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Primeira Edição: Publicado pela primeira vez no livro: Karl Marx, Das Kapital. Kritik der politischen Oekonomie, Erster Band, Zweite verbesserte Auflage, Hamburg, 1872. Publicado segundo a edição original. Traduzido do alemão.
Fonte: Obras Escolhidas em três tomos, Editorial"Avante!"
Tradução: José BARATA-MOURA.
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo, março 2007.
Direitos de Reprodução: © Direitos de tradução em língua portuguesa reservados por Editorial
"Avante!" - Edições Progresso Lisboa - Moscovo, 1982.
Antes do mais, tenho de dar conta aos leitores da primeira edição das alterações feitas na segunda edição. Salta aos olhos a divisão mais clara do livro. As notas adicionais estão por toda a parte assinaladas como notas à segunda edição. Em relação ao texto mesmo o mais importante é:
No capítulo I, 1, a dedução do valor através da análise das equações em que todo o valor de troca se expressa está conduzida com maior rigor científico, do mesmo modo que a conexão entre a substância do valor e a determinação da grandeza do valor pelo tempo de trabalho socialmente necessário, apenas aludida na primeira edição, está [agora] expressamente acentuada. O capítulo I, 3 (A forma-valor) foi completamente refundido, o que a dupla exposição da primeira edição já impunha. Observo, de passagem, que aquela dupla exposição foi ocasionada pelo meu amigo Dr. L. Kugelmann, em Hannover. Encontrava-me em casa dele de visita na Primavera de 1867 quando as primeiras provas chegaram de Hamburgo e ele persuadiu-me de que, para a maioria dos leitores, seria necessária uma explicação adicional da forma-valor, mais didáctica. A última secção do primeiro capítulo, «O carácter de feitiço(2*) das mercadorias, etc», foi em grande parte alterada. O capítulo III, 1 (Medida dos valores) foi cuidadosamente revisto porque esta secção, na primeira edição — com a remissão para a explicação já dada em Zur Kritik der Polit. Oek. [Para a Crítica da Economia Política], Berlin 1859 —, havia sido negligentemente tratada. O capítulo VII, particularmente Parte 2, foi significativamente refundido.
Seria inútil entrar em pormenor nas alterações do texto, frequentemente apenas estilísticas, [que] aqui e além [se verificam]. Elas estendem-se por todo o livro. Contudo, verifico agora, com a revisão da tradução francesa a aparecer em Paris, que várias partes do original alemão exigiriam aqui uma refundição mais enérgica, ali uma maior correcção estilística ou ainda uma eliminação mais cuidadosa de lapsos ocasionais. Faltou para tanto o tempo, uma vez que só no Outono de 1871, no meio de outros trabalhos urgentes, tive notícia de que o livro estava esgotado e de que a impressão da segunda edição devia começar logo em Janeiro de 1872.
O entendimento que Das Kapital [O Capital] rapidamente encontrou em amplos círculos da classe operária alemã é a melhor paga do meu trabalho. Um homem, [que] economicamente [se situa] no ponto de vista da burguesia, o senhor Mayer, um fabricante de Viena, manifestou pertinentemente numa brochura[N52] publicada durante a guerra franco-alemã[N53] que o grande sentido teórico, que passava por ser património alemão, tinha sido completamente perdido pelas chamadas classes ilustradas da Alemanha, revivendo pelo contrário de novo na sua classe operária.
A Economia Política permaneceu na Alemanha até à hora presente uma ciência estrangeira. Gustav von Gülich, em Geschichtliche Darstellung des Handels, der Gewerbe usw. [Exposição Histórica do Comércio, da Indústria, etc], nomeadamente nos dois primeiros volumes da sua obra editados em 1830, tinha já em grande parte debatido as circunstâncias históricas que entre nós tratavam o desenvolvimento do modo de produção capitalista e, portanto, também a construção da sociedade burguesa moderna. Faltava, pois, o solo vivo da Economia Política. Ela foi importada como mercadoria acabada de Inglaterra e de França; os seus professores alemães permaneceram alunos. A expressão teórica de uma realidade alheia transformou-se nas suas mãos numa colecção de dogmas, por eles interpretados no sentido do mundo pequeno-burguês que os circundava e, portanto, mal interpretados. Tentou-se dissimular o sentimento não totalmente reprimível de impotência científica e a inquietante consciência de se ter de ensinar num domínio de facto alheio com o aparato de uma erudição histórico-literária ou com a mistura de um material alheio, tirado das chamadas ciências cameralísticas(3*), uma salada de conhecimentos por cujo purgatório o esperançado(4*) candidato à burocracia alemã tinha de passar.
Desde 1848 a produção capitalista desenvolveu-se rapidamente na Alemanha e faz já, hoje em dia, florescer a vigarice. Mas o destino permaneceu igualmente adverso para os nossos especialistas. Enquanto se podiam entregar imparcialmente à Economia Política, faltavam na realidade alemã as condições económicas modernas. Assim que estas condições vieram à existência, aconteceram em circunstâncias que não mais permitiam o seu estudo imparcial dentro do horizonte burguês. Na medida em que é burguesa — isto é, [na medida em que] apreende a ordem capitalista, não como etapa histórica transitória de desenvolvimento, [mas] inversamente, como figura absoluta e última da produção social —, a Economia Política só pode permanecer ciência enquanto a luta de classes permanecer latente ou se revelar apenas em fenómenos isolados.
Tomemos a Inglaterra. A sua Economia Política clássica ocorre no período da luta de classes não desenvolvida. O seu último grande representante, Ricardo, torna, por fim, conscientemente a oposição dos interesses de classe, do salário e do lucro, do lucro e da renda fundiária, ponto de arranque das suas investigações, ao apreender esta oposição ingenuamente como lei natural da sociedade. Porém, com isto, a ciência burguesa da Economia tinha também alcançado a sua barreira intransponível. Ainda em vida de Ricardo, e em oposição a ele, a crítica fez-lhe face na pessoa de Sismondi(5*).
O período seguinte, de 1820-1830, assinala-se na Inglaterra por uma vitalidade científica no domínio da Economia Política. Foi o período tanto da vulgarização e difusão da teoria de Ricardo como da sua luta contra a velha escola. Travaram-se brilhantes torneios. O que então foi feito é pouco conhecido no continente europeu, uma vez que a polémica está em grande parte dispersa por artigos de revista, escritos de ocasião e folhetos. O carácter imparcial desta polémica — apesar da teoria de Ricardo excepcionalmente já servir também de arma de ataque contra a economia burguesa — explica-se pelas circunstâncias do tempo. Por um lado, a própria grande indústria estava apenas a sair da sua infância, como fica já demonstrado pelo [facto] de que só com a crise de 1825 ela abre o ciclo periódico da sua vida moderna. Por outro lado, a luta de classes entre capital e trabalho permanecia confinada ao plano recuado — politicamente, pela discórdia entre os governos e os feudais agrupados em torno da Santa Aliança[N47] e a massa do povo conduzida pela burguesia; economicamente, pela querela do capital industrial com a propriedade fundiária aristocrática, que, em França, se escondia por detrás da oposição da propriedade de parcelas e da grande propriedade fundiária e que, na Inglaterra, rebentou abertamente desde as leis dos cereais[N33]. A literatura da Economia Política em Inglaterra durante este período faz lembrar o período de tempestade [Sturm und Drangperiode] económica em França depois da morte do Dr. Quesnay, mas apenas como um Verão de S. Martinho faz lembrar a Primavera. Com o ano de 1830 sobreveio a crise de uma vez por todas decisiva.
A burguesia, em França e Inglaterra, tinha conquistado o poder político. Daí em diante a luta de classes ganhou, praticamente e teoricamente, formas mais e mais declaradas e ameaçadoras. Dobrou a finados pela Economia burguesa científica. Não mais se tratava agora [de saber] se este ou aquele teorema era verdadeiro, mas de se era útil ou prejudicial ao capital, cómodo ou incómodo, de se era ilegal ou não. Para o lugar da pesquisa desinteressada passou o pugilato profissional pago, para o lugar da investigação científica imparcial a má consciência e a má intenção da apologética. Entretanto, mesmo os importunos tratadinhos, que a Anti-Corn-Law League(6*), com os fabricantes Cobden e Bright à cabeça, deitou ao mundo, ofereceram, se não um interesse científico, por certo que um interesse histórico pela sua polémica contra a aristocracia proprietária de terras. A legislação de comércio livre[N54] desde Sir Robert Peel também arrancou à Economia vulgar este último aguilhão.
A revolução continental de 1848 repercutiu-se também em Inglaterra. Homens que ainda reivindicavam um significado científico e que queriam ser mais do que meros sofistas e sicofantas das classes dominantes procuraram pôr em harmonia a Economia Política do capital com as reivindicações do proletariado, que agora já não era possível ignorar. Daí um sincretismo sem espírito, que John Stuart Mill melhor representa. É uma declaração de bancarrota da Economia «burguesa» que o grande sábio e crítico russo N. Tchernichevski, na sua obra Esboço da Economia Política segundo Mill, já magistralmente esclareceu.
Na Alemanha, o modo de produção capitalista chegou, portanto, à maturidade, depois do seu carácter antagónico se ter revelado já ruidosamente em França e Inglaterra através de lutas históricas, enquanto o proletariado alemão já possuía uma consciência teórica de classe mais decidida do que a burguesia alemã. Por isso, logo que uma ciência burguesa da Economia Política parecia aqui tornar-se possível, havia-se de novo tornado impossível.
Nestas circunstâncias, os seus porta-vozes dividiram-se em duas fileiras. Uns — gente esperta, ávida de ganho, prática — agruparam-se em torno da bandeira de Bastiat, do representante mais chão e, portanto, mais famoso da apologética económica vulgar; os outros, orgulhosos da dignidade professoral da sua ciência, seguiram J. St. Mill na tentativa de conciliar o inconciliável. Tal como no tempo clássico da Economia burguesa, os alemães também permaneceram no tempo do seu declínio meros alunos, repetidores e seguidores, pequenos vendedores ambulantes do grande negócio estrangeiro.
O desenvolvimento histórico peculiar da sociedade alemã fecha, portanto, a porta aqui a todo o aperfeiçoamento original da Economia «burguesa», mas não à sua crítica. Na medida em que tal crítica representa, em geral, uma classe, só pode representar a classe cuja vocação histórica é o revolucionamento do modo de produção capitalista e a final abolição das classes — o proletariado.
Os porta-vozes instruídos e não instruídos da burguesia alemã tentaram, antes do mais, passar em silêncio Daí Kapital, tal como tinham conseguido com os meus escritos anteriores. Logo que esta táctica deixou de corresponder às condições do tempo, escreveram, sob o pretexto de criticarem o meu livro, instruções «para tranquilização da consciência burguesa», mas encontraram na imprensa operária — vejam-se, por exemplo, os artigos de Joseph Dietzgen no Volksstaat[N55] — campeões de maior peso a quem ainda hoje devem uma resposta(7*).
Na Primavera de 1872, apareceu em Petersburgo uma excelente tradução russa do Kapital. A edição de 3000 exemplares está agora já quase esgotada. Já em 1871 o senhor N. Sieber (Зибeръ), professor de Economia Política na Universidade de Kíev, no seu escrito: (Teoria do Valor e do Capital de D. Ricardo), tinha demonstrado que a minha teoria do valor, do dinheiro e do capital, nos seus traços fundamentais, era um aperfeiçoamento necessário da doutrina de Smith e de Ricardo. O que surpreende o europeu ocidental na leitura do seu sólido livro é a manutenção consequente do ponto de vista puramente teórico.
O método empregue no Kapital foi pouco entendido, como já o demonstram as interpretações entre si contraditórias [que] dele [se fizeram].
Assim, a Revue Positiviste[N58] de Paris censura-me, por um lado, porque trato a Economia metafisicamente e, por outro lado — imagine-se! —, porque me limito a uma dissecação meramente crítica do dado, em vez de prescrever receitas (comtianas?) para as casas de pasto do futuro. Contra a censura de metafísica, observa o Prof. Sieber:
«Na medida em que se trata propriamente da. teoria, o método de Marx é o método dedutivo de toda a escola inglesa, cujos defeitos e vantagens são comuns aos melhores economistas teóricos.»[N59]
O senhor M. Block — Les Théoriciens du Socialisme en Allemagne. Extrait du Journal des Économistes, juillet et août 1872(8*) — descobre que o meu método é analítico e diz, entre outras coisas:
«Par cet ouvrage M. Marx se classe parmi les esprits analytiques les plus éminents.»(9*)
Os autores de recensões alemães, naturalmente, gritam que é sofística de Hegel. O ,,Вжcтникъ Eвроы" (Mensageiro da Europa)[N60] de Petersburgo, num artigo que trata exclusivamente do método do Kapital (número de Maio de 1872, pp. 427-436), acha o meu método de pesquisa rigorosamente realista, mas o meu método de exposição infelizmente alemão-dialéctico. Diz ele(10*):
«À primeira vista, se se julga da forma exterior da exposição, Marx é o maior filósofo ideal e, precisamente, no sentido alemão, isto é, no mau sentido da palavra. De facto, porém, ele é infinitamente mais realista do que todos os seus antecessores em matéria de crítica económica... De maneira nenhuma se lhe pode chamar um idealista.»
Não posso responder melhor ao autor do que através de alguns extractos da sua própria crítica, que, além disso, poderão interessar a muitos dos meus leitores para quem o original russo é inacessível.
Depois de uma citação do meu prefácio a Kritik der Pol. Oek., Berlin, 1859, pp. IV-VII, onde debati a base materialista do meu método, o autor prossegue:
«Para Marx uma só coisa é importante: encontrar a lei dos fenómenos, de cuja investigação ele se ocupa. E, para ele, é importante não apenas a lei que os rege na medida em que eles têm uma forma acabada e permanecem numa conexão, tal como é observada num dado período de tempo. Para ele, é ainda acima de tudo importante a lei da sua mudança, do seu desenvolvimento, isto é, da passagem de uma forma à outra, de uma ordem de conexão à outra. Uma vez descoberta esta lei, investiga em pormenor as consequências por que se dá a conhecer na vida social... Por consequência, Marx esforça-se por uma só coisa: por demonstrar, através de uma investigação científica rigorosa, a necessidade de determinadas ordens das relações sociais e por constatar, tão irrepreensivelmente quanto possível, os factos que lhe servem de pontos de partida e de apoio. Para isso é perfeitamente suficiente que ele, com a necessidade da ordem presente, demonstre, ao mesmo tempo, a necessidade de uma outra ordem, a que a primeira inevitavelmente tem de passar, sendo totalmente indiferente que os homens acreditem nela ou não acreditem, estejam conscientes dela ou não estejam conscientes. Marx considera o movimento social como um processo histórico-natural, dirigido por leis que não só são independentes da vontade, da consciência e da intenção dos homens, como inversamente antes determinam o seu querer, consciência e intenções... Quando o elemento consciente na história da cultura desempenha um papel tão subordinado, é evidente então que a crítica, cujo objecto é a própria cultura, não pode, menos do que qualquer outra coisa, ter por base qualquer forma ou qualquer resultado da consciência. Isto significa que não é a ideia mas apenas o fenómeno exterior, que lhe pode servir de ponto de partida. A crítica limitar-se-á à comparação e confronto de um facto, não com a ideia mas com o outro facto. Para ela apenas é importante que ambos os factos possam o mais possível ser rigorosamente investigados e que realmente constituam um em face do outro diversos momentos do desenvolvimento; antes de tudo, porém, é importante que, não menos rigorosamente, seja pesquisada a série das ordens, a sequência e ligação em que as etapas de desenvolvimento aparecem. Mas, dir-se-á, as leis universais da vida económica são as mesmas, sendo totalmente indiferente que se apliquem ao presente ou ao passado. É precisamente isto que Marx nega. Segundo ele, semelhantes leis abstractas não existem... Em sua opinião, pelo contrário, cada período histórico possui as suas leis próprias... Assim que a vida ultrapassou um dado período de desenvolvimento, passou de um dado estádio a outro, começa também a ser guiada por outras leis. Numa palavra, a vida económica oferece-nos um fenómeno análogo à história do desenvolvimento em outros domínios da Biologia... Os velhos economistas enganavam-se acerca da natureza das leis económicas quando as comparavam às leis da Física e Química... Uma análise mais profunda dos fenómenos provou que os organismos sociais se diferenciam uns dos outros tão fundamentalmente como os organismos vegetais e os organismos animais... Sim, um mesmo fenómeno está submetido a leis completa e totalmente diversas em consequência da estrutura global [Gesamtbau] diversa daqueles organismos, do desvio dos seus órgãos individuais, da diferença das condições em que funcionam, etc. Marx nega, por exemplo, que a lei da população seja a mesma para todos os tempos e para todos os lugares. Assegura, pelo contrário, que cada etapa de desenvolvimento tem a sua própria lei de população... Com o desenvolvimento diverso da força produtiva alteram-se as relações e as leis que as regem. Quando Marx coloca a si próprio o objectivo de, a partir deste ponto de vista, investigar e explicar a ordem económica capitalista, formula apenas de um modo científico exacto o objectivo que toda a investigação rigorosa da vida económica tem de ter... O valor científico de semelhante pesquisa reside no esclarecimento das leis particulares que regem a génese, existência, desenvolvimento e morte de um dado organismo social e a sua substituição por um outro, superior. E, de facto, o livro de Marx tem este valor.»
Quando o autor descreve tão apropriadamente aquilo a que chama o meu método real e tão generosamente o que à minha aplicação pessoal dele concerne, que outra coisa descreveu ele senão o método dialéctico?
Certamente que o modo de exposição se tem de distinguir formalmente do modo de investigação. A investigação tem de se apropriar do material em pormenor, de analisar as suas diversas formas de desenvolvimento e de seguir a pista do seu vínculo interno. Somente depois de completado este trabalho pode o movimento real ser exposto em conformidade. Se se consegue isto e se a vida do material se reflecte, então, idealmente [ideell] poderá parecer que se está perante uma construção a priori.
O meu método dialéctico é, pela base, não apenas diverso do de Hegel mas o seu directo oposto. Para Hegel, o processo do pensamento — que ele transforma mesmo num sujeito autónomo sob o nome de Ideia — é o demiurgo do real, que forma apenas o seu fenómeno exterior. Para mim, inversamente, o ideal [das Ideelle] não é senão o material transposto e traduzido na cabeça do homem.
Critiquei o lado mistificador da dialéctica de Hegel há já quase 30 anos, numa altura em que ela ainda estava em moda. Mas, precisamente, quando elaborava o primeiro volume de Das Kapital, a epigonagem[N61] rabujenta, arrogante e medíocre, cuja palavra pesa hoje na Alemanha culta, comprazia-se a tratar Hegel como o bom do Moses Mendelssohn, no tempo de Lessing, tinha tratado Spinoza, a saber: como «cão morto». Confessei-me, portanto, abertamente discípulo daquele grande pensador e coqueteei mesmo aqui e ali no capítulo sobre a teoria do valor com o modo de expressão que lhe é peculiar. A mistificação que a dialéctica sofre às mãos de Hegel de modo nenhum impede que tenha sido ele a expor, pela primeira vez, de um modo abrangente e consciente as suas formas de movimento universais. Nele, ela está de cabeça para baixo. Há que virá-la para descobrir o núcleo racional no invólucro místico.
Na sua forma mistificada, a dialéctica tornou-se moda alemã, porque ela parecia glorificar o existente. Na sua figura racional, ela é um escândalo e uma abominação para a burguesia e para os seus porta-vozes doutrinários, porque, na compreensão positiva do existente, ela encerra também ao mesmo tempo a compreensão da sua negação, da sua decadência necessária; porque ela apreende cada forma devinda no fluir do movimento, portanto, também pelo seu lado transitório; porque não se deixa impressionar por nada; porque, pela sua essência, é crítica e revolucionária.
O movimento pleno de contradições da sociedade capitalista faz-se sentir do modo mais flagrante para o burguês prático nas vicissitudes do ciclo periódico que a indústria moderna atravessa e no seu ponto culminante — a crise universal. Ela vem de novo a caminho, embora ainda nos estádios preliminares e, pela omnilateralidade do seu palco de acção, bem como pela intensidade do seu efeito, enfiará a dialéctica na cabeça mesmo dos afortunados do novo sacro império prusso-alemão.
Londres, 24 de Janeiro de 1873.
Karl Marx
Notas de rodapé:
(1*) Na quarta edição alemã do primeiro volume de O Capital (1890) os primeiros quatro parágrafos do presente posfácio foram omitidos. No presente tomo, do mesmo modo que na segunda edição, o posfácio é reproduzido integralmente. (retornar ao texto)
(2*) * No original Fetisch, do francês fetiche que tem a sua origem no português feitiço. Feitiço, para além de «encantamento», «bruxedo», também significa «objecto material adorado como ídolo pelos selvagens e a que se atribuem propriedades sobrenaturais» (cf. António de Morais Silva, Novo Dicionário Compacto da Língua Portuguesa, Lisboa, Confluência, 10.a ed., s. d., vol. I, p. 1060). (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(3*) * No original Kameralwissenschaften. Referência à cameralística, doutrina financeira, económica e administrativa do absolutismo feudal dos pequenos Estados alemães (séculos XVII e XVlll). (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(4*)Hoffnungsvolle. Na 3.a e 4.a edições: hoffnunglose, sem esperança. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(5*) Veja-se o meu escrito Zur Kritik, etc, p. 39. (Nota de Marx.) (retornar ao texto)
(6*) Em inglês no texto: Liga contra a Lei dos Cereais. (Nota dá edição portuguesa) (retornar ao texto)
(7*) Os arengadores pastosos da economia vulgar alemã reprovam o estilo e a exposição do meu escrito. Ninguém pode ajuizar mais rigorosamente dos defeitos literários de Das Kapital do que eu próprio. Todavia, para proveito e alegria destes senhores e do seu público, quero citar aqui um juízo inglês e um juízo russo. A Saturday Review[N56], inteiramente inimiga das minhas perspectivas, no seu anúncio da primeira edição alemã, disse: A exposição «confere também às questões económicas mais áridas um encanto (charm) próprio». O ,,C.-II. Вжлoмcти"[N57] [Notícias de Sampetersburgo], no seu número de 20 de Abril de 1872, observa, entre outras coisas: «A exposição, à excepção de poucas partes demasiado especializadas, distingue-se pela compreensibilidade geral, clareza e, apesar da elevação científica do seu objecto, por uma vivacidade inabitual. Sob este ponto de vista, o autor... também não se assemelha de longe à maioria dos sábios alemães, que... escrevem os seus livros numa linguagem tão obscura e árida que rebenta com a cabeça do comum dos mortais.» Aos leitores da literatura professoral alemã nacional-liberal corrente, rebenta, contudo, algo de totalmente diferente da cabeça (Nota de Marx.) (retornar ao texto)
(8*) Em francês no texto: Os Teóricos do Socialismo na Alemanha. Separata do Jornal dos Economistas, Julho e Agosto de 1872. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(9*) Em francês no texto: Com esta obra o Sr. Marx situa-se entre os espíritos analíticos mais eminentes. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(10*) I. I. Kaufman. (retornar ao texto)
Notas de fim de tomo:
[N33] As chamadas Leis dos Cereais (Com Laws), visando restringir ou proibir a importação de cereais do estrangeiro, foram introduzidas na Inglaterra para salvaguardar os interesses dos grandes proprietários fundiários. Em 1838, Cobden e Bright, industriais de Manchester, fundaram a Anti-Corn Law League (Liga contra a Lei dos Cereais). Apresentando a exigência da plena liberdade de comércio, a Liga lutava pela revogação das Leis dos Cereais, com o objectivo de reduzir os salários dos operários e de enfraquecer as posições políticas e económicas da aristocracia fundiária. Em resultado desta luta, as Leis dos Cereais foram revogadas em 1846 o que significou uma vitória da burguesia industrial sobre a aristocracia fundiária. (retornar ao texto)
[N47] Santa Aliança: aliança reaccionária das monarquias europeias fundada em 1815 pela Rússia tsarista, a Áustria e a Prússia com vista a esmagar os movimentos revolucionários nos diferentes países e a salvaguardar os regimes monárquico-feudais. (retornar ao texto)
[N52] S. Mayer, Die soziale Frage in Wien. Studie eines «Arbeitgebers» , Wien 1871 (A Questão Social em Viena. Estudo de Um «Dador de Trabalho», Viena, 1871). (retornar ao texto)
[N53] A guerra franco-alemã ou (franco-prussiana) de 1870-1871 terminou com a derrota da França. (retornar ao texto)
[N54] Comércio livre: os seus partidários defendiam a não ingerência do Estado na vida económica do país. À cabeça do movimento dos free traders (partidários do comércio livre ou livre-cambistas) encontravam-se Cobden e Bright, que organizaram em 1838 a Liga contra as Leis dos Cereais (ver nota 33), cuja abolição foi uma vitória da burguesia industrial. (retornar ao texto)
[N55] Der Volksstaat (O Estado Popular): órgão central do Partido Operário Social-Democrata alemão (eisenachianos), publicado em Leipzig de 2 de Outubro de
1869 a 29 de Setembro de 1876. A direcção geral do jornal era assegurada por W. Liebknecht; August Bebel administrava a editora. Marx e Engels colaboraram no
jornal, auxiliando constantemente a sua redacção. Até 1869 o jornal publicou-se
com o nome de Demokratisches Wochenblatt (Semanário Democrático). (Ver nota 95.)
A referência é ao artigo de Joseph Dietzgen «Das Kapital. Kritik der politischen Oekonomie von Karl Marx», Hamburg 1867 («O Capital. Crítica da Economia Política, de Karl Marx», Hamburgo, 1867), publicado no Demokratisches Wochenblatt, números 31, 34, 35 e 36 de 1868. (retornar ao texto)
[N56] The Saturday Review of Politics, Literature, Science and Art (A Revista de Sábado de Política, Literatura, Ciência e Arte): semanário conservador britânico, que se publicou em Londres de 1885 a 1938. (retornar ao texto)
[N57] Sankt-Peterbúrgskie Védomosti (Notícias de Sampetersburgo): jornal diário russo, órgão oficial do governo. Publicou-se com este título de 1728 a 1914; entre 1914 e 1917 saiu com o título Petrográdskie Védomosti (Notícias de Petrogado). (retornar ao texto)
[N58] Trata-se de La Philosophie positive. Revue (A Filosofia Positiva. Revista), que se publicou em Paris entre 1867 e 1883. No seu terceiro número, de Novembro-Dezembro de 1868, foi publicada uma recensão breve do primeiro volume de O Capital, escrita por E. B. De-Roberty, adepto do positivismo de Auguste Comte. (retornar ao texto)
[N59] N. Sieber, Teoria tsénnosti i kapitala D. Rikardo v sviazi s pozdneichimi dopolneniiami i raziasneniiami (A Teoria do Valor e do Capital de D. Ricardo em Ligação com os Últimos Complementos e Explicações), Kíev, 1871, p. 170. (retornar ao texto)
[N60] Véstnik Evropy (Mensageiro da Europa): revista mensal histórica, política e literária russa, de tendência burguesa liberal. Publicou-se em Sampetersburgo de 1866 a 1918. (retornar ao texto)
[N61] Marx refere-se aqui aos filósofos burgueses alemães Ludwig Büchner, Friedrich Albert Lange, Eugen Dühring, Gustav-Theodor Fechner e outros. (retornar ao texto)
[N95] Demokratisches Wochenblatt (Semanário Democrático): jornal operário alemão, editado de Janeiro de 1868 a Setembro de 1869 em Leipzig sob a direcção de W. Liebknecht. O jornal desempenhou um importante papel na criação do Partido Operário Social-Democrata alemão. No congresso de Eisenach, em 1869, foi declarado órgão central do Partido Operário Social-Democrata e mudou de nome para Volksstaat. Marx e Engels colaboraram no jornal. (retornar ao texto)
Inclusão | 14/07/2008 |
Alteração | 14/03/2009 |