Actualidade da Teoria Leninista da Organização à Luz da Experiência Histórica

Ernest Mandel

Transcrição autorizada
logo

Fonte: MANDEL, Ernest. A Teoria Leninista da Organização. Lisboa: Edições Antídoto, 1975. pp. 119-154.
HTML:  Fernando A. S. Araújo
Direitos de Reprodução: © Edições Antídoto. Gentilmente cedidos pela Associação Política Socialista Revolucionária.


1. Marx não nos deixou uma teoria acabada da formação da consciência de classe do proletariado nem, do mesmo modo, uma teoria acabada do partido. Existem nas suas obras elementos fragmentários duma tal teoria mas esses elementos aparecem muitas vezes como contraditórios, pois evidenciam quer um quer outro dos aspectos da formação desta consciência de classe que prevalecem na análise marxista. Umas vezes surge o elemento que opta pela maturação subjectiva do proletariado a longo prazo — em função da própria condição proletária, quer dizer, em função da posição que o proletariado ocupa no processo de produção capitalista, e na sociedade burguesa em geral. Outras vezes, surge o elemento que destaque a imaturidade subjectiva imediata do mesmo proletariado — em função do peso da miséria, da alienação, do embrutecimento e, sobretudo, da sujeição à ideologia da classe dominante, tudo isto resultante, igualmente, da condição proletária.

Cabe a Lenine o mérito histórico de ter combinado estes elementos dispersos para formular ,uma teoria coerente da formação da consciência de classe proletária, teoria que constitui o alicerce da sua teoria de organização. Muitos dos mal-entendidos formulados a respeito desta teoria de organização e muitos dos processos de intenção imputados a Lenine ao longo de todo o século XX, provêm da recusa em compreender este ponto de partida teórico. É certo que, quando se fala de uma teoria leninista de organização, tende-se a fazer referência exclusivamente à brochura Que Fazer? e a reconverter mais de um quarto de século de actividade incansável no domínio da organização unicamente aos princípios enunciados nesta obra. Na medida em que não se veja em Lenine um Maquiavel hipócrita, que passa deliberadamente em silêncio uma parte das suas intenções sempre que “a conjuntura é desfavorável" na medida em que se lhe reconheça o mínimo de boa-fé e de coesão ideológica, sem as quais a discussão das suas ideias perde todo o sentido, esta tentativa simplificadora torna-se evidentemente infundada. Há na obra de Lenine uma constância de certos temas-chaves que se encontram expostos da maneira mais clara e mais convincente em Que Fazer? Mas à medida que a sua experiência se enriqueceu — antes de mais a experiência das lutas revolucionárias do proletariado russo de 1905, 1906 e 1917, e numa medida não negligenciável a experiência do movimento operário internacional durante e após a 1ª Guerra Mundial — Lenine integra na sua teoria de organização uma série de elementos suplementares, que encontraremos elaborados sobretudo nos escritos sobre a falência da Social-Democracia em 1914-1916, em O Estado e a Revolução e noutros escritos fundamentais de 1917, nos documentos dos primeiros congressos da Internacional Comunista e em «O Esquerdismo: Doença Infantil do Comunismo». É o conjunto destes elementos agrupados em torno das teses fundamentais de Que Fazer? e corrigindo-as em certos aspectos, que constitui a teoria leninista neste domínio, e não um momento desta, limitado no tempo.

Uma outra observação preliminar refere-se à tentativa de muitos críticos recusarem a teoria leninista de organização com base nas práticas burocráticas da URSS pós-leninista... Trata-se dum manifesto erro metodológico.

Certamente que a unidade da teoria e da prática de que se reclamam os marxistas — e que Lenine teria sido o primeiro a assumir por sua própria conta — permite confrontar, constantemente, as teorias com os seus resultados práticos. Mas ela exige que se demonstre que tais resultados derivam da teoria — e não de factores diferentes, ou até de teorias opostas. Condenar um manual de cirurgia porque um cirurgião falhou uma operação depois de ter feito os seus estudos com base nesse manual não é um procedimento científico muito sério. É preciso ainda demonstrar que foi a aplicação das teorias expostas no manual que causou a morte do paciente — e não um dos mil factores diferentes, independentes do teórico, que podem influir no desenrolar da intervenção cirúrgica, ou como consequência duma recusa deliberada em seguir o ensinamento recebido.

Por fim, é necessário distinguir o que, na teoria leninista de organização possui um valor universal, quer dizer, o que se aplica ao conjunto da época da crise geral do capitalismo, e deriva assim do conjunto das características fundamentais da sociedade burguesa, da produção capitalista e da natureza de classe do proletariado — e o que não é senão acidental, derivando de condições específicas do tempo e do espaço. Só para dar um exemplo: quantas vezes não se citou a passagem de Que Fazer? contra a eleição dos comités de partido, e a favor da sua designação pelo Centro, como prova das atitudes visceralmente «antidemocráticas» de Lenine? Esquecem-se de acrescentar que Lenine justifica estas proposições exclusivamente pelas condições difíceis de clandestinidade nas quais se encontrava o jovem Partido Social-Democrata Operário Russo; que a brochura Que Fazer? proclama ao mesmo tempo a necessidade da eleição e da maior divulgação de todos os comités e de todos os mandatários do Partido, desde que esteja assegurado o mínimo de liberdades democráticas e que as Teses do 2.0 Congresso da Internacional Comunista reafirmam o princípio da elegibilidade de todos os comités, abrindo de novo explicitamente, excepções, para as condições de clandestinidade extrema.

2. A teoria leninista da formação da consciência de classe proletária parte da distinção, que é essencial para o marxismo, entre a classe em si e a classe para si, que o jovem Marx tinha já estabelecido em «A Miséria da Filosofia». Desta distinção decorrem o conceito da existência objectiva das classes sociais, independentemente do seu nível de consciência, e o conceito de luta de classes objectiva, independentemente do nível de auto-compreensão dos interesses históricos das classes em presença. Estes dois conceitos de classes objectiva, e de luta de classes objectiva, são indispensáveis para a coesão interna do materialismo histórico e para se compreender a famosa definição do Manifesto Comunista:

«Toda a história da humanidade é a história da luta de classes».

É evidente que os escravos da Antiguidade e que os servos da Idade Média tinham ainda muito menos consciência dos seus interesses históricos de classe que os trabalhadores britânicos ou americanos de hoje. Negar o carácter de luta de classes aos grandes afrontamentos entre o Capital e o Trabalho, às grandes acções de classe do proletariado como, por exemplo, a greve geral italiana de 14 de Julho de 1948 ou as greves gerais belgas de 1950 e de 1960-1961, sob o pretexto de que a consciência dos proletários empenhados nestas batalhas não estava à altura das exigências da história, ou que estes se batiam por objectivos políticos que não saíam do domínio da democracia burguesa, é enterrar este conceito de classe objectiva e de luta de classes objectiva, e pôr um ponto de interrogação sobre todo o materialismo histórico. Não seria já a existência social que determinaria a consciência, mas a consciência - e só ela - que permitiria ajuizar da realidade de uma luta social que implica milhões de indivíduos. Mas, assim como a teoria leninista de organização nega os desvios deste subjectivismo extremo, também se opõe resolutamente ao objectivismo não menos mecânico que, sob o pretexto de que a luta de classes é para Marx o resultado inevitável da existência da sociedade capitalista e dos antagonismos que a dilaceram, vê na consciência o reflexo automático da existência social, e apaga assim a particularidade essencial da luta de classe proletária, aquela que a distingue de qualquer luta de classe do passado, a saber: a obrigação em que se encontra a classe operária de substituir uma sociedade e uma economia regídas por leis cegas e objectivas pela construção deliberada de uma sociedade e de uma economia novas e regídas pela direcção consciente dos produtores associados.

Uma vez que a construção do socialismo não pode ser o resultado automático nem da luta de classes no seio da sociedade burguesa, nem da simples libertação dos elementos da nova sociedade, presentes no seio da sociedade antiga, mas de uma organização consciente dos produtores, onível de consciência desses produtores determinará, numa medida apreciável, nas possibilidades de sucesso do empreendimento. Por outras palavras: da distinção estabelecida por Marx entre o conceito de classe em si e o de classe para si, Lenine deduziu a distinção do conceito de luta de classe elementar — resultado espontâneo, inevitável, das contradições de classe que o próprio modo de produção capitalista introduziu no seio da sociedade burguesa — e da luta de classe revolucionária, que é a única que permite transformar a primeira num assalto vitorioso contra a economia capitalista e o Estado burguês, e cujo êxito depende essencialmente do nível de consciência, de organização e de direcção do proletariado.

Certamente, a crítica de «voluntarismo» tantas vezes dirigida a Lenine é injustificada porque, na sua teoria, a luta de classe revolucionária não é nunca separada, mecanicamente, da luta de classe elementar. Ela não pode ser senão o produto desta, em certas condições históricas objectivas, claramente delimitadas. Contrariamente aos populistas, Lenine jamais acreditou que a simples «vontade revolucionária» ou «educação revolucionária» pudessem produzir uma revolução vitoriosa nas condições do czarismo. Sempre se preocupou em precisar que esta «vontade» e esta «educação» deviam partir da luta de classe elementar de uma classe social específica, o proletariado, ao qual o desenvolvimento do capitalismo na Rússia ia atribuir capacidades de luta e de organização de que não dispunha qualquer outra classe social da Rússia pré-capitalista. Nunca se esqueceu também de precisar que só em condições históricas bem determinadas — condições que geram periodicamente crises pré-revolucionárias, devido às contradições acumuladas no seio da sociedade russa sob o czarismo — o esforço de transformar a luta de classe elementar em luta de classe revolucionária podia dar os seus frutos.

Na ausênsia destas premissas — as únicas que permitem explicar de que modo a luta de classe elementar pode produzir uma «classe em si», pode produzir a consciência de classe proletária — a obra de uma vanguarda revolucionária não podia ter sucesso. Será interessante examinar os fundamentos socio-económicos destas premissas, no quadro do materialismo histórico; voltaremos mais adiante a isso. Mas retenhamos, de momento, apenas isto: o que distingue a teoria leninista de organização de outras teorias, mecanicistas ou voluntaristas, não é o facto de negar as ligações evidentes entre luta de classe elementar do proletariado e luta de classe revolucionária, nem de contestar que a primeira constitui a pré-condição da segunda (que uma maior amplitude da primeira não pode senão facilitar a eclosão da segunda). O que a distingue, é que ela contesta ligações automáticas e espontâneas entre a primeira e a segunda, prevê que a segunda não derivará da primeira se, às condições objectivas que presidem à sua eclosão, não se juntarem uma série de condições subjectivas que constituem o seu corolário fatal. É aí que encontramos todo o aprofundamento da teoria marxista da formação da consciência de classe proletária efectuada por Lenine, através da sua teoria de organização.

3. O nível preciso de consciência do proletariado não é nem o produto automático do seu lugar no processo de produção, nem também, o produto automático da sua experiência (e, portanto, da amplitude das suas lutas passadas e presentes). Esse nível resulta dum conjunto de factores muito mais complexos, e só a sua interacção permite explicar, em última análise, por que razão, numa época determinada, num país determinado, este nível é aquele que é.

A teoria leninista da formação da consciência de classe proletária começa por explicar que essa formação representa um processo desigual e descontínuo. Esse processo desigual e descontínuo de formação da consciência de classe proletária é, em primeiro lugar, o reflexo do processo histórico desigual e descontínuo da formação do próprio proletariado.

O conjunto dos operários assalariados, tal como aparecem num dado momento, num determinado país, não foi condenado; no mesmo momento, e nas mesmas circunstâncias a vender a sua força de trabalho. Uns são proletários industriais, filhos de proletários industriais, desde há várias gerações. Outros, acabaram de ser arrancados à sua aldeia natal e à agricultura ancestral. Uns, estão marcados pela vida e disciplinas colectivas da grande fábrica. Outros, sofrem a influência corporativa da pequena empresa e do trabalho semi-artesanal. Uns, estão impregnados da civilização dos grandes centros urbanos, onde a vida colectiva fora da fábrica prolonga muito naturalmente os impulsos solitários derivados do próprio trabalho industrial. Outros, sofrem o duplo efeito alienante da condição proletária e do habitat semi-rural isolado e atomizante. Uns, são educados, desde a infância, nas organizações operárias. Outros, estão submetidos à influência ideológica da classe burguesa transmitida pelas organizações clericais ou «neutras». A diversidade da consciência do proletariado, num determinado momento, é assim função duma estratificação que reflecte as origens históricas e as diferentes condições de vida e trabalho das diversas camadas proletárias.

Às raízes objectivas dessa estratificação do proletariado juntam-se raízes subjectivas não menos importantes. Cada operário não sofrerá da mesma maneira e no mesmo grau a influência ideológica da classe dominante. Diferenças de experiência, de inteligência, de temperamento, de carácter, farão reagir diferentemente diferentes membros duma mesma classe social, submetida às mesmas forças de exploração e de opressão. Mais cedo ou mais tarde a grande maioria da classe empenhar-se-á na luta — mas o facto de uns o fazerem mais depressa que outros, e compreenderem melhor o alcance geral da luta, tem evidentemente, uma importância decisiva sobre o comportamento quotidiano de uns e de outros — sobretudo fora dos períodos de grandes lutas. Se a estratificação social do proletariado tem causas objectivas, a estratificação subjectiva determina em ligação com ela, ao carácter descontínuo do desenvolvimento da consciência de classe. Este resulta por seu lado de uma característica fundamental da sociedade capitalista e da condição proletária, que é preciso lembrar a este propósito.

A classe operária sofre a exploração capitalista não em função duma qualquer prévia escolha ideológica, mas em função duma obrigação económica inevitável à qual não pode escapar, em condições «normais». Ela não pode deixar de trabalhar permanentemente, sem se ver condenada a morrer de fome (nos países neocapitalistas, de legislação social «generosa», as indemnizações de desemprego são impiedosamente suprimidas passado um certo tempo, se as autoridades burguesas chegarem à conclusão de que «o gajo não quer mas é trabalhar»). Quer dizer: no seu conjunto, a classe operária não pode estar permanentemente em luta e, fora dos períodos de luta revolucionárias que põem na ordem do dia o derrubamento do regime capitalista, toda a luta de classe neste regime desemboca inevitavelmente numa «reprivatização» parcial da classe, uma vez terminado o combate. Só os elementos mais conscientes, os mais enérgicos, os mais obstinados, resistirão a esta tendência em voltar à «luta pela existência», à «vida privada», que resulta da própria estrutura da sociedade e da economia capitalistas.

Esta mesma estrutura objectiva reflete-se, igualmente, através de uma estrutura mental, ideológica, por uma tendência à interiorização e à aceitação quotidiana das relações de produção capitalista. Até os operários mais «refractários» compram pão, pagam rendas e impostos e reproduzem assim, diariamente, as relações mercantis que constituem o fundamento do modo de produção capitalista, sem se apercebem disso. E travaram ao longo de decénios, lutas de classe ferozes, inclusivamente lutas políticas (como as dos Cartistas britânicos) inclusive insurreições, (como a dos operários de Lyon), sem por isso compreenderem que o capitalismo seria impossível sem a generalização das relações mercantis, sem a transformação da força de trabalho em mercadoria, e dos meios de produção em capital.

É indispensável um esforço de informação e formação teórica para desnudar todos os segredos e todos os mistérios da exploração capitalista. Este esforço, por definição, pode ser individual (ou no melhor dos casos, empreendido por grupos restritos de indivíduos); não pode ser o produto imediato da experiência. Ora, a grande massa só aprende pela experiência. Chegada ao seu estádio supremo, o da elaboração e da assimilação da teoria científica, a formação da consciência de classe do proletariado torna-se portanto, inevitavelmente, um processo individualizado e individualizante (isto é, aliás, um dos mecanismos essenciais pelos quais o operário alienado e desumanizado pode começar a conquistar uma individualidade independente. Mas isto é outra história). Torna-se, pela mesma razão, um processo de diferenciação no seio da classe operária.

4. O conceito leninista da consciência de classe proletária levado ao seu mais alto nível apoia-se, também, no papel relativamente autónomo da teoria marxista no processo histórico. Implica, por outras palavras, a impossibilidade de aceder a uma consciência global da condição proletária e das condições da sua superação — a uma consciência global do capitalismo e do socialismo — numa base puramente experimental, empírica, pragmática.

A experiência dos trabalhadores e de alguns grupos de trabalhadores é, forçosamente, uma experiência fragmentária e fragmentada da realidade social, limitada pelo horizonte preciso no qual se desenrola a sua existência: algumas empresas, alguns bairros, algumas cidades. As lutas que partem dessa experiência imediata são por esse facto marcadas pelo selo duma consciência parcelarizada que reflecte — mesmo que se tente negá-lo — o trabalho parcelarizado, que é característico do proletariado, com o seu corolário inevitável de reificação, de alienação e de «falsa consciência».

O carácter, inevitavelmente corporatista, destas lutas implica que a consciência de classe elementar, que resulta das lutas de classe elementares comporta numerosos aspectos que estão em contradição com uma luta de classe no sentido profundo e histórico do termo. Pois esta consciência parcelarizada reproduz divisões no seio do proletariado, que resultam das condições da própria produção capitalista e que a burguesia se esforça por manter a todo o custo. O proletariado não se torna uma classe para si — não se «constitui em classe», para retomar a fórmula de Marx — senão na medida em que esses factores de divisão sectorial, corporatista, localista, regionalista, nacionalista, recista, cedam o passo à consciência unificadora dos interesses comuns a todos os proletários, independentemente das particularidades de profissão, de ocupação, de qualificação, de habitat, de raça, de religião, ou de nacionalidade.

Mas se, numa certa etapa do seu desenvolvimento, o modo de produção capitalista favorece, incontestavelmente, a eclosão de lutas unificadores e gerais da classe operária, vê-se claramente que essas lutas não chegam para substituir a consciência fragmentária e parcelarizada por uma consciência global, totalizante, de todas as contradições capitalistas e de todas as condições de vitória do socialismo. Independentemente dos factores acima mencionados, que entravam a formação duma tal consciência globalizante, há o simples facto de que essas lutas generalizadas não são mais que momentos «pontuais» da existência operária, que só se produzem uma ou duas vezes durante a vida de cada geração operária (e em certas gerações nem sequer uma única vez confrontar a Alemanha entre 1933 e 1968!). Nestas condições, a origem puramente empírica duma tal consciência de massa, baseada naquilo que foi efectivamente vivido, torna os factores que determinam o carácter fragmentário da consciência operária infinitamente mais poderosos que os factores que operam em sentido contrário.

Uma das ideias-mestras de Que Fazer?, que conserva hoje todo o seu valor universal como no momento em que esta obra foi redigida, é que o proletariado não pode — aceder a uma consciência global da realidade capitalista — da sua própria existência — senão através duma prática social globalizante, isto é, através duma prática política. Mais exactamente: que só pode aceder a esta consciência de classe, levada à sua mais alta expressão, aquela minoria da classe operária disposta a (e capaz de prosseguir uma actividade política permanente mesmo nos períodos de recuo do movimento de massa, mesmo nas fases de «reprivatização» da maioria dos trabalhadores, mesmo nas fases de ascenso da influência da ideologia burguesa e pequeno-burguesa no seio da classe operária. Eis o fundamento materialista da necessidade dum partido de vanguarda, proclamado por Lenine.

A maneira como Lenine privilegiou, deliberadamente, esta praxis política que traz constantemente ao de cima todos os aspectos da realidade capitalista, oposta à praxis trade-unionistaeconomicista») que se contenta em agitar os trabalhadores em torno da exploração e da opressão imediatas, sofridas na sua própria empresa, bairro, cidade, (e quando muito: região, país) está na base de inúmeros mal-entendidos e interpretações mal intencionadas. Os fundamentos teóricos desta concepção são contudo manifestos. O que Lenine contesta — e o que contestaram antes dele Marx e Engels, salvo talvez nalgumas frases das suas obras de juventude, e mesmo estas isoladas em geral do seu contexto — é que a acumulação gradual e descontínua da experiência imediata conduz «no fim de contas» a reproduzir uma análise teórica, que somente um esforço particular tinha podido produzir inicialmente (evidentemente num contexto histórico determinado, em última análise, pela existência prévia da sociedade burguesa e da luta de classe proletária). Cem greves por reivindicações imediatas, mesmo que travadas com o maior ardor do mundo, não levarão necessariamente a uma consciência de classe globalizante, socialista. Basta estudar a experiência das lutas de classe na Grã-Bretanha durante a segunda metade do século XIX, a experiência das lutas de classe nos Estados Unidos durante o período 1940-1970, para nos apercebermos disso, imediatamente.

Somente uma actividade que ultrapasse as lutas «economicistas» pode, em definitivo, conduzir a uma consciência que ultrapasse o trade-unionismo. Dificilmente se podem aceitar as premissas da dialéctica materialista, da teoria marxista do conhecimento, e contestar a razão de ser desta tese de Lenine. A necessidade de um partido operário de vanguarda decorre, portanto, da necessidade de desenvolver permanentemente tal actividade, e da impossibilidade em que se encontra a massa operária no seu conjunto de a desenvolver de maneira contínua em regime capitalista, em função da sua própria estratificação objectiva e dos poderosos obstáculos subjectivos que impedem uma acumulação constante, gradual, contínua, da consciência de classe no seu seio.

O partido de vanguarda funciona assim, objectivamente, como a memória colectiva da classe operária, a qual impede que os conhecimentos acumulados durante as fases de lutas generalizadas se percam nas inevitáveis fases consecutivas de refluxo dessas lutas, a qual assegura a continuidade da acumulação de consciência nas condições de descontinuidade da actividade política das massas.

5. Assim, o conceito de partido de vanguarda reconduz-nos ao da periodicidade das lutas de classe generalizadas, do carácter cíclico das grandes explosões operárias. Descobrimos, assim, um fundamento materialista suplementar da teoria leninista de organização. Porque a organização separada da vanguarda operária é função das tarefas a cumprir. Ela é um instrumento de trabalho destinado a um fim preciso: transformar as explosões operárias generalizadas, em assaltos vitoriosos contra a economia capitalista e o Estado burguês; derrubar com sucesso o sistema capitalista e edificar um Estado operário — a ditadura do proletariado — que prepara, com êxito, a construção duma sociedade socialista.

A organização de vanguarda, separada das massas, não é o único modelo de organização operária possível. Ela é função duma perspectiva histórica precisa: a da inevitabilidade das explosões revolucionárias a médio ou longo prazo, que não se transformarão em revoluções vitoriosas senão graças à actividade da vanguarda organizada. A margem desta actualidade da revolução, a organização separada da vanguarda apenas se justifica em função de objectivos puramente ideológicos, que correm o risco de degenerar em sectarismo. Sempre que as únicas lutas previsíveis forem lutas parciais, apenas é possível para as largas massas a acumulação gradual de experiências, e o único papel mediador que a vanguarda poderia desempenhar seria o da transmissão dos conhecimentos pela propaganda e pela educação — um papel que não justifica uma organização separada e que pode ser realizada no seio das organizações de massa, com a condição que elas respeitem um mínimo de democracia interna.

É preciso sublinhar a este propósito, que antes de 1914, Lenine apenas tinha uma visão precisa da actualidade da revolução para a Rússia (e alguns outros países da Europa oriental). Em função desta perspectiva, absteve-se de preconizar a organização separada da vanguarda em relação aos partidos sociais-democratas de massa antes de 4 de Agosto de 1914. Contentou-se em promover uma coordenação bastante frouxa entre as diversas correntes de esquerda, no seio da 2ª Internacional, sobretudo aquando das discussões que estalaram quanto à atitude a adoptar em relação à guerra imperialista que se anunciava. Só quando o deflagrar desta guerra o convenceu de que o sistema capitalista mundial estava a passar por uma fase histórica de crise geral, que colocava a revolução na ordem do dia num grande número de países, só nessa altura, estendeu o princípio da organização separada da vanguarda ao conjunto do globo e se pronunciou pela criação da Internacional Comunista.

O carácter cíclico das explosões de grandes lutas do conjunto do proletariado, que são potencialmente revolucionárias, deriva da complexidade das circunstâncias necessárias para abalar profundamente a sociedade burguesa e para conduzir os trabalhadores a ultrapassarem o estádio das lutas pelas reivindicações imediatas. Só excepcionalmente o conjunto dos factores necessários se encontrarão reunidos, quer os factores objectivos (crise profunda das relações de produção capitalistas) quer os subjectivos (desunião e paralisia crescentes das classes dominantes; enfraquecimento do aparelho de repressão; descontentamento crescente das massas laboriosas atingindo o nível duma cólera surda; sentimento crescente de que os motivos de descontentamento não podem ser sanados pela via das reformas graduais e de reajustamentos «legais», antes exigem urna acção directa; uma confiança crescente das massas na sua própria força, quer dizer, na sua capacidade de desencadear tal acção, etc.). É evidente, que atendendo às tendências profundas à interiorização das relações capitalistas, e à reprivatização duma massa de operários, após as lutas parciais, tendências essa inerentes ao próprio modo de produção capitalista, o concurso de circunstâncias que torna a situação madura para as explosões revolucionárias, ou potencialmente revolucionárias, tem de ser forçosamente excepcional. Pelas mesmas razões — às quais se alia neste caso o peso da derrota e do cepticismo que a engendra — uma explosão abortada, que não atingiu o seu objectivo, não pode ser seguida, a breve prazo, por uma outra vaga ascendente de lutas generalizadas, mas sim por um declínio da combatividade das massas, até que um novo conjunto de condições favoráveis desencadeie um novo ascenso. Falamos aqui de «explosões» não no sentido de acontecimentos isolados, mas de fases da luta de classes radicalizando-se e generalizando-se progressivamente, em oposição a outras fases de lutas dispersas, reduzidas e em volta de objectivos unicamente imediatos (não podemos aqui tratar das relações entre o ciclo económico e o ciclo da luta de classes, mas indicaremos somente de passagem que estas relações não são as de uma relação mecânica e directamente causal).

O papel que a organização de vanguarda tem a cumprir em relação às explosões periódicas de lutas generalizadas deve ser examinado simultaneamente pelas fases preparatórias das lutas potencialmente revolucionárias e pelas fases de lutas generalizadas propriamente ditas. Trata-se dum duplo aspecto da relação dialéctica «vanguarda/massas» que estão por elucidar. Mas a própria natureza da revolução socialista, e da tomada do poder pela destruição do aparelho de Estado burguês implica a necessidade duma acção conscientemente centralizadora de lutas parciais, mesmo que tenham uma grande amplitude. Se a sociedade burguesa pode efectivamente começar a desintegrar-se na periferia, nas fases de crise revolucionária agudas, esta desintegração nunca pode levar à dissolução automática do Estado burguês. Este tem de ser conscientemente destruído. Sempre que esta destruição não se efectiva, um processo contra-revolucionário pode ser encetado com êxito, mesmo por forças numéricamente restritas, opondo-se a massas muito numerosas. O papel desempenhado pelos restos do exército imperial durante as semanas decisivas de Novembro 1918 - Março 1919 na Alemanha, é disso a melhor ilustração, com as mais trágicas consequências históricas.

6. A relação entre a vanguarda e as massas em período não-revolucionário é antes de mais uma relação pedagógica de mediação. A organização de vanguarda não funciona só como a memória colectiva da classe, mas esforça-se, constantemente, por comunicar os conhecimentos acumulados, graças às lutas e às experiências passadas, ao maior número possível de proletários.

Quando falamos de processo pedagógico, não esquecemos, evidentemente, o carácter dialéctico desse processo, no qual não existe uma verdade acabada que é transmitida de maneira passiva a uma multidão que se supõe ignorante, mas antes um metabolismo de experiências, um fluxo e refluxo constante de impressões e de ideias, entre a massa menos politizada e a vanguarda organizada. Só quando este fluxo é firmemente estabelecido nos dois sentidos a vanguarda terá superado, definitivamente, o risco de se tornar uma seita ou uma capela, e desempenhará verdadeiramente o papel de memória e de acumulador de experiências colectivas de toda a classe.

A mediação entre o programa, resumindo todos os ensinamentos das lutas passadas e a sua generalização teórica, e às massas, cujas preocupações permanecem circunscritas em volta de objectivos imediatos, não pode fazer-se, exclusivamente, através duma pedagogia literária ainda que Lenine tenha sublinhado, justamente, que o que separa o revolucionário do reformista ou do centrista, é que o revolucionário prossegue a propaganda revolucionária e a preparação da revolução mesmo nas fases não-revolucionárias. Esta mediação exige, igualmente, uma forma especifica de acção. O «grande plano estratégico» de Lenine contido em Que Fazer? que consiste em transformar o partido de vanguarda em confluente e estimulante de todos os movimentos de protesto e de rebelião contra o regime estabelecido que não sejam objectivamente reaccionários, foi mais tarde estendido por ele para o conceito de reivindicações transitórias, retomado por Trotsky no seu Programa de Transição, em 1938.

A estratégia das reivindicações transitórias implica a elaboração de reivindicações que, embora partindo das preocupações imediatas das massas, não são realizáveis e assimiláveis no quadro do regime capitalista. Sempre que se tornam eixos de acções generalizadas da classe operária, as reivindicações transitórias tendem, portanto, a quebrar os quadros da economia capitalista e do Estado burguês. Só quando as massas têm imediatamente tais objectivos para as suas acções, é que estas poderão, dificilmente, ser reabsorvidas pelo regime, pela concessão de reformas. Ora elas só têm tais objectivos no momento duma greve geral, se tiverem sido sistematicamente preparadas anteriormente, tanto pela propaganda como pelas «acções exemplares», e pela formação no seu seio de quadros operários que encarnem todo este processo de mediação e que o transmitam quotidianamente aos seus companheiros de trabalho.

Seria acreditar em milhares de milagres supor a massa capaz de encontrar, por instinto, no momento duma grande explosão revolucionária, as reivindicações necessárias para fazer triunfar a revolução e capaz de encontrar a resposta às mil e uma manobras reformistas que permitiram o estrangulamento de todas as explosões revolucionárias na Europa Ocidental apesar das relações de força momentaneamente bastante favoráveis à revolução.

A centralização do partido, sobre a qual Lenine insistiu fortemente no debate em volta de Que Fazer? é antes de mais uma centralização política, a compreensão do facto de que a massa operária não acederá à consciência de classe, ao seu nível mais elevado, a não ser com a condição de ultrapassar o horizonte estreito das experiências nascidas de lutas parciais na condição, por outras palavras, de centralizar as suas experiências. O aspecto puramente organizacional desta centralização é secundário, no raciocínio de Lenine, e muito influenciado ainda pelas condições específicas de ilegalidade em que se construiu a social-democracia russa.

A fraqueza da argumentação de Rosa Luxemburgo contra Lenine, é que ela concentra o seu fogo sobre o aspecto organizacional da centralização leninista, menosprezando largamente o seu aspecto político. Fazendo isto, é obrigada a sugerir uma teoria da formação da consciência de classe proletária diferente da de Lenine, muito mais simplista e simultaneamente muito mais optimista, que considera que esta consciência de classe só pode ser função da luta e que a luta é suficiente para lhe assegurar a formação. A experiência histórica, e nomeadamente a da revolução Alemã, nega esta tese. Nem sequer as lutas mais amplas, mais tumultuosas, mais longas (pense-se no período de agitação e de lutas de massa quase ininterruptas de 1918 a 1923) bastaram para assegurar por si próprias um nível de consciência suficientemente elevado às massas operárias alemães que Ihes permitisse levar a cabo uma revolução vitoriosa. Como estas lutas estão condenadas ao declínio periódico, qualquer teoria que vê a formação desta consciência como simples função duma experiência de luta descontínua, sem papel acumulador, centralizador de experiências, e memória colectiva do partido de vanguarda, condena esta formação a um trágico trabalho de Sísifo.

Para prestar justiça a Rosa Luxemburgo, é necessário acrescentar que desde 1914, e sobretudo desde a eclosão da revolução Alemã, ela compreendeu perfeitamente que a diferenciação ideológica do proletariado não seria automaticamente ultrapassada pela amplitude das próprias lutas. É por isso que preconizou a organização autónoma da vanguarda operária, conceito que inclui nos seus escritos programáticos tais como «O Que quer a Liga Spartacus?». Pode portanto dizer-se que se tornou igualmente leninista, no final da sua vida.

7. Quando examinamos a relação «vanguarda/massas» em período revolucionário, o quadro muda e as insuficiências dos debates de 1902-1903 aparecem claramente. É sobretudo a propósito destas experiências que Lenine fez importantes correcções à sua teoria de organização, depois de 1905, de Agosto de 1914 e sobretudo em 1917.

A experiência histórica demonstrou, com efeito, que a existência dum Partido Social-Democrata organizado (para retomar a terminologia de Lenine dos anos 1902-1903) não é de modo nenhum garantia do papel objectivo que desempenhará na crise revolucionária. A história ofereceu-nos o exemplo de numerosos partidos que tendo, durante anos, apregoado as suas convicções marxistas, no momento duma crise revolucionária não só não se esforçaram por conduzir esta até à conquista do poder pelo proletariado, como ainda refrearam por todos os meios o ardor revolucionário desse mesmo proletariado, ou mesmo tomaram a iniciativa de organizar, deliberadamente, a vitória da contra-revolução. O comportamento da social-democracia alemã durante a crise revolucionária em 1918-1919 é disso o exemplo mais típico — mas não o único. A chegada ao poder de Hitler não é mais que o resultado final da derrota da revolução Alemã, derrota na qual a responsabilidade histórica dos Noske, Ebert, Scheidemann foi evidente.

Rosa Luxemburgo e Trotsky pressentiram tal eventualidade mais cedo que Lenine, nos anos 1903-1906. Por outras palavras, compreenderam que as próprias massas operárias que, nas condições de funcionamento «normal» do capitalismo, eram fortemente influenciadas pela ideologia burguesa e pequeno-burguesa, podiam, em momentos de crise revolucionária, dar provas de uma iniciativa, de uma combatividade, de uma energia revolucionária que ultrapassava de longe as dos militantes educados durante anos na teoria marxista.

Quando examinamos o balanço histórico das lutas de classe desde 1914, encontramos esta lição não uma vez ou duas, mas literalmente dezenas de vezes. Enumerar toda a lista de explosões revolucionárias em que os partidos operários foram ultrapassados pela actividade revolucionária das massas, é enumerar, praticamente, todas as crises revolucionárias que sucederam nos países imperialistas — e também de uma série de crises nos países coloniais e semi-coloniais.

Quererá isto dizer que a história demonstrou que a iniciativa espontânea das massas (inclusivamente as massas não organizadas) é condição suficiente de vitórias revolucionárias e que basta eliminar os «travões organizados» para assegurar a queda do capitalismo? De modo nenhum. Porque o balanço histórico é duplo a este respeito. Por um lado, as massas revelaram-se em numerosos momentos, «mais revolucionárias» que os partidos. Mas essas mesmas massas mostraram-se igualmente incapazes de assegurar por elas próprias o derrubamento do capitalismo.

Na ausência de uma vanguarda organizada que conquiste a hegemonia política no seu seio e que concentre a sua energia em objectivos precisos — destruição do aparelho de Estado burguês; tomar nas mãos os meios de produção e a sua organização num modo de produção socializado; construção de um novo poder — os seus mais corajosos assaltos, as suas mais audaciosas vitórias, permanecerão sem futuro. O exemplo mais trágico e mais convincente a este respeito foi fornecido pela experiência espanhola de Julho de 1936. Pode-se extrair uma série de conclusões, por conseguinte deste balanço histórico o que permite efectuar uma actualização da teoria leninista de organização — actualização essa que o próprio Lenine efectuou no decurso do período 1914-1921.

Antes de mais, é claro que a dialéctica «massas/partidos» complica-se e alarga-se, à luz do 4 de Agosto de 1914. Torna-se, assim uma dialéctica «massas-partidos não seguindo uma linha revolucionária-partidos revolucionários». A existência de partidos não constitui por si só uma garantia contra a reabsorção da classe operária pela ideologia burguesa e pequeno-burguesa. Pelo contrário, pode tornar-se o motor e o veículo desta reabsorção como foi o caso, primeiro, da Social-Democracia e, seguidamente, de uma série de PC de massa (em França, Itália, Grécia, etc...). Não se trata já de opor simples e mecanicamente a «organização" à «espontaneidade", mas de examinar em que condições teóricas e práticas a organização eleva a consciência de classe do proletariado, estimula a sua hostilidade em relação à sociedade burguesa no seu conjunto, prepara a sua intervenção massiva nas crises revolucionárias, no sentido do seu aprofundamento e da sua generalização, e educa os seus próprios militantes (a vanguarda) para uma intervenção nas crises, com vista à sua transformação em revoluções socialistas vitoriosas.

Por outro lado, é claro que a amplitude da actividade das massas, no momento de crises revolucionárias, não permite confinar o processo histórico à única relação recíproca «partidos-massas não organizadas». Toda a crise revolucionária, mesmo num país mediamente industrializado, levou, quase sempre, até agora, à criação de formas de auto-organização das massas (Sovietes, conselhos operários), embriões do futuro poder proletário e instrumentos imediatos de uma dualidade de poder de facto. O aspecto profundamente revolucionário destes órgãos de autor-organização e de auto-governo das massas, é que eles abrangem precisamente o conjunto do proletariado e dos explorados, incluindo as camadas não organizadas ou inactivas durante os períodos «calmos» ou de lutas de classe apenas parciais.

Lenine apreendeu a importância-chave do fenómeno dos Sovietes com um pouco de atraso relativamente a Trotsky, que via neles, desde 1906,a forma de organização geral da futura revolução russa vitoriosa, e a forma de organização universal das revoluções proletárias. Mas compreendeu-a a fundo — a não apenas de maneira «oportunista», nos momentos revolucionários — como lhe reprovam críticos contemporâneos mal intencionados. E Lenine compreendeu melhor que Trotsky a dialéctica particular «Sovietes-partido revolucionário» que este último não assimilou a fundo senão em 1917: se é impossível uma revolução num país industrializado sem organização de tipo Soviético — o que não implica evidentemente que a terminologia seja por todo o lado a mesma — do conjunto do proletariado, é igualmente impossível uma revolução vitoriosa sem que no seio dos Sovietes uma vanguarda organizada conquiste a hegemonia política através de um trabalho de explicação de propaganda e de agitação incansável, sem a sua acção organizadora, centralizadora, sobre a imensa energia das massas libertadas no momento da crise revolucionária.

Este «papel dirigente do partido» não implica nem o conceito de partido único (que contradiz pelo contrário o conceito de organização soviética, pois esta, na medida em que deve ser a organização do conjunto dos trabalhadores, há de reflectir inevitavelmente a diversidade dos níveis de consciência, de filiação ideológica e organizacional do próprio proletariado, quer dizer, implica a inevitável multiplicidade dos partidos operários e das tendências operárias), nem o de uma hegemonia adquirida por medidas administrativas ou repressivas. A história da revolução russa confirma-o: o emprego de tais medidas esteve sempre na proporção inversa da hegemonia política que detinha o partido bolchevique no seio do proletariado e das mais amplas massas. Durante todo o tempo em que essa hegemonia esteve garantida — adquirida pela superioridade da sua linha política e pela sua capacidade de convencer as massas desta — não teve de recorrer a nenhuma medida repressiva no seio da classe operária e da própria organização soviética (salvo medidas de auto-defesa contra aqueles que tinham, no sentido literal do termo, desencadeado a luta armada contra o poder dos Sovietes). Toda a medida administrativa e repressiva que foi levado a tomar no seio da classe operária resultou de um declínio prévio da sua influência política no seio de determinados sectores desta.

Podem-se procurar as causas deste declínio neste ou naquele erro político conjuntural cometido pelos dirigentes bolcheviques, em determinado momento preciso; o debate a este respeito, dura desde há meio século e não terminará tão cedo. Mas para quem estude esta época histórica com um mínimo de sentido objectivo, é evidente que as razões essenciais do isolamento progressivo dos bolcheviques no seio das massas em 1920-1921 não residem neste ou naquele aspecto secundário da situação ou da política de Lenine, mas nas condições objectivas que determinavam, por seu turno, uma passividade crescente das massas. (Não extraímos daqui, evidentemente, a conclusão menchevique, segundo a qual mais teria valido «não tomar o poder num país atrasado», nem a conclusão apologética para o estalinismo segundo a qual «o socialismo não se podia construir na Rússia senão com meios bárbaros, terroristas». Tudo depende do grau relativo da actividade das massas; uma política correcta do Partido poderia reformá-Ia, depois de 1923, poderosamente).

É aqui que se pode reconhecer quanto se enganam todos aqueles que, na esteira da Rosa Luxemburgo de 1903 — a de 1918 era já mais prudente! — acreditam ainda hoje que o recurso à actividade das massas é o único remédio histórico para os riscos de burocratização conservadora do partido. Pelo menos no caso da URSS a passividade crescente das massas precedeu (e numa larga medida determinou) a burocratização crescente do partido. E pode reconhecer-se a Lenine este mérito histórico se se comparar o grau de actividade das massas nos sovietes dirigidos politicamente pelos bolcheviques e a de outros sovietes, a duração do funcionamento real dos sovietes na Rússia com a do funcionamento de organismos de tipo soviético nos países onde os bolcheviques não foram nada hegemónicos no seio da classe operária, a existência e o «papel dominante» dum partido revolucionário de vanguarda de tipo leninista, não somente não podem ser considerados como a antítese de uma organização autónoma das massas em organismos de tipo soviético, mas pelo contrário asseguram-lhe uma existência mais longa e um melhor e mais eficaz funcionamento.

8. É evidente, que Lenine subestimou no decurso do debate de 1902-1903, os perigos que para o movimento operário podiam surgir do facto de se constituir uma burocracia no seu seio. Concentrou, nesta época, o seu fogo sobre a intelligentsia pequeno-burguesa e os «trade-unionistas», de horizontes curtos. Como Rosa Luxemburgo assimilou melhor a experiência da social-democracia alemã, que já nesta época era muito ambígua, pôde, melhor do que Lenine, pressentir que o perigo maior de conservadorismo e de adaptação ao status quo, não surgiria nem de uma nem de outros, mas do próprio aparelho social-democrata. Instalado nas organizações de massa e encostado às migalhas da «democracia burguesa», este aparelho tinha na realidade já «realizado o socialismo por sua própria conta». Ia adoptar uma orientação fundamentalmente conservadora, racionalizada pela necessidade de «defender as conquistas feitas». O revisionismo e o reformismo encontram aí as suas raízes materiais e sociais bem como ideológicas. Esta «dialéctica das conquistas parciais» foi em seguida estendida pela burocracia estalinista à escala mundial.

À luz da experiência histórica, Lenine aprendeu muito melhor, a partir de 1914, o papel-chave que a burocracia das organizações operárias pode desempenhar na transformação destas, de instrumento para impulsionar revoluções socialistas, em instrumentos de defesa do status quo social. Na sua luta contra a social-democracia internacional, deu uma importância essencial à análise da sua burocratização. A partir de 1918, apreendeu, profundamente, o perigo de burocratização do primeiro Estado operário, e consagrou uma boa parte dos últimos anos da sua vida a um combate contra este perigo.

Ao fazê-lo, Lenine elevou aliás o problema do domínio ideológico e psicológico («os hábitos burocráticos», «os métodos burocráticos», «a mentalidade burocrática») ao nível social. Para ele a burocracia é uma camada social que defende interesses sociais determinados (essencialmente no domínio da retribuição, do modo de vida, dos rendimentos. É por isso que não é uma classe social, não ocupa um lugar particular e historicamente necessário no processo de produção, coisa que fizeram, pelo menos numa época determinada da sua história, todas as classes sociais). E desde 1918, transfere uma boa parte deste raciocínio para o domínio do Estado soviético e para a luta contra a deformação burocrática deste.

Brandiu-se contra Lenine o argumento de que o modelo de organização do partido que defendia teria facilitado o processo de burocratização na URSS. Como esta crítica lhe foi efectivamente dirigida desde 1902-1903, aparece com a aureola de análise profética. Respondemos já mais atrás à objecção segundo a qual Lenine teria proposto um modelo de organização não-democrático. Porém, a questão do modelo de organização possível dos partidos operários merece uma análise mais detalhada.

Na medida em que se rejeite o clube de discussão ou a reunião informal e descontínua de indivíduos, a história forneceu-nos dois modelos essenciais de organização dos partidos operários: modelo baseado na selecção individual de militantes, a partir do seu nível de consciência individual e da sua actividade; e o das secções baseadas na circunscrição eleitoral, agrupando todos aqueles que afirmam a sua adesão aos princípios socialistas. Estes dois modelos, um «restrito», o outro «lato», mostram bastante bem a divisão da social-democracia russa em «bolcheviques» e «mencheviques».

Qual dos dois modelos se revelou mais democrático? Diremos à luz da experiência histórica, que o segundo se burocratizou mais rapidamente que o primeiro e que ao burocratizar-se, se reconverteu, aliás fundamentalmente, no segundo modelo.

Não é difícil compreender que o agrupamento de grande número de membros passivos — geralmente ausentes às reuniões — sem nível de consciência e «comprometimento» elevados, é bem mais facilmente manipulável por um aparelho ou por demagogos individuais, do que uma comunidade de activistas comprometidos toda a sua vida na luta por uma mesma causa, que julga a eficácia de cada um à luz da contribuição que ele traz para a defesa desta causa. Quantos mais elementos passivos um partido «lato» tiver, mais fácil se torna a burocratização. Quanto mais um partido de vanguarda fôr composto exclusivamente de militantes activos, maior é a garantia contra a burocratização. Foi, aliás afogando os elementos activos e conscientes num grande número de aderentes passivos, que Estaline facilitou grandemente a burocratização do partido bolchevique, depois da morte de Lenine —, Lenine exprimira já tal receio no seu famoso Testamento.

O problema da burocratização do partido operário — fenómeno social facilitado ou entravado por um determinado modelo de organização, mas de modo nenhum causado por este — está estreitamente ligado ao da democracia operária, isto é, à possibilidade de controle dos membros sobre o aparelho, e da elaboração da linha política em função dos interesses de classe a defender (e não, tendo em vista interesses sectoriais, ou pior ainda, tendo em vista a auto-justificação, perigo que ameaça qualquer organização numa sociedade baseada na produção mercantil e na divisão social do trabalho). A este respeito, o balanço histórico é também claro. No tempo de Lenine, o partido bolchevique foi um partido vivo e democrático, atravessando periodicamente debates de tendência apaixonados, permitindo a expressão de opinião em desacordo com as da direcção (ou da sua maioria) não excomungando nenhuma das posições oposicionistas, permitindo que a experiência resolvesse as divergências tácticas. Pode afirmar-se, sem cair em erro, que este partido foi mais democrático, e permitiu debates de tendência mais sistemáticos, do que qualquer partido operário importante na história — e certamente do que os partidos social-democratas.

É verdade que no momento em que foi maior o isolamento dos bolcheviques, no momento da introdução da NEP, Lenine propôs e conseguiu que se aprovasse a interdição das fracções no partido. De resto, só propôs isso por razões conjunturais e como medida passageira, e nunca como questão de princípio. Pode pensar-se que esta decisão foi errada — e à luz da história pensamos que o foi efectivamente, porque permitiu a Estaline asfixiar progressivamente o direito de tendência, e deste modo toda a democracia no interior do partido.

Mas aqueles que citam triunfalmente este «pecado» de Lenine como a confirmação do seu «pecado original» pretensamente anti-democrático esquecem, com demasiada facilidade, que no próprio momento em que Lenine se comprometeu a favor da supressão do direito de fracção, confirmou solenemente o direito do oposicionista Chliapnikov imprimir os seus pontos de vista oposicionais e de os distribuir, pagos pelo partido, a todos os membros do partido, em centenas de milhares de exemplares: que nos mostrem um único partido social-democrata em que isto tenha sido praticado, não dizemos sistematicamente, mas mesmo, só ocasionalmente!

E até no X Congresso do PCR, em que foi tomada a decisão de proibir as fracções, Lenine tornou a confirmar, não menos solenemente, o direito de tendência, opondo-se a uma emenda de Riazanov que quis impedir que se elegesse no futuro o comité central segundo as plataformas de tendências. Se surgem divergências fundamentais, não se pode impedir que elas sejam resolvidas perante o conjunto do partido, exclamou ele («Obras Completas», tomo 32, página 267 da edição alemã, Dietz Verlag, Berlim 1961). Foi a partir do momento em que a burocracia impediu tais discussões, e este direito de tendência, que o partido cessou de ser o instrumento revolucionário forjado por Lenine. Um outro argumento tem ainda sido citado para justificar a «tendência burocrática inerente» às concepções bolcheviques de organização que o próprio Lenine se teve que opor ao seu próprio «aparelho» cada vez que esboçou uma viragem para o «movimento revolucionário de massas», principalmente em Abril de 1917. Aqueles que defendem esta concepção esquecem um pequeno detalhe: é que neste drama histórico não havia apenas três personagens principais: o herói «positivo» — as massas revolucionárias; o «traidor» — o aparelho central do partido; e Lenine, oscilando entre uns e outros. Havia ainda milhares de operários bolcheviques militantes de base. Foi o empenhamento resoluto destes trabalhadores de vanguarda que permitiu que as «Teses de Abril» de Lenine triunfassem tão rapidamente sobre a resistência da maioria do comité central, no início da revolução russa. Foi a ausência desta camada mediadora decisiva que impediu Lenine de realizar o mesmo sucesso em 1922-1923, no decurso do seu «último combate» contra Estaline.

Eis-nos, portanto, chegados a uma categoria sociológica, em lugar de considerações psicológicas e puramente ideológicas. É esta categoria de trabalhadores de vanguarda, que incarnam a consciência de classe do proletariado, quase sós nas fases de recuo ou de estagnação do movimento de massas, em comunhão intima com a maioria da sua classe quando este mesmo movimento de massas atinge o seu nível mais elevado, que constitui o elo central da concepção leninista de organização.

Resumiremos esta concepção afirmando que ela consegue efectuar a união dos elementos de continuidade e de descontinuidade, de pedagogia e de aprendizagem permanente dos educadores, de centralização e de democracia, inerentes à luta proletária. Incarna, assim, a tradição humanista e revolucionária da história contemporânea.


Este texto foi uma colaboração
logo
Inclusão 12/07/2009
Última alteração 23/12/2012