“Não existe meio termo entre a ditadura da burguesia e a ditadura do proletariado. Todos os sonhos de uma solução intermédia não passam de lamentações reaccionárias de pequeno-burgueses.”
LENINE(1)
Aparentemente, a questão da estratégia foi deixada de parte no relatório de Dimitrov e nos debates do congresso. Concentrando-se nas questões políticas imediatas, Dimitrov não poupou críticas aos “apelos sem futuro a favor da luta pela ditadura do proletariado”, às “frases gerais e às palavras de ordem gerais sobre a saída revolucionária da crise”, às “fórmulas gerais que não dizem nada”(2). “Eliminámos — disse no discurso de encerramento — as frases sonoras sobre as perspectivas revolucionárias”, a fim de “desembaraçar os nossos partidos de qualquer tendência para substituir a actividade bolchevique por frases revolucionárias ou discussões estéreis sobre a apreciação da perspectiva”(3).
Na realidade, esta preocupação de eficácia política encobria um propósito deliberado de desacreditar como “doutrinária” a perspectiva da revolução proletária, porque ela era inconciliável com a política de Frente Popular.
O oportunismo na táctica impunha o abandono da estratégia. E, no lugar onde antes estava a meta da conquista revolucionária do poder, surgiu uma espécie de semi-estratégia, o governo de frente única proletária ou de frente popular, como “etapa intermédia” entre a ditadura fascista e a ditadura do proletariado. Este foi o embrião da teoria da “revolução democrático-popular”, lançada no ano seguinte por Dimitrov, a propósito da guerra de Espanha. Aos “apelos sem futuro a favor da ditadura do proletariado” iria suceder a luta “realista” pela semi-revolução operário-pequeno-burguesa.
Um governo de novo tipo
Que espécie de governo era o governo de frente única proposto por Dimitrov como coroamento da política de Frente Popular?
A sua posição acerca do assunto apresenta, como todo o relatório, duas faces: de um lado, irrepreensíveis garantias de princípio; do outro lado, soluções políticas concretas, que as comprometem e anulam. Só pondo em confronto estas duas faces compreenderemos como o reformismo e a retórica revolucionária se casam como um todo em Dimitrov, num típico jogo centrista.
Os comunistas, disse Dimitrov, deviam estar preparados sem hesitação para a formação de um governo de frente única proletária ou de frente popular, de luta contra a reacção e o fascismo, governo que não tinha que se manter no quadro da democracia burguesa mas devia adoptar “medidas resolutas contra os magnates contra-revolucionários da finança e os seus agentes fascistas”. “Exigimos de cada governo de frente única... que realize reivindicações radicais”... “por exemplo, o controlo da produção, o controlo dos bancos, a dissolução da polícia, a sua substituição pela milícia operária armada, etc.”. O erro dos comunistas alemães ao entrar no governo de Saxe em 1923 fora justamente não terem utilizado as suas posições “antes de tudo para armar o proletariado”.
O governo de frente única era, pois, muito claramente um governo a formar quando o aparelho de Estado da burguesia estivesse “suficientemente desorganizado e paralisado”, “na véspera da vitória da revolução soviética”. Era “no fundo, uma questão quase análoga” à palavra de ordem de Governo Operário e Camponês defendida pelo 4.º e 5.º congressos da IC(4)(4).
Esta a face revolucionária. Passemos agora à concretização.
A formação do governo de frente única dependia da existência de uma “crise política”. Esta expressão, que Dimitrov, não por acaso, usou insistentemente(5), significava uma alteração radical em relação ao passado, cujo alcance é necessário sublinhar, antes de irmos mais longe.
Até aí, a IC considerara como condição para se poder encarar o apoio ou participação dos comunistas em qualquer governo a existência de uma crise revolucionária, isto é, de uma situação em que o regime burguês no seu conjunto se encontrasse à beira do descalabro. O papel do Governo Operário e Camponês seria precisamente precipitar o colapso do poder burguês, acelerar a instauração do poder soviético.
Ao substituir, de forma aparentemente casual, “crise revolucionária” por “crise política”, Dimitrov deslocava a questão do governo para um terreno inteiramente novo. A entrada dos comunistas para o governo passava a ser admissível e necessária numa situação em que os trabalhadores e os seus sindicatos “se insurjam impetuosamente contra o fascismo e a reacção, mas sem estarem ainda prontos a sublevarem-se para lutar sob a direcção do partido comunista pela conquista do poder soviético”, quando as forças aliadas exigissem “medidas implacáveis contra os fascistas e os outros reaccionários”(6).
Quer dizer: Onde antes se tinha em vista um governo para acabar com o capitalismo, agora tratava-se de um governo para acabar com o fascismo. Por isso mesmo, seria “um organismo de colaboração da vanguarda revolucionária do proletariado com os outros partidos antifascistas, no interesse de todo o povo trabalhador, um governo de luta contra a reacção e o fascismo”, tendo como base uma “plataforma anti-fascista”. Um tal governo, avisou Dimitrov, “não pode trazer a salvação definitiva”, porque “não está à altura de derrubar a dominação de classe dos exploradores”(7). Destinava-se a “esmagar ou derrubar o fascismo, sem passar imediatamente à liquidação da ditadura da burguesia”(8).
Vemos agora porque falou Dimitrov em “crise política” em vez de “crise revolucionária”. Porque estava a introduzir um princípio novo, até então considerado inadmissível: a aceitação das responsabilidades de governo pelos comunistas sem sair do quadro do capitalismo.
O Governo de Frente Popular surge-nos assim em dois cenários inteiramente opostos. O primeiro é o de um governo revolucionário, formado em situação de crise revolucionária (o aparelho de Estado desorganizado e paralisado), que se apoia nos operários armados, expropria os magnates, estabelece o controlo da produção e dos bancos, etc. O segundo é o de um governo antifascista mas não revolucionário, formado em situação de crise política, que se apoia na coligação do partido comunista com os partidos democrático-burgueses e cujo objectivo não é passar à liquidação da ditadura da burguesia.
A contradição entre as duas perspectivas é flagrante. Como é que um governo de “colaboração” do PC com o PS e outros partidos burgueses, que não estaria “à altura de derrubar a dominação dos exploradores”, iria tomar “medidas resolutas” contra os magnates da finança e os fascistas? Como é que os operários armados, de posse do controlo da produção, se iriam manter nos limites de uma mera plataforma antifascista? E se o aparelho de Estado estaria “paralisado e desorganizado” e os operários armados, o que impediria então os comunistas de conduzirem o proletariado à conquista do poder?
Dimitrov deu duas versões antagónicas do governo de Frente Popular, uma revolucionária e outra meramente “democrática”. E, das duas, a que ficava a valer na prática era a segunda. Porque, ao tomar a coligação com os partidos democrático-burgueses como a base do governo, os comunistas transformavam automaticamente em declarações inócuas de intenções todas as “exigências” sobre milícias operárias e controlo da produção. Uma via excluía a outra. Ou se apontava a luta antifascista operária e popular para a conquista de um governo revolucionário, capaz de levar de vencida as resistências, vacilações e traições da democracia burguesa, governo que seria, esse sim, o primeiro passo na conquista integral do poder pelo proletariado. Ou se metia à partida a luta antifascista no quadro de um governo de coligação com a democracia burguesa e, para atingir esse objectivo, teria que se ir renunciando inevitavelmente, passo a passo, a todas as pretensões revolucionárias.
Dizer que o governo de Frente Única estaria garantido contra uma possível degenerescência pelo facto de se apoiar num movimento combativo de massas contra a reacção e o fascismo (9) era apenas uma forma de iludir a questão. Os movimentos antifascistas de massas, por muito combativos que fossem, teriam (e tiveram) as pernas cortadas se girassem na órbita de um governo de colaboração proletariado-pequena burguesia, formado para combater só a reacção fascista e não o capitalismo.
A pergunta que se coloca é portanto a seguinte: o governo de frente única era um governo popular revolucionário ou um governo democrático-burguês? Tinha como função ser a “véspera da revolução soviética” ou promover a restauração da democracia burguesa com a cooperação do proletariado?
E aqui pomos o dedo na ferida das contradições dimitrovianas. O que Dimitrov tentou, com a palavra de ordem de governo de frente única, foi ganhar a social-democracia e as forças democrático-burguesas em geral para a colaboração com os comunistas contra o fascismo, mas sem romper declaradamente com a anterior linha revolucionária da IC. As duas faces contraditórias do seu governo resultam da mistura de dois discursos: “colaboração dos partidos antifascistas sem derrubar a burguesia”, quando falava para a democracia burguesa; “operários armados e controlo da produção”, quando se dirigia aos operários. Para uns, plataforma antifascista; para os outros, “véspera da revolução soviética”.
Deste modo, a garantia de Dimitrov de que o governo de frente única seria “fundamentalmente diferente”, “diferente em princípio” de qualquer governo social-democrata(10) (garantia que E. Hoxha repete como um eco sem lhe juntar um único argumento(11) surge-nos na sua verdadeira dimensão. O governo de frente única seria efectivamente diferente dos habituais governos social-democratas porque podia contar agora com o apoio e participação dos comunistas. A diferença consistia em que seria um governo “progressista”, mas também de colaboração de classe, também no quadro do capitalismo. Seria um governo burguês “de novo tipo”, a tapar o caminho à revolução proletária, no preciso momento em que as convulsões do fascismo podiam pôr em risco a própria sobrevivência da sociedade burguesa.
A História pregou uma partida cruel a Dimitrov ao alinhar os seus governos de Frente Popular em duas tristes categorias: todos os que foram formados em período de ascenso da reacção fracassaram na tarefa de deter o fascismo e a guerra (Espanha, França, Chile); todos os que foram formados em período de ascenso da revolução (no fim da guerra mundial, na Europa oriental) fracassaram na tarefa de fazer a passagem ao socialismo e não conseguiram mais do que instaurar o capitalismo de Estado.
Analogia ou quase...
Vejamos agora brevemente o que tinham dito o 4.º e 5.º congressos acerca do Governo Operário e do Governo Operário e Camponês, para ver se encontramos as tais analogias com o governo de Frente Única, de que falou Dimitrov.
O 4.º congresso admitira efectivamente a perspectiva de um governo operário, não apenas como palavra de ordem de agitação e propaganda, mas como possibilidade real antes da conquista do poder, em países onde o regime burguês atravessasse uma crise profunda.
“O programa mais elementar de um governo operário — dissera a resolução do congresso sobre táctica — deve consistir em armar o proletariado, desarmar as organizações burguesas contra-revolucionárias, instaurar o controlo da produção, lançar sobre os ricos o principal fardo dos impostos e vencer a resistência da burguesia contra-revolucionária.” “Um governo deste tipo — prosseguia — só é possível se nascer na luta das próprias massas, se se apoiar sobre órgãos operários aptos ao combate e criados pelas mais vastas massas oprimidas”, o que daria lugar “à luta mais encarniçada e eventualmente à guerra civil contra a burguesia”(12).
Este era verdadeiramente um governo de “véspera da revolução soviética”. Contudo, a experiência da crise revolucionária alemã do ano seguinte (1923) demonstrou que, embora o congresso tivesse alertado para o perigo de desnaturação oportunista dessa palavra de ordem, ele abrira-lhe de facto as portas ao pôr a tónica na “coligação política e económica de todos os partidos operários contra o poder burguês, pelo derrubamento definitivo deste”(13).
Isto não podia deixar de deslocar a táctica dos comunistas para a busca a todo o preço de uma coligação com a ala esquerda da social-democracia, colocando-os à mercê da traição desta no momento decisivo, conforme se verificara nos governos do Saxe e da Turíngia, no Outono desse ano. O “governo operário”, que Radek celebrara como “forma original de transição entre a democracia burguesa e a ditadura do proletariado”(14), servira na realidade de ratoeira aos comunistas, ao impedir que se deslindassem campos entre revolução e contra-revolução.
Essa experiência desastrosa levara o CEIC a assinalar, em carta ao PC Alemão:
“Encarámos a entrada dos comunistas no governo de Saxe apenas como uma manobra estratégico-militar. Mas vós transformaste-a num bloco político com os social-democratas ‘de esquerda’, ficando assim de mãos amarradas. Pensávamos na vossa entrada no governo de Saxe como um modo de conquistar terreno de manobra para pôr em acção as forças do nosso exército. Vós transformastes a participação no governo numa banal coligação parlamentar com os social-democratas.”(15)
Foi forçoso concluir portanto que a participação dos comunistas no governo, mesmo em situação revolucionária, acarretava grandes riscos de degenerar, de manobra estratégica detonadora da revolução proletária, em desculpa para amarrar o partido comunista aos reformistas no momento crítico da revolução. Não servia de nada fazer previsões sobre eventuais situações de transição se os partidos não estivessem preparados para lutar pelo poder.
Daí que o 5.º congresso tivesse inflectido a posição da IC em sentido oposto ao anterior, passando a criticar as tendências para iludir a conquista revolucionária do poder atrás da expectativa num governo de coligação com a extrema-esquerda dos reformistas.
“O Comité Executivo rejeitou energicamente como interpretação oportunista toda a tentativa de pôr a palavra de ordem do governo operário e camponês ao serviço, não de uma agitação a favor da ditadura do proletariado, mas de uma coligação com a democracia burguesa.” “Para formar um governo verdadeiramente operário, ou operário-camponês, é necessário, antes de mais, derrubar a burguesia.” “Os elementos oportunistas da IC procuraram distorcer esta palavra de ordem, interpretando-a no sentido de um governo dentro do quadro democrático-burguês e de aliança política com a social-democracia. O 5.º congresso da IC rejeita categoricamente esta interpretação. Para a IC, a palavra de ordem do governo operário e camponês é a palavra de ordem da ditadura do proletariado traduzida na linguagem popular, na linguagem da revolução. A expressão ‘governo operário e camponês’, à luz da experiência da revolução russa, não é nem pode ser outra coisa que um método de agitação e de mobilização das massas para o derrubamento revolucionário da burguesia e para a instauração do poder soviético.” “Para os comunistas, a palavra de ordem do governo operário e camponês não pode em caso algum designar a táctica dos acordos e coligações parlamentares com a social-democracia.”(16)
Resumindo: o 4.º congresso admitiu, em situação de crise revolucionária, a coligação dos comunistas com os social-democratas ou outros partidos de base operária, para pôr em prática um programa revolucionário e acelerar o derrubamento da burguesia. O 5.º congresso, verificando a abertura ao oportunismo proporcionada por esta táctica, limitou a palavra de ordem do governo operário e camponês a uma função de agitação e propaganda da ditadura do proletariado.
Havia, pois, sem dúvida uma flutuação na IC em torno dos governos de transição. Mas dizer, como fez Dimitrov, que esses congressos tinham admitido uma táctica, “no fundo, quase análoga” à do seu governo de frente única é uma falsificação completa. Porque nem mesmo o 4.º congresso admitira nada que se assemelhasse ao governo de frente única do 7.º congresso — um governo formado com a social-democracia, fora de uma crise revolucionária e que não tinha como objectivo o derrubamento do capitalismo.
Ao adaptar a perspectiva do governo a uma situação nova, em que a luta política tendia a polarizar-se em torno do choque entre as duas alas da burguesia — democrática e fascista — Dimitrov transformou-a numa palavra de ordem reformista.
No fundo, a “quase analogia” que ele quis ver entre o governo operário e camponês e o governo de frente única traduziu-se neste salto gigantesco: onde antes se falava de crise revolucionária, passou a falar-se de crise política; onde se tratava de arrastar a ala esquerda da social-democracia na via da revolução, passou a tratar-se de empurrar os partidos burgueses na via da democracia; onde havia o objectivo de derrubar a burguesia, passou a estar o objectivo de estabilizar o capitalismo.
Quando o historiador revisionista checo M. Hajek afirma que, na questão do governo de frente popular, o 7.º congresso, sem o dizer abertamente, reviu as decisões do 5.º congresso e “deu um notável passo em frente” ao abandonar a ideia de que todo o governo operário tinha de ser sinónimo de ditadura do proletariado, ao admitir que um governo com a participação da social-democracia podia não ser forçosamente imperialista, ao deixar de excluir a presença dos comunistas no governo, mesmo no âmbito do capitalismo — só temos que lhe dar razão(17). Tratou-se de facto de um “notável passo em frente”... na via do reformismo e do revisionismo. E não apenas em relação ao 5.º congresso, como também em relação ao 4.º e a todo o passado da IC.
Lenine de novo à baila
Justamente porque o governo de frente popular materializava uma “semiestratégia” de derrubamento do fascismo sem derrubar o capitalismo, ele já não era, como o governo operário e camponês, uma manobra excepcional a que os comunistas poderiam deitar mão para acelerar o desenlace de uma crise revolucionária, mas tomava-se o próprio objectivo da luta. Foi o que disse claramente Dimitrov ao sublinhar que “não estando excluída semelhante possibilidade em nenhum dos países capitalistas, devemos tê-la em conta, e não apenas orientarmo-nos e prepararmo-nos para ela, mas orientarmos também, consequentemente, a classe operária”(18).
Exigir que os PC e a classe operária se orientassem em todos os países capitalistas para a perspectiva do governo de frente popular era porém demasiado forte se tal exigência não aparecesse coberta por qualquer forma com a autoridade de Lenine. Foi assim que Dimitrov não teve escrúpulo em invocar Lenine em apoio da sua tese, falsificando-o deliberadamente. Vejamos como:
“Há quinze anos, Lenine chamava-nos a concentrar toda a nossa atenção na ‘busca deformas de transição ou de aproximação que conduzam à revolução proletária’. O governo de frente única virá talvez a ser reconhecido numa série de países como uma das principais formas de transição. Os doutrinários de ‘esquerda’ passaram sempre à margem desta indicação de Lenine. Como propagandistas limitados, falavam só do ‘objectivo’ sem nunca se preocuparem com as ‘formas de transição’.”(19)
Daqui partiu Dimitrov para uma longa digressão sobre a “importância tão considerável” que Lenine atribuía “à forma de transição conducente à revolução proletária”, pressupondo que Lenine se referia à necessidade de um governo intermédio e que o governo de frente popular seria justamente esse tipo de governo.
Ora bem: na frase citada por Dimitrov, Lenine não dizia nem dava a entender fosse o que fosse sobre governos de transição. Chamava apenas a atenção dos jovens partidos comunistas para a necessidade de não se limitarem à conquista da vanguarda do proletariado pela propaganda e agitação e de levarem as grandes massas trabalhadoras a fazerem a sua própria experiência política. Experiência que, como Lenine explicou exaustivamente nessa obra (O Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo), exige o aproveitamento minucioso de todas as frentes de luta, sindical, parlamentar, etc.
Isto disse Lenine e não o que Dimitrov lhe quis pôr na boca. Como há ainda hoje quem teime em construir interpretações rebuscadas para salvar Dimitrov do flagrante delito de falsificação, torna-se necessário transcrever na íntegra a célebre frase de Lenine sobre as “formas de transição”:
“Está já feito o essencial — não tudo, evidentemente, nem nada que se pareça, mas mesmo assim o essencial — para atrair a vanguarda da classe operária e fazê-la passar para o lado do poder dos sovietes, contra o parlamentarismo, para o lado da ditadura do proletariado contra a democracia burguesa. Agora é preciso concentrar todas as forças, toda a atenção, sobre a etapa seguinte, que parece, e é de facto em certo sentido menos fundamental, mas em contrapartida mais próxima da solução prática do problema. A saber, a procura das formas para passar à revolução proletária ou para a abordar.
A vanguarda proletária está ideologicamente conquistada. É o principal. Sem isso, seria impossível dar um passo só que fosse para a vitória. Mas daqui até à vitória vai ainda um longo caminho. Não se pode vencer só com a vanguarda. Lançar a vanguarda sozinha na batalha decisiva enquanto o conjunto da classe e as grandes massas não tomaram ainda uma atitude de apoio directo à vanguarda ou, pelo menos, de neutralidade benevolente que impossibilite por completo o apoio ao seu adversário, seria não apenas uma estupidez mas um crime. Ora, para que verdadeiramente toda a classe, verdadeiramente as grandes massas de trabalhadores e de oprimidos pelo Capital cheguem a tomar essa posição, não basta só a propaganda nem só a agitação. Para isso, é necessária a própria experiência política dessas massas. Tal é a lei fundamental de todas as grandes revoluções, agora confirmada com vigor e relevo notáveis, não apenas pela Rússia mas também pela Alemanha.”(20)
Como se vê, Lenine pensava aqui em tudo menos em governos de transição. Dimitrov isolou algumas palavras do contexto para fazer passar Lenine por um precursor do governo de frente popular. E depois de falsificar Lenine, passou a censurar os “doutrinários de esquerda” por não terem dado atenção... àquilo que Lenine não escrevera!
Aquilo que Lenine dissera de facto acerca da participação dos comunistas no governo antes da conquista do poder pelo proletariado, teve Dimitrov o cuidado de não citar. E compreende-se bem porquê.
Em 1905, durante a primeira revolução democrático-burguesa à russa, Lenine considerara admissível em princípio a participação do POSDR num governo revolucionário provisório. Tratava-se de saber se os frutos da queda do czarismo seriam apropriados pelo proletariado e campesinato ou pela burguesia liberal Por isso Lenine dizia que, se viesse a criar-se uma correlação de forças favorável, com o proletariado armado, poderia ser conveniente a participação dos bolcheviques num governo provisório, para assegurar que daria luta impiedosa à contra-revolução, consolidaria e ampliaria as conquistas revolucionárias e criaria as condições para transformar a revolução democrático-burguesa em revolução socialista(21).
Isto escrevera Lenine em 1905. Desde a participação num governo revolucionário para roubar a direcção da revolução democrático-burguesa à burguesia liberal, até à participação num governo “progressista” para amortecer a queda do fascismo, vai um abismo que só Dimitrov teve o arrojo de transpor.
A luta pela democracia
As justificações “bolcheviques” e “leninistas” em torno do governo de frente única destinavam-se apenas a dourar a pílula amarga. A essência da nova política era a retirada para as trincheiras da democracia burguesa.
“Hoje, numa série de países capitalistas — disse Dimitrov, naquela que é a frase-chave do seu relatório — as massas trabalhadoras têm que escolher concretamente e para já, não entre a ditadura do proletariado e a democracia burguesa, mas entre a democracia burguesa e o fascismo.”(22)
Assim, dando como inexistente sequer a terceira alternativa — porque não escolher entre fascismo e ditadura do proletariado? — Dimitrov amarrou os partidos à inevitabilidade da defesa reformista da democracia.
O argumento último desta lógica, não confessado mas insinuado, era a impotência do proletariado para fazer a revolução:
“O fundo da questão reduz-se a saber se o proletariado se encontra preparado no momento decisivo para derrubar imediatamente a burguesia e instaurar o seu poder, e se consegue nesse caso conquistar o apoio dos seus aliados, ou se apenas o movimento de frente única se encontrará à altura, na etapa dada, de esmagar ou derrubar o fascismo, sem passar imediatamente à liquidação da ditadura da burguesia.”(23)
E como o proletariado podia não estar preparado no momento decisivo; e como, mesmo se o estivesse, podia não conquistar o apoio dos seus aliados — o mais seguro era optar pela frente única, para derrubar o fascismo sem se meter a querer derrubar a burguesia.
Esta lógica capitulacionista ignorava deliberadamente o fundo de classe de toda a questão. Os objectivos de luta do proletariado não podiam ser escolhidos segundo a sua maior ou menor preparação. Não havia dois caminhos, um revolucionário e outro democrático. A própria natureza social do fascismo, como forma extrema de ditadura burguesa, determinava o carácter revolucionário da luta antifascista do proletariado. Era só na medida em que o proletariado trilhasse esse caminho que se capacitaria para arrancar, na melhor das hipóteses, uma grande vitória revolucionária ou, pelo menos, para estreitar o espaço de recuperação da burguesia democrática após a queda do fascismo. Escolher a luta “mais fácil” pela democracia burguesa era mutilar a própria luta contra o fascismo e enveredar pelo caminho mais difícil de todos — o da subordinação política do proletariado à burguesia — esse sim, caminho de derrota certa, como se verificou na prática.
Naturalmente, a luta pela liberdade tinha que estar no centro do combate proletário ao fascismo. Não era isso que estava em causa. O que estava em causa era saber se essa luta se devia inscrever no conjunto das reivindicações revolucionárias do proletariado contra a sociedade burguesa, ou se devia cingir-se docilmente ao objectivo de defender e restaurar a forma mais branda de ditadura, a democracia burguesa.
Foi essa opção histórica que Dimitrov mais uma vez ocultou ao alegar que a luta pelos “direitos democráticos” não desviaria os operários da luta pela ditadura do proletariado. O caso é que não se tratava de uma luta independente pelos direitos democráticos dos trabalhadores, o que exigia a liquidação total e radical do fascismo, mas da luta pela democracia burguesa. Luta pela democracia burguesa que Dimitrov cobriu com as habituais flores revolucionárias: “Somos partidários irredutíveis da democracia soviética.” Mas hoje o problema é escolher entre democracia burguesa e fascismo, “porque não somos anarquistas”(24)... Em França, “os comunistas, ainda que permanecendo inimigos irreconciliáveis de qualquer governo burguês e partidários do poder dos sovietes, estão prontos no entanto, em face do crescente perigo fascista, a apoiar um tal governo” (de Frente Popular)(25).
“Inimigos irreconciliáveis”, mas, para já apoiantes... porque, pelos vistos, não havia outra alternativa para opor ao fascismo. Era isso que Dimitrov dizia expressamente ao PC Francês, numa carta do CEIC, de Junho do ano anterior, em que insistia na necessidade de uma “mudança de atitude para com a democracia burguesa”. Os comunistas deveriam deixar de declarar na sua imprensa ou nos seus discursos a sua oposição à democracia burguesa, “porquanto essas declarações são politicamente erróneas”. Deveriam lutar, não só contra a limitação ou abolição das liberdades democráticas, mas também pela sua “ampliação”(26).
Esta táctica de recuo para as trincheiras da democracia burguesa como única alternativa viável ao fascismo era, além do mais, contraditória com a afirmação feita no relatório de que o fascismo “destrói as ilusões democráticas e o prestígio da legalidade aos olhos das massas”, “provoca o ódio profundo e a indignação das massas, contribui para o desenvolvimento do espírito revolucionário no seu seio”(27).
Afinal o fascismo abria caminho ao retrocesso para a democracia parlamentar ou ao avanço para a revolução?
A realidade, que Dimitrov cuidou de manter oculta, era que a ditadura fascista, ao desdobrar em ondas de terror toda a ferocidade inata do regime capitalista, activava dois movimentos divergentes. Elevava por um lado o espírito revolucionário no proletariado, ao demonstrar-lhe que não podia amparar-se à legalidade burguesa e que só pelo aniquilamento definitivo do poder burguês criaria condições para uma verdadeira democracia, a democracia soviética. Mas também dava um poderoso impulso ao espírito reformista nas massas pequeno-burguesas, que se agarravam com desespero à esperança numa “renovação” da democracia burguesa e tudo faziam para afastarem o dilema aterrador — fascismo ou revolução proletária.
Só denunciando a incoerência e a força paralisante deste movimento reformista pequeno-burguês podia o proletariado defender-se dele e conduzir a luta antifascista a um desenlace revolucionário. Dimitrov preferiu ver só o “desenvolvimento do espírito revolucionário nas massas”, tal como quisera ver uma “deslocação à esquerda” na social-democracia, para fazer crer que a corrente antifascista pequeno-burguesa era igual à proletária, que não havia necessidade de demarcação e que ambas em comum podiam encontrar uma saída para o fascismo. Com frases radicais sobre o “desenvolvimento do espírito revolucionário nas massas”, misturou as duas correntes na mesma dinâmica reformista: o governo de Frente Popular.
Lenine democrata
Aqui, mais uma vez, Dimitrov recorreu à inevitável citação de Lenine, destinada como sempre a tapar com a sua autoridade os buracos na argumentação. Não tinham razão, disse, os comunistas que receavam “formular reivindicações democráticas positivas”, porque já Lenine observara que “é um erro radical julgar que a luta pela democracia pode desviar o proletariado da revolução socialista” e que “o proletariado não se pode preparar para vencer a burguesia sem conduzir uma luta detalhada, consequente e revolucionária pela democracia”(28). Isto significaria que a luta antifascista deveria ser orientada para a conquista da democracia política, como condição prévia para se poder passar em seguida à luta pela revolução socialista.
Ora bem: esta citação de Lenine foi extraída das teses “A revolução socialista e o direito de autodeterminação das nações”, em polémica com Bukarine, o qual contestava o apoio dos marxistas ao direito de livre separação política das nações oprimidas, sob o argumento de que se tratava de uma luta meramente democrática, não socialista.
A frase citada por Dimitrov situava a questão da libertação nacional na perspectiva internacional da revolução socialista. Reproduzamo-la por inteiro:
“A revolução socialista não é um acto único, uma única batalha numa só frente. É toda uma época de conflitos de classes agudos, uma longa sucessão de batalhas em todas as frentes, ou seja, em todas as questões de economia e política, batalhas que só podem terminar pela expropriação da burguesia. Seria um erro capital julgar que a luta pela democracia possa desviar o proletariado da revolução socialista ou eclipsá-la, esbatê-la, etc. Pelo contrário, do mesmo modo que é inconcebível um socialismo vitorioso que não realizasse a democracia integral, também o proletariado não pode preparar-se para a vitória sobre a burguesia se não levar a cabo uma luta geral, sistemática e revolucionária pela democracia.”(29)
E sublinhava mais adiante que, na luta pela autodeterminação das nações, o proletariado não deveria perder de vista “a necessidade de subordinar a luta por esta reivindicação, como por todas as reivindicações fundamentais da democracia política, à luta revolucionária de massa directamente orientada para o derrubamento dos governos burgueses e a realização do socialismo”(30).
Lenine referia-se aqui, portanto, ao papel da luta democrática nos países coloniais e semicoloniais, como parte integrante da revolução socialista mundial. Não defendia, ao contrário do que Dimitrov deu a entender, que o proletariado dos países capitalistas-imperialistas devesse empenhar-se na luta pela democracia como preparação necessária para poder passar à luta pelo socialismo. A frase “quase esquecida” de Lenine que Dimitrov tivera o mérito de “descobrir”, como escreve um historiador reformista italiano(31), não dizia afinal nada do que se pretendia tirar dela.
A verdade é que Lenine sempre defendeu a importância da luta pela democracia, não apenas nas nações oprimidas, mas em todos os países onde a revolução democrático-burguesa não fora realizada ou não fora levada até ao fim. Mas apenas nesses casos e não no dos países capitalistas que já tinham realizado a revolução burguesa. Citemos mais uma vez:
“Quando se trata de um movimento libertador democrático-burguês que não foi levado até ao fim — escrevera em 1907 — o proletariado vê-se obrigado a dedicar muito mais esforços, não aos seus objectivos de classe, isto é, socialistas, mas às tarefas democráticas gerais, isto é, democrático-burguesas.” “É só graças a esse esforço de demolição democrática total da velha sociedade semifeudal que o proletariado pode ganhar força como classe independente, demarcar plenamente as suas tarefas próprias, isto é, as tarefas socialistas, do conjunto das tarefas democráticas comuns a ‘todo o povo oprimido’ e assegurar-se das melhores condições para uma luta realmente livre, a mais ampla e mais intensa, pela conquista do socialismo.”(32)
Neste sentido, e só neste, escrevera Lenine também que “quem quiser ir ao socialismo por outro caminho que não seja o do democratismo político chegará infalivelmente a conclusões absurdas e reaccionárias, tanto no sentido económico como no político”(33).
Revolução nacional-libertadora, revolução democrático-burguesa que não foi levada até ao fim, demolição dos restos da sociedade semifeudal — neste quadro muito preciso situara Lenine a luta do proletariado pela democracia. O que não tem nenhum ponto de contacto com a tese dimitroviana da passagem do fascismo à democracia burguesa como “preparação” para a luta pelo socialismo.
Se Dimitrov quisesse saber a opinião de Lenine acerca da atitude do proletariado face à burguesia “democrática” dos países capitalistas, não teria dificuldade em encontrá-la, por exemplo, num artigo escrito poucos meses antes daquele que citou. Retiro algumas passagens:
Marx punha o problema “Qual a burguesia cujo êxito é para nós preferível?” numa época em que havia movimentos burgueses progressistas nos principais Estados europeus. De facto, o traço comum a toda a primeira época de dominação da burguesia (da Revolução Francesa à Comuna de Paris) “era precisamente o carácter progressista da burguesia, ou seja, o facto de que ainda não concluíra, não consumara a sua luta contra o feudalismo”. “Os marxistas nunca negaram o progresso que constituem os movimentos burgueses de libertação nacional contra as forças do feudalismo e do absolutismo”. Mas “seria absolutamente ridículo querer falar hoje de uma burguesia progressista, de um movimento burguês progressista”, a propósito, por exemplo, do conflito que opunha a Inglaterra à Alemanha, porque a antiga democracia burguesa desses países “tornou-se reaccionária”. “O método de Marx — acrescentava — consiste antes de mais em considerar o conteúdo objectivo do processo histórico num momento dado e em circunstâncias dadas, a fim de compreender antes de mais que classe, pelo seu movimento, é a principal força motriz do progresso nessa situação concreta.”
O proletariado, portanto, só seria fiel a si próprio “se não se aliar a nenhuma burguesia imperialista, se declarar que ‘ambas são piores’ se desejar em cada país a derrota da burguesia imperialista”. E comentava ainda, numa crítica que parece talhada por medida para Dimitrov: “Adoptar o ponto de vista de outra classe, ainda para mais de uma classe antiga, que já fez a sua época, é oportunismo do mais puro.”(34)
Conclusão: Lenine não pode ser invocado em apoio da tese dimitrovista da luta meramente democrática contra o fascismo. Quando Lenine fala em luta pela democracia trata-se de conquistar o direito à independência política ou de proceder à demolição da velha sociedade semifeudal. Em Dimitrov, trata-se de fazer com que o regime democrático-burguês que apodreceu no fascismo regresse à forma parlamentar.
Em Lenine trata-se de chamar o proletariado a romper pela força o compromisso que amarra a burguesia vacilante à velha sociedade, para impor o completamento da revolução burguesa. Em Dimitrov, pelo contrário, trata-se de arrastar o proletariado a um compromisso com a ala “democrática” da burguesia, para tirar o regime capitalista do vulcão fascista, para devolver a estabilidade ao capitalismo. Em Lenine, as tarefas democráticas gerais do proletariado têm um conteúdo revolucionário. Em Dimitrov têm um conteúdo reformista.
A etapa democrática
Para que a escolha “obrigatória” entre fascismo e democracia burguesa não aparecesse às claras como aquilo que realmente era — uma rendição incondicional face aos democratas burgueses — havia que dar mais um passo e elevá-la à categoria de nova etapa surgida no caminho da revolução socialista. Esse passo deu-o Dimitrov ao defender explicitamente a probabilidade de uma “etapa intermédia” entre queda da ditadura fascista e o triunfo da ditadura do proletariado. Etapa intermédia que nascera pelo próprio facto de se ter dado a “contra-revolução fascista”(35).
A luz desta ideia nova, lançada no discurso de encerramento do debate, entende-se melhor o alcance das ambiguidades com que Dimitrov rodeara a caracterização social do fascismo no início do relatório. O objectivo era chegar à conclusão de que o fascismo era uma “contra-revolução”, um passo atrás na marcha da sociedade. Logo, a saída do fascismo já não estaria na revolução proletária, mas numa nova etapa democrática anterior a ela. Assim nasceu no 7.º congresso, embora não fosse aí mencionada, a teoria da “revolução democrático-popular”.
E ainda desta vez, Dimitrov cuidou de cobrir a cedência oportunista com um ataque de diversão ao oportunismo. Os oportunistas de direita, denunciou ele vigorosamente, tinham deturpado Lenine ao “estabelecer um certo ‘estádio democrático intermédio’ entre a ditadura da burguesia e a ditadura do proletariado, para inculcar nos operários a ilusão de uma agradável passeata parlamentar de uma ditadura à outra”(36).
Denúncia justíssima! Mas acaso a previsão de uma “etapa intermédia” entre o fascismo e a ditadura do proletariado não equivalia a inculcar nos operários a mesmíssima ilusão oportunista? Pois se à ditadura fascista, forma extrema da ditadura de classe da burguesia, podia suceder a etapa intermédia do governo de Frente Popular, o que era isto senão admitir precisamente o tal estádio democrático intermédio entre a ditadura burguesa e a ditadura proletária?
— Mas — dir-se-á — ninguém podia garantir que à queda do fascismo sucederia inevitavelmente a vitória da revolução proletária. Claro que não. Mas só por um sofisma mal amanhado se podia transformar esta incerteza numa “etapa intermédia”.
Na luta pelo derrubamento da ditadura fascista, o proletariado poderia não ter força para completar uma verdadeira revolução. Nesse caso, naturalmente, o fascismo derrubado cederia o lugar à restauração da democracia burguesa. Não passaria a haver por isso nenhuma etapa intermédia no caminho da ditadura do proletariado, mas o retorno ao ponto de partida. A ditadura burguesa terrorista sucederia de novo a ditadura burguesa “democrática”, por incapacidade do proletariado para fazer a revolução. Mas se o fascismo caísse por via revolucionária, essa revolução, em qualquer país capitalista, só poderia ser, “obrigatoriamente” e “directamente”, a revolução proletária!
E como essa era a única revolução que se encontrava para além do fascismo, era a essa perspectiva estratégica e só a ela que o proletariado tinha que subordinar a sua táctica. A disputa da hegemonia no combate antifascista à burguesia liberal, a neutralização das vacilações da pequena burguesia, o isolamento do oportunismo, a preparação do proletariado para uma insurreição revolucionária e para o poder soviético, não resultavam de qualquer preferência “esquerdista” da IC mas decorriam do próprio carácter da revolução.
Foi assim, baralhando esta questão elementar, que Dimitrov introduziu a ideia da etapa intermédia, que lhe era necessária para justificar o governo de compromisso da Frente Popular. E isto ao mesmo tempo que se demarcava soberanamente dos oportunistas!
Desde então, a invenção da “etapa democrática” tornou-se, como não podia deixar de ser, a filha querida do oportunismo internacional, que assim descobriu a justificação “teórica” de que precisava para se descartar da revolução proletária, socialista, atirando-a uma vez mais para um futuro nebuloso.
Veja-se como os revisionistas soviéticos captaram bem a importância decisiva do contributo que lhes foi dado por Dimitrov:
“A tese (de Dimitrov) tinha em conta que o processo revolucionário nos países capitalistas não avançaria imediata e directamente através da revolução socialista, mas que se aproximaria dela através da etapa da luta democrática geral contra o fascismo.” “Assim foi amadurecendo a ideia da inevitabilidade da fase democrática geral, antifascista, da luta.” O objectivo do 7.º congresso fora traçar “uma nova estratégia que permitisse unificar todas as forças revolucionárias e democráticas com vistas à derrota do fascismo” e “seguir a via do progresso social”. Tratava-se de “cumprir as tarefas antifascistas de carácter democrático geral, o que abria novas perspectivas ao avanço para a etapa socialista da luta revolucionária. Não se tratava unicamente de mudança de táctica, mas também da adopção de uma linha estratégica nova, ditada pela nova correlação de forças de classe no mundo e pelo aumento das contradições do capitalismo monopolista, cada vez mais hostil a vastos sectores da população”. A linha do 7.º congresso “abriu aos trabalhadores dos países capitalistas a perspectiva de avançar para o socialismo através da luta pela democracia”(37).
Como também não podia deixar de ser, é nesta questão que vêm enfeixar-se todas as contradições do centrismo moderno, ao tentar defender a todo o custo o património dimitroviano. Como é que se pode denunciar a traição revisionista à revolução proletária e defender ao mesmo tempo a “etapa intermédia” de Dimitrov? É esta dificuldade que leva o Partido do Trabalho da Albânia a oscilar entre posições opostas. Tão depressa classifica de “invenção revisionista” a afirmação de que o 7.º congresso teria traçado “uma nova estratégia global do comunismo internacional”, pretendendo que se tratou de “uma simples flexão táctica na luta contra o perigo fascista e de guerra imperialista”,(38) como, poucos meses depois, admite que “Dimitrov chegou à conclusão de que, na nova situação criada, o mundo capitalista estava no limiar da etapa antifascista, democrática quanto ao conteúdo do desenvolvimento da revolução, que possibilita a passagem à revolução socialista”, e reconhece a Dimitrov “o grande mérito de ter elaborado a política, a estratégia e a táctica do movimento comunista”(39).
Esta incerteza do PTA, que o leva a defender num artigo aquilo que meses antes classificara como “invenção revisionista”, retrata bem as contradições que dilaceram o pensamento centrista actual. E não deixam dúvida da escolha que há para fazer: ou com o 7.º congresso, com Dimitrov, com a “etapa intermédia” — e nesse caso, aproximar-se cada vez mais, fatalmente, do revisionismo; ou com o marxismo-leninismo, com a revolução — e nesse caso, contra Dimitrov e o 7.º congresso.
Nascimento da “revolução democrático-popular”
Para que a descoberta da nova “etapa intermédia” nos países capitalistas não assumisse um carácter declaradamente reformista, bernsteiniano, havia que teorizar uma revolução de novo tipo, anterior à revolução socialista. Assim nasceu a “revolução democrático-popular”, elaborada por Dimitrov e pelos dimitrovistas no processo do 7.º congresso, embora não fosse lá defendida explicitamente. A análise da teoria e prática desta nova “revolução” não cabe no âmbito deste trabalho, mas é preciso traçar aqui o curso da sua geração.
Os primeiros elementos da “revolução intermédia” nos países capitalistas encontram-se talvez em Gramsci, que foi, com Bukarine, um dos mais eminentes teóricos do centrismo moderno. Procurando uma solução para o problema da crescente influência pequeno-burguesa na sociedade moderna, Gramsci defendera nos seus escritos a necessidade de a vanguarda revolucionária saber apontar uma série de objectivos intermédios, capazes de conquistar a adesão das camadas pequeno-burguesas. As suas nebulosas teorizações sobre a luta pela “hegemonia ideológica” do proletariado para poder tomar o poder acabaram por servir de pretexto para virar de pernas para o ar a noção leninista de hegemonia: o proletariado deveria ceder uma parte das suas reivindicações revolucionárias socialistas para conseguir ganhar a aliança da pequena burguesia e deslocar a correlação de forças a seu favor.
A ideia foi trabalhada por Tasca e Togliatti, os quais avançaram no 6.º congresso da IC o conceito de uma “revolução popular” em Itália, como fase intermédia entre o derrube do fascismo e a ditadura do proletariado. Para assegurar o seu papel hegemónico na revolução antifascista, diziam, o proletariado deveria cingir-se ao objectivo de uma Assembleia republicana apoiada em comités operários e camponeses. Assim se mobilizariam os estratos sociais intermédios, tendo em conta a “gradualidade do processo revolucionário”(40). Estava formado o embrião donde iria sair a “revolução democrático-popular”.
Contudo, o CEIC, que no seu 10.º pleno derrotara as posições de Bukarine, abriu fogo de imediato contra a nova tese do PCI. A concepção gradualista de Togliatti e Tasca, alegou, dissolvia a própria perspectiva da revolução e desviava o partido para o reformismo, como aliás ficava patente no abuso pelos camaradas italianos de palavras de ordem transitórias fora de uma situação revolucionária.
Em resultado da luta que se travou, Tasca veio a ser expulso do partido sob a acusação de oportunismo. Togliatti, sempre prudente, renunciou provisoriamente à defesa da “revolução popular”, aguardando melhores dias.
Esses dias melhores acabaram por chegar porque a nova ideia “salvadora” de uma excepção à revolução proletária já não seria mais abandonada pelas tendências oportunistas dentro da IC, Em 1931, no auge da política de “classe contra classe”, era a vez de o PC Alemão introduzir, de forma muito ambígua, a expressão “revolução popular” em lugar de “revolução proletária”, causando forte polémica no partido, que Manuilski tentou acalmar assegurando que se tratava apenas de um “sinónimo de revolução proletária”(41).
Em 1934 reuniram-se finalmente as condições propícias para o desabrochar da nova “revolução”. Empurrada pelas exigências da política unitária antifascista, a “revolução popular” do malogrado Tasca recomeçou a abrir caminho, agora baptizada de “democrático-popular”. E como era arriscado tentar impor de chofre no 7.º congresso esta revisão declarada da estratégia comunista, Dimitrov recorreu à manobra de não discutir as questões estratégicas no congresso, desacreditar de passagem toda a perspectiva estratégica como “doutrinarismo” e “frases sonoras que não dizem nada” e lançar sub-repticiamente através dos órgãos de frente popular a ideia de uma nova categoria de revolução.
Foi sintomaticamente o programa da Liga contra a Guerra e o Fascismo, organização unitária inspirada por Dimitrov, talvez um dos primeiros documentos a mencionar, em 1934, a “revolução democrático-popular” como “a primeira etapa a atingir na luta contra a guerra e o fascismo”(42). A partir daí, o novo conceito começou a surgir na imprensa comunista, sem qualquer tentativa de fundamentação teórica, como substituto da revolução socialista. Nem era preciso provar; a política de Frente Popular, ao amarrar os partidos à burguesia democrática, tirara todo o valor à perspectiva revolucionária.
A situação revolucionária em Espanha no início da guerra civil proporcionou à direcção da IC a primeira oportunidade para fazer o lançamento da “revolução democrático-popular”. As tomadas de posição iniciais dos comunistas colocavam ainda a luta contra a sublevação fascista no âmbito da defesa do regime democrático-burguês, como de resto fora preconizado por Dimitrov no 7.º congresso. “O povo espanhol só tem um objectivo: a defesa da ordem republicana no respeito pela propriedade”, declarava José Diaz. Qualquer tentativa para estabelecer uma ditadura proletária “restringiria a base social da luta do povo espanhol e facilitaria à reacção internacional o objectivo de destruir o movimento revolucionário em Espanha”. Tratava-se de “completar a revolução democrático-burguesa”(43). André Marty escrevia no Humanité em 4 de Agosto: “A luta actual em Espanha não é entre capitalismo e socialismo mas entre fascismo e democracia.” “O único objectivo possível não é realizar a revolução socialista, mas defender, consolidar, desenvolver a revolução democrático-burguesa”.(44)
Esta palavra de ordem era contudo nitidamente ultrapassada pelo ímpeto do movimento operário e popular, que procedia à ocupação de terras e fábricas, à formação de milícias e tribunais populares, ao controle da produção, etc. Surgiu assim a resolução do CEIC de 19 de Setembro de 1936, com a perspectiva da “revolução democrático-popular”, como uma solução intermédia que desse satisfação simultaneamente ao proletariado, ao campesinato, à pequena burguesia e à média burguesia republicana. “A república democrática espanhola por cujo triunfo luta o povo — escreveu então Dimitrov — não será uma república democrática de tipo antigo, mas um Estado peculiar de autêntica democracia popular. Não será ainda um Estado soviético, mas será antifascista, de esquerda, com a participação do sector autenticamente de esquerda da burguesia.” Pronunciando-se contra a velha tese de que, pelo seu conteúdo, o Estado é sempre capitalista ou socialista, Dimitrov anunciou que estava a nascer um Estado democrático, no qual “a Frente Popular exerce uma influência decisiva”. “Aqui põe-se o problema da organização da produção sem suprimir definitivamente a propriedade privada capitalista”(45).
E, como era de esperar, também Togliatti saiu de imediato em apoio desta tese. Na Internacional Comunista n.º 16, desse ano, escrevia que “a república democrática que se está a estabelecer em Espanha é um novo tipo de república democrática, uma democracia nova”(46). “Democracia nova” que era adoptada na mesma altura por Mao na China...
Não é aqui o lugar para traçar o percurso desastroso dessa primeira experiência de “democracia popular”. O que se pode dizer, porque hoje está patente, apesar de todos os descendentes de Dimitrov — revisionistas e centristas — tentarem ocultá-lo, é que a luta heróica dos comunistas, dos operários e do povo espanhol foi esmagada não apenas pela superioridade militar do campo fascista, mas sobretudo pelas contradições internas de um regime que aprisionava o movimento revolucionário em limites aceitáveis para a burguesia republicana.
Lenine e a revolução popular
Como aplicar aos países capitalistas este conceito de uma revolução que não é ainda a revolução socialista, mas também já não pode ser a revolução burguesa, visto que ela foi há muito realizada, com mais ou menos compromissos?
Saindo em socorro de Dimitrov, os revisionistas modernos tentaram escorar a fragilidade teórica da “revolução democrático-popular” com a autoridade de Lenine. Com efeito, Lenine “dissera nas vésperas da Grande Revolução Socialista de Outubro que toda a variedade de revoluções não podia reduzir-se à antítese entre revolução burguesa e revolução proletária”(47). O que queria dizer, obviamente, que, para além das duas, Lenine admitia a existência de variedades intermédias. A “revolução democrático-popular” seria justamente uma delas.
Procuremos esta estranha opinião de Lenine acerca de toda uma gama de revoluções que não seriam nem burguesas nem proletárias. Encontramo-la em O Estado e a Revolução(48). Mas não diz nada daquilo que pretendem os seus falsificadores.
Criticando a atitude dos oportunistas, que cobriam a sua passividade e seguidismo perante a revolução democrático-burguesa com o argumento de que só quando chegasse a revolução socialista poderia o proletariado intervir com independência, Lenine sublinhava que a revolução burguesa pode ter desenvolvimentos muito diferentes conforme nela intervenham ou não de forma activa e independente as massas populares- E dava como exemplos opostos a revolução republicana de 1910 em Portugal, que ficou limitada nas suas transformações por as massas terem agido sob a direcção da burguesia, e a revolução russa de 1905 que, por ter sido uma revolução autenticamente popular, comprometeu irremediavelmente a estabilização do regime burguês e serviu de “ensaio geral” à revolução proletária.
Como se vê, para Lenine, como para Marx, a designação de “popular” não indica uma categoria própria de revolução. A revolução burguesa pode ter ou não um carácter popular, conforme as massas intervenham ou não activamente na demolição das estruturas feudais, ultrapassando a burguesia. Quanto à revolução proletária, essa é por natureza uma revolução popular, porque faz apelo como nenhuma outra no passado à energia demolidora dos milhões de explorados, sem a qual é impossível varrer o capitalismo. Dizer que uma revolução é popular indica a profundeza com que revolve o regime caduco, mas não define as suas tarefas nem as suas forças motrizes. Falar de revolução popular como alternativa intermédia à revolução burguesa e à revolução proletária é falsificar o marxismo-leninismo da forma mais grosseira.
Falsificação tanto mais escandalosa porquanto Lenine já pusera a nu, nessa oportunidade como noutras, a noção de “Estado popular” como uma “palavra de ordem desprovida de qualquer conteúdo político e que apenas contém uma tradução pequeno-burguesa enfática do conceito de democracia”(49).
Pelas mesmas razões, é também abusiva qualquer tentativa de fazer passar a “ditadura democrático-popular” como uma actualização da ditadura democrático-revolucionária dos operários e camponeses, defendida por Lenine.
Em Lenine, essa era a forma de o proletariado poder impor as transformações democráticas gerais, isto é, não-socialistas (como, por exemplo, a confiscação da terra senhorial em benefício dos camponeses), que a burguesia se recusava a realizar, colocando-se assim nas melhores condições para depois passar ininterruptamente à revolução socialista.
Ora, em Dimitrov, a “ditadura democrático-popular”, alargada à pequena burguesia, aos intelectuais, aos patriotas, etc., é concebida com a missão verdadeiramente original e nunca vista de suprimir metade do capitalismo e edificar metade do socialismo. Nacionaliza os monopólios, expropria os latifúndios, democratiza o Estado. Mas não instaura o poder soviético, não arrasa toda a máquina do Estado e contém as convulsões revolucionárias em limites aceitáveis para a pequena e média burguesia.
Como não podia deixar de ser, esta “esperteza” de querer fazer a revolução socialista por etapas, comendo as papas na cabeça à pequena burguesia, impediu a instauração da ditadura do proletariado, impediu a destruição do capitalismo e permitiu-lhe sobreviver sob a forma original de capitalismo de Estado.