornar ao texto)