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A teoria do desenvolvimento do intelecto amplamente desenvolvida, que se baseia em numerosos estudos experimentais, pertence à psicologia infantil contemporânea de Jean Piaget. Uma das características centrais dessa teoria é a descoberta profunda do papel das operações de um sujeito no seu pensamento, o que naturalmente distingue a posição de Piaget de forma essencial dos objetivos do associacionismo e da psicologia da Gestalt, e promove, em grande parte, a compreensão adequada que o autor teve dos princípios básicos que regem a formação do intelecto das crianças.(1)
A cognição, segundo Piaget, depende de uma interação real e prática entre sujeito e objeto. O sujeito afeta o objeto, e assim, o transforma. Nessas transformações, o sujeito apreende o mecanismo pelo qual o objeto é produzido, revela suas propriedades e métodos de reconstrução. “[...] Conhecer significa reproduzir um objeto dinamicamente, mas para reproduzir, é preciso saber produzir [...]”, Piaget (1965, p. 43) escreveu. Dentro dessa interação, “o sujeito, revelando e conhecendo o objeto, organizou suas ações em um sistema estruturado, que constitui o funcionamento de sua inteligência ou pensamento” (PIAGET, 1965, p. 43).(2)
O desenvolvimento do pensamento de uma pessoa é, na forma mais geral, uma organização e coordenação de ações num sistema que constitui suas operações (estruturas de operadores). A formação desse sistema proporciona ao sujeito o equilíbrio necessário com os objetos por autorregulação (o equilíbrio baseado no intelecto é um caso particular de equilíbrio biológico em geral).
As operações (estruturas de operadores), que funcionam como mecanismos psicológicos de pensamento, são “ações internalizadas em sua forma geral, reversíveis e coordenadas em estruturas de um todo coerente” (PIAGET, 1965, p. 34). A formação do intelecto consiste, portanto, na internalização das ações objetais, na aquisição de reversibilidade, coordenação e coerência.
Juntamente com a internalização, a principal propriedade constituinte das estruturas dos operadores é sua reversibilidade, essa é a capacidade da mente se mover em uma direção ou na direção oposta. Essa é a lei fundamental da composição, que é intrínseca ao pensamento.(3) A reversibilidade ocorre quando “as operações e ações podem se desdobrar em duas direções, e a compreensão de uma dessas direções suscita, ipso facto, uma compreensão da outra” (PIAGET, 1960, p. 15).
A reversibilidade tem duas formas, que se complementam, mas não são redutíveis entre si: conversão (inversão ou negação) e reciprocidade (compensação). A conversão é observada, por exemplo, onde o deslocamento espacial de um objeto de A para B pode ser cancelado pela transferência do objeto de volta de B para A, que no resultado é equivalente à transformação nula. A reciprocidade pressupõe o caso em que, por exemplo, um objeto é deslocado de A para B e permanece em B, mas a própria pessoa é deslocada de A para B, e a situação inicial é assim reproduzida – o objeto está oposto ao seu corpo mais uma vez. O movimento do objeto não é cancelado aqui, mas foi compensado pela mudança correspondente no próprio corpo (PIAGET, 1960).
Nos trabalhos de Piaget mostra-se que estas formas de reversibilidade surgem originalmente na forma de esquemas sensório-motores (na idade de 10-12 meses). Uma coordenação gradual desses esquemas, representações simbólicas e linguísticas, faz com que a reversibilidade se torne uma propriedade de operações intelectuais em uma série de etapas.
Como se sabe, a matemática moderna (trabalhos de Bourbaki [1963]) delineia três estruturas produtivas básicas – a estrutura algébrica, a estrutura de ordem e a estrutura topológica. Piaget (1960, p. 13) acreditava que seus estudos sobre o desenvolvimento das operações na criança permitem que as estruturas operadoras do pensamento sejam correlacionadas precisamente com essas estruturas matemáticas. Assim, à estrutura algébrica (o grupo) correspondem estruturas de operadores que estão subordinadas a uma das formas de reversibilidade – inversão (negação). Um grupo tem quatro propriedades elementares:
Na linguagem das ações, isso significa:
Piaget (1960, p. 16) escreveu: “Num sentido geral, um ‘grupo’ é uma tradução simbólica de certas propriedades fundamentais definidas da ação do pensamento: a possibilidade de coordenação de ações, a possibilidade de retorno e de desvios”.(4)
Uma forma de reversibilidade como a reciprocidade corresponde a uma estrutura de ordem. Nos períodos de 7 a 11 e de 11 a 15 anos, o sistema de ações que se baseia no princípio da reciprocidade leva à formação de uma estrutura de ordem no pensamento da criança (PIAGET, 1960).(5) Estudos sobre a formação de conceitos geométricos na criança mostraram que, primeiro, ela desenvolve a intuição topológica; depois, uma orientação para estruturas projetivas e métricas. Portanto, como observa Piaget (1960), nas primeiras tentativas de desenho, a criança não distingue quadrados, círculos, triângulos e outras figuras geométricas, mas é boa em distinguir entre figuras abertas e fechadas, situações externas ou internas em relação a uma fronteira, divisão e proximidade (sem, por enquanto, diferenciar distâncias), e assim por diante.(6)
Como as estruturas operativas do pensamento passam por uma série de períodos em seu desenvolvimento, é importante representar o esquema para elas, conforme descrito por Piaget.
O primeiro período desse processo está relacionado à inteligência sensório-motora (desenvolvida na segunda metade do primeiro ano de vida, continuando até os dois anos). Em seus esquemas, a inversão e a reciprocidade já ocorrem, mas como o comportamento motor puramente externo da criança (por exemplo, mover um objeto e trazê-lo de volta para si), mas aqui, os esquemas para os vários movimentos são coordenados combinando (juntando dois movimentos num único todo) e ordenando (usando meios para atingir um objetivo). Por exemplo, a criança começa a puxar um cobertor para alcançar um objeto que está sobre ele), estabelecendo uma correspondência (imitação), e assim por diante. Essas coordenações, que se desenvolvem mesmo antes do aparecimento da fala, servem, nas palavras de Piaget, como uma lógica de ação da sua própria espécie, e como base para maior desenvolvimento das operações.
A coordenação das ações termina (por exemplo, coordenação de mudanças no próprio corpo ou em objetos, por volta dos 12-18 meses) formando a estrutura de um grupo (adquire reversibilidade e associatividade). “A ‘mobilidade reversível’ das estruturas sensório-motoras é o protótipo da reversibilidade das futuras estruturas operadoras” (PIAGET, 1965, p. 38-39).
O período de preparação e organização de operações concretas contém dois subperíodos; o subperíodo do pensamento pré-operacional (2-7 anos) e o período de organização das próprias operações concretas (7-11 anos). No primeiro, a criança desenvolve uma função simbólica, que permite distinguir entre uma designação e a coisa designada e, portanto, o uso da designação para reproduzir mentalmente o que é designado ou para indicá-lo (a ação de substituição). Assim, surgem concepções, simbolizando objetos não percebidos diretamente. Os esquemas de ações externas são transferidos para o nível das concepções, e eles adquirem a forma de experimentação mental. A criança passa pela sequência real de eventos em sua mente, por assim dizer, aparentemente reproduzindo a sequência externamente (por exemplo, ela faz as transferências mentalmente, enquanto antes fazia isso usando objetos). Aqui ainda não há esquematização, reconstrução e transformação essenciais da própria sequência, nem cadeia de ações reais. Portanto, sua repetição mental ainda não possui reversibilidade (PIAGET, 1965, p. 45-46).
Piaget (1951) chama essas formações mentais que estão fixadas em ações reais de pré-conceitos, cuja conexão nos julgamentos é realizada pelo princípio de transdução (do particular para o particular).
O período de organização (formação) de operações concretas chega na idade que é, para nós, a idade do ensino fundamental. Uma característica geral deste subperíodo, em contraste com o pensamento pré-operacional, é que aqui a atividade mental da criança gradualmente assume a propriedade de reversibilidade e uma estrutura definida; isto é, sobe ao nível de operações. Contudo, isso é encontrado, por enquanto, apenas em situações objetivas, e não no nível de declarações e julgamentos puramente verbais (essas são operações concretas). Nesta idade, a criança mostra-se um ser racional, capaz de fazer uma correlação sistemática entre certos conceitos ordenados e os objetos reais ao seu redor.
É típico desse subperíodo que a criança possa realizar operações do tipo agrupamentos, grupos aritméticos e pode realizar medições. Um dos tipos de agrupamento é a composição primária de classes. Para verificar se está formado, é oferecida à criança a seguinte tarefa de inclusão de aulas, por exemplo. A criança recebe 20 contas de madeira (B), 17 das quais são marrons (A), mas as outras 3 são brancas (A’). A criança deve responder à pergunta: Qual colar será mais longo – aquele feito de contas marrons ou aquele feito de contas de madeira? (PIAGET, 1952)(7) Outra tarefa no mesmo agrupamento pode ser a seguinte: a criança recebe várias fotos de flores (por exemplo, 7 prímulas, 2 rosas e 1 cravo) e a questão é levantada: Tem mais prímulas ou flores no buquê? (PIAGET, 1965).
Crianças de 5 ou 6 anos, que estão no nível do pensamento pré-operacional, geralmente respondem desta forma: “o colar de contas marrons será mais longo porque só existem três contas brancas” ou “Vai ter mais prímulas porque aqui há três flores”. De acordo com Piaget, tais respostas ocorrem naturalmente porque essas crianças ainda não possuem um sistema reversível de operações com classes, pelo qual pudessem reter tanto o todo quanto suas partes em seu pensamento ao mesmo tempo. Quando as crianças começam a pensar em uma parte (A), elas destroem o todo (B), e só resta a outra parte (A). Portanto, eles respondem que A > A’, embora eles estejam sendo questionados sobre a relação entre A e B (A < B). Após o agregado B ter sido dividido, ele não existe mais para essas crianças, que é um índice do caráter pré-operacional de seu pensamento. Piaget (1965, p. 46) escreveu: “Para entender a inclusão A ⊂ B, é preciso preservar mentalmente o todo e ser capaz de raciocinar ao contrário: A + A’ = B, e então A = B – A’ – isto é, A < B”.
Aos 7 ou 8 anos, as crianças resolvem estas tarefas corretamente, porque consideram A, A’, e B em um estado de equilíbrio reversível: A e A’ funcionam como classes independentes e simultaneamente como subclasses de B. A capacidade de pensar nas partes e no todo ao mesmo tempo é um índice de reversibilidade como propriedade de uma operação (então para B = A + A’ as crianças concluem que A= B – A’ e A’ = B – A).
Outro teste clássico de Piaget (1965) descreve um agrupamento relacionado à multiplicação de relações. Se uma criança de 5 ou 6 anos derrama água do copo A em um copo mais estreito B, ela geralmente afirma que há mais água no copo B, pois ele sobe mais alto. A incapacidade da criança em compreender novamente a conservação da matéria, na opinião de Piaget, é explicada pela ausência de reversibilidade no nível pré-operacional. A criança não considera que o conteúdo de B possa ser despejado de volta em A, e o que é mais importante, não compreende que, embora a coluna de líquido em B seja mais alta, ela é mais fina. As crianças que estão no nível das operações concretas resolvem esse problema corretamente, pois consideram não apenas o estado observado, mas também a natureza da transformação que levou a esse novo estado. Essas crianças consideram o recurso de compensação porque já conseguem multiplicar a relação maior que... pela relação mais estreito que.... Como resultado, descobrem que, embora a coluna seja mais alta, ela também é mais fina e, consequentemente, a quantidade de água é idêntica.
Ao nível das operações concretas, as crianças começam a tratar casos particulares de transformação como uma manifestação especial de algum sistema integral de operações potencialmente possíveis. Se uma criança puder combinar quaisquer duas classes de acordo com a relação A + A’ = B, então ela poderá continuar essa combinação: B + B’= C, C + C’ = D, e assim por diante. Surge, portanto, uma classificação integral.
No período de operações formais (11-15 anos), os adolescentes formam o nível de equilíbrio para o qual se tem movido todo o desenvolvimento anterior da inteligência e que é intrínseco aos adultos. A característica básica das estruturas de operadores, nesse período, envolve uma correlação característica entre o estado de coisas imediatamente real observado pelos adolescentes e suas conexões potencialmente possíveis e concebíveis. Ao nível das operações concretas, as crianças descobriram a esfera do potencialmente possível como continuação direta de relações diretamente estabelecidas, mas ao nível das operações formais, a solução de um problema começa imediatamente com o estabelecimento de todas as relações possíveis, com um rascunho das próprias possibilidades, e só então há uma verificação experimental de quais delas realmente ocorrem. Em outras palavras, uma série de hipóteses é inicialmente avançada, aqui, e depois segue-se uma verificação sistemática delas e, portanto, o pensamento tem caráter hipotético e dedutivo.
A construção de argumentos do seguinte tipo é característica nesse nível: De acordo com os dados disponíveis, A sozinho ou B sozinho ou ambos juntos podem ser condições necessárias e suficientes para o evento N. Verifique essas possibilidades por sua vez e estabeleça qual delas é observada de fato. Nesse caso, uma série de combinações (hipóteses) são avançadas no início, durante a análise das causas do evento. Por exemplo, as seguintes combinações podem ser construídas para os fatores variáveis A e B como possíveis causas de N: 1) A leva a N, mas B não, 2) B leva a N, mas A não, 3) A junto com B produz N, mas nenhuma dessas variáveis tomadas separadamente leva a N, e assim por diante. Então deve-se verificar experimentalmente, e de acordo com um determinado plano, quais dessas combinações são verdadeiras e quais são falsas (testes apropriados com adolescentes são descritos detalhadamente nos trabalhos de Piaget e seus associados, como por exemplo em Inhelder e J. Piaget [1935, nas páginas 105-120], entre outros).
No nível das operações formais, o pensamento é realizado no plano das declarações de sentenças que registram os resultados de ações objetais anteriores na forma verbal. Esse tipo de pensamento estabelece conexões lógicas entre afirmações; isto é, constrói argumentos. É hipotético e dedutivo, e combinatório. Ao se depararem com determinados problemas, adolescentes e adultos resolvem por meio de uma combinação adequada de fatores, delineando e monitorando fatores variáveis, e formulando e verificando hipóteses (por exemplo, conexões causais podem ser descobertas mantendo algum fator inalterado com o propósito de detectar as consequências da variação dos outros). Essas características da inteligência formal permitem que a pessoa seja um excelente instrumento para a investigação científica das relações de causa e efeito das coisas.
Inhelder e J. Piaget (1935, p. 341) escreveram da seguinte forma:
O pensamento formal é a reflexão sobre ideias [...]. Ao mesmo tempo, o pensamento formal é uma mudança para inverter as relações entre o real e o possível; os dados empíricos são incluídos como uma parte separada na soma total das combinações possíveis [...].
A estrutura das teorias no adolescente mostra sempre que ele domina a capacidade de pensamento racional e, ao mesmo tempo, que o seu pensamento lhe permite romper com o domínio do real e invadir o domínio do abstrato e do possível.
Voltamos a uma consideração da essência das noções de Piaget sobre o pensamento adiante, mas aqui, tratamos da maneira como ele descreve o papel do conceito no pensamento e sua correlação com a percepção e a concepção. De acordo com os objetivos gerais de sua teoria, os aspectos físicos, matemáticos e outros aspectos da realidade têm a forma de estados e transformações. Nas funções cognitivas, os chamados aspectos figurativos (percepções, imagens de uma concepção) correspondem a estados, e os aspectos operadores que reproduzem essas transformações, em virtude dos quais ocorre uma compreensão delas, correspondem a transformações. Piaget (1965, p. 35) escreveu: “[...] Sem afetar o objeto ou transformá-lo, o sujeito não poderá compreender sua natureza e permanecerá no nível das simples descrições”.
O problema de correlacionar esses aspectos se concretiza na forma de três questões:
A análise de muitos materiais experimentais feita por Piaget mostra que os conceitos têm muito mais conteúdo do que percepções. Assim, o conceito de projeção inclui dois tipos de propriedades, que ultrapassam os limites da percepção imediata: coordenação de diferentes pontos de vista, permitindo a revelação da razão para uma mudança na forma aparente de um objeto que está deslocado, pela possibilidade de prever aquela forma para um objeto, que ele só terá após um deslocamento posterior. Essas características resultam não da percepção, mas das ações do sujeito no processo de sua internalização e aquisição de reversibilidade. Esse aspecto operador de um conceito não pode ser expresso em estruturas perceptivas. Para Piaget (1965, p. 37), “a possibilidade de derivar estruturas de operadores ou estruturas de conceitos a partir de estruturas perceptivas é, portanto, descartada”.
A tentativa de extrair um conceito de apenas uma percepção ignora o fato de que, além desses dois termos, existe um terceiro fundamental – sua fonte comum como um sistema de estruturas sensório-motoras, quanto às imagens das concepções (“imagens mentais”), que são necessárias para operações como símbolos de estados, mas são igualmente totalmente inadequados para uma compreensão das transformações. Resumindo os dados apropriados, Piaget responde às três questões acima mencionadas da seguinte forma:
Consequentemente, segundo Piaget, as ações – a transformação de um objeto e a reprodução da transformação (esses processos são a compreensão do objeto) fundamentam um conceito. A internalização das ações objetais, a aquisição de uma qualidade sistémica e de reversibilidade conferem ao conceito o seu conteúdo lógico e a sua forma ao nível do pensamento formal (racional).
Piaget opõe clara e diretamente essa abordagem do conceito à posição positivista que vem para a lógica de Aristóteles (em essência, é a posição da lógica formal tradicional e da sua correspondente psicologia associacionista empírica). Assim, ele observa que, para os positivistas, os elementos de um conceito decorrem exclusivamente dos aspectos figurativos: “[...] Positivistas [...] veem nos conceitos o produto da percepção - abstrato, generalizado e formulado com o auxílio da linguagem” (PIAGET, 1965, p. 34).
De fato,
embora um conceito extraia naturalmente a informação necessária da percepção, ainda assim este conceito não resulta da percepção por simples abstrações e generalizações, como acreditava Aristóteles e como pensam os positivistas modernos. O aspecto operador de um conceito [...] é formado por estruturas sensório-motoras, ou então por estruturas de ação em geral (PIAGET, 1965, p. 37).
A descrição da formação de conceitos por simples abstração e generalizações dos dados da percepção, a interpretação de um conceito como um produto da percepção, que é abstrato, generalizado e formulado com o auxílio da linguagem – tudo isso, como foi mostrado acima, é típico da teoria empírica do conceito, que é peculiar à lógica formal tradicional e à psicologia associacionista, depois adotada pelo positivismo moderno. Piaget mostra a real inadequação desse tratamento do conceito, que ignora a ação objetal que transforma o objeto como base genuína para um conceito, para a compreensão. Os dados experimentais obtidos por Piaget e seus associados têm considerável importância para criticar e superar a teoria empírica de generalização e formação de conceitos.
A crítica de Piaget à abordagem positivista do conceito é apenas uma característica particular da sua atitude crítica geral em relação às ideias da lógica formal tradicional (ou a lógica dos livros didáticos, para usar sua própria terminologia). Então, ele escreveu: “A lógica clássica (isto é, a lógica dos livros didáticos) e o realismo ingênuo do bom senso são os dois inimigos mortais de uma psicologia saudável da cognição [...]” (PIAGET, 1955, p. 64). Piaget acreditava que a lógica formal clássica (tradicional) e a psicologia associacionista do século XIX foram unânimes na sua interpretação dos dados da percepção e das imagens da concepção como fontes exclusivas do pensamento.(8) Ao mesmo tempo, o medo do logicismo na psicologia fez com que os psicólogos começassem a recorrer cada vez menos à lógica moderna como base para suas abordagens gerais do pensamento. O resultado, como Piaget (1969, p. 574) observou, é que “a maioria dos psicólogos modernos tenta explicar a inteligência sem qualquer tratamento da teoria lógica”.
Contudo, ao se opor à tradicional lógica dos livros didáticos, Piaget entende claramente, ao mesmo tempo, que a psicologia do pensamento perde os critérios objetivos de sua estrutura se não partir de uma determinada concepção lógica. Ele enfatiza a necessidade de unidade nas abordagens psicológica e lógica do pensamento.
Em muitos de seus trabalhos (ver, por exemplo, PIAGET, 1960; 1969, etc.), Piaget desenvolve consistentemente a ideia de que estruturas cognitivas reais podem ser investigadas de forma mais adequada através dos recursos da lógica matemática, que descreve várias estruturas lógicas. Assim, os agrupamentos lógicos de classes e relações correspondem ao nível de operações concretas, mas a estrutura do pensamento formal pode ser descrita corretamente pela lógica preposicional e pelo conceito lógico-matemático de grupo.
De acordo com a visão de Piaget, a lógica formal moderna (lógica matemática) descreve suas próprias estruturas em forma axiomática, mas a psicologia, ao estudar as etapas da formação da inteligência, encontra estruturas reais de operadores que lhes são adequadas, que são diferentes níveis de equilíbrio para as operações. A psicologia investiga os princípios que regem a formação desses níveis de equilíbrio no indivíduo, e de forma definitiva e formulada, correspondem, no seu conjunto, às estruturas descritas na lógica matemática.
Para compreender a base interna dessa posição de Piaget, deve ser levada em conta uma distinção essencial que ele traça entre as fontes da experiência física e lógico-matemática. Acima de tudo, ele enfatiza que as ações do sujeito com os objetos estão na base de ambos, mas se a experiência física é formada pela transformação de objetos e pela abstração de suas próprias propriedades, que lhes pertencem antes mesmo das ações com eles. Então, o que é intrínseco à experiência lógico-matemática, como escreveu Piaget (1965, p. 50), é uma abstração “do objeto das características pertencentes às próprias ações, que mudam esse objeto, e não do objeto das características reveladas através dessas ações, mas independentes delas”.
Assim, a singularidade da experiência lógico-matemática é que ela envolve abstrações das próprias ações e coordenação delas. Essas abstrações são a base para operações lógico-matemáticas. A questão não é apenas que estas operações são derivadas de ações, mas que todas essas ações, incluídas na experiência física real da pessoa, são “inseparáveis das coordenações gerais, cuja natureza é lógico-matemática (combinar, ordenar, estabelecer uma correspondência, etc.)” (PIAGET, 1965, p. 51).
Segundo Piaget, inteligência, pensamento e mente são, em última análise, uma coordenação de ações em um sistema, e como essa coordenação, por sua natureza, tem um caráter lógico-matemático, o pensamento também, como tal, tem em sua base desde o início as estruturas lógico-matemáticas descritas pela lógica apropriada.(9)
Uma determinada característica física de um objeto é reproduzida pelo homem através de uma ação específica, mas para se tornar um objeto de pensamento (um conceito), deve ser arrastado para um sistema de ações internalizadas e coordenadas – para operações que estão subordinadas às leis das estruturas matemáticas. Somente nesse sistema é que qualquer propriedade real, embora permaneça objeto da experiência física, funciona ao mesmo tempo como um objeto mental em geral, como um objeto do pensamento formal. Portanto, como observou Piaget (1965, p. 51), os objetos da lógica e da matemática em si permanecem “incertos, uma vez que a questão diz respeito a coordenações gerais e não a ações concretas e diferenciadas, como acontece na experiência física”.
Assim, mesmo em atos sensório-motores, certas coordenações gerais aparecem como protótipos de estruturas lógicas especificamente matemáticas. Ao nível das operações concretas e formais, realiza-se uma internalização e sistematização destas coordenações gerais. No nível formal, essas estruturas adquirem a pureza e a completude que permitem que suas características formais sejam estabelecidas nos conceitos da lógica matemática. As estruturas operadoras de pensamento que se desenvolveram servem como base psicológica para a própria matemática. Piaget (1960, p. 16) escreveu diretamente que “as três estruturas fundamentais de Bourbaki correspondem às estruturas elementares do pensamento, das quais são uma extensão formal”.
Aqui nos aproximamos do ponto mais íntimo de toda a teoria de Piaget. Os materiais citados acima fornecem bases para concluir que ele converteu ilegitimamente um aspecto particular da atividade mental humana combinada, que está relacionado com essas estruturas, numa descrição de todo o pensamento como uma forma de atividade. A propriedade da reversibilidade é específica da orientação para o aspecto matemático da realidade, e Piaget fez um índice de pensamento como tal.
A noção de Piaget sobre o papel dos invariantes na cognição é a fonte para uma reificação semelhante de um aspecto do pensamento. A formação da reversibilidade é a base para descentralizar a relação entre sujeito e objeto. Isto equivale a aprofundar a objetividade do conhecimento, uma vez que o desenvolvimento da reversibilidade (qualidade sistemática) das operações permite ao sujeito destacar e estabelecer as características invariantes de um objeto que são persistentemente retidas quando as condições particulares para sua observação estão em constante mudança, ou quando está passando por diversas transformações. O delineamento de tais invariantes liberta a pessoa de possíveis noções ilusórias sobre o objeto e funciona como base para a formação de um conceito dele.
A maioria dos estudos experimentais de Piaget e seus associados visavam a esclarecer as etapas da formação da compreensão das crianças sobre o princípio da conservação da quantidade, substância, peso e volume nos objetos quando eles passam por diversas mudanças externas e transformações. Uma compreensão da conservação pressupõe o delineamento, a partir de toda a variedade de relações de um objeto, de uma certa invariante dele (por exemplo, o volume de um fluido é conservado ao longo de todas as mudanças na altura e no diâmetro de uma coluna de fluido quando é derramado de um recipiente para outro). O pensamento formal é caracterizado pela posse da ideia de conservação e é guiado por ela em situações apropriadas. Como a matemática possui o aparato formal mais poderoso para descrever invariantes, Piaget toma a teoria matemática dos invariantes – em particular, a teoria dos grupos – como um meio de descrever e analisar a atividade mental em geral.
Considerável atenção tem sido dada recentemente em trabalhos sobre métodos lógicos ao problema dos invariantes como o conteúdo particular do pensamento (veja, por exemplo, Lektorskii [1969], Ovchinnikov [1966], Rubinshtein [1957], etc.). Assim, Rubinshtein (1957, p. 125-126) fez a observação de que os invariantes são indicadores de objetividade e do grau de independência do conhecimento do ponto de vista de uma pessoa a partir de sua perspectiva cognitiva. As teses são frequentemente promulgadas no sentido de que os invariantes servem como objetos particulares do pensamento especificamente científico, em contraste com o pensamento cotidiano e comum.(10) Isso é realmente assim? E é legítimo, ao delinear invariantes, perceber – como faz Piaget – um nível mais elevado de atividade mental?
Na análise da natureza dos invariantes, deve-se recorrer à categoria de essência que é usada na lógica dialética. O ponto de vista da essência é a superação da imediatez das coisas, a demonstração de que elas são substanciadas por outra coisa.(11) A essência é a base que está nas transições da quantidade para a qualidade e vice-versa. Isto é identidade consigo mesmo.
Ao considerar essa identidade, é possível se abstrair das diferenças, que aqui são simplesmente omitidas ou fundidas numa única certeza. Então destacamos a essência na forma de uma identidade formal ou racional. A reflexão que leva a tal essência também é formal – ela apenas separa externamente o direto e o mediado, apenas traduz um conteúdo externo em forma interna (tal reflexão é típica da vida cotidiana e das disciplinas descritivas, pois aqui, como acreditava Hegel [1929, p. 209], trata-se apenas de satisfazer as “exigências domésticas de cognição”.
O verdadeiro problema do pensamento é preservar uma identidade que inclua diferenças e ocorra em combinação com elas – isto é, preservar uma identidade concreta. Nesse tipo de essência, cada um serve como o outro para um outro, em virtude do qual a essência também pode ser uma base de algo que é, uma unidade de identidade e diferença. Esse tipo de identidade concreta serve de base a um conceito genuíno que reflete o processo de desenvolvimento de um todo, em que a identidade do que foi diferenciado dentro do todo se torna imediata e externa.
Por exemplo, uma planta se desenvolve a partir do seu próprio embrião – desenvolve-se, uma vez que, embora partes da planta existam em embrião, elas não existem como partes reais (não numa forma real reduzida), mas como potencial para elas.
Consequentemente, a cognição não se detém na descoberta da essência – passa a um conceito como método de representação do desenvolvimento de uma coisa a partir de alguma base genética, como a derivação do diferente dentro do todo, como uma realização da unidade de identidade e diferenças.
Somente nesse caminho de ascensão de uma essência expressa abstratamente para o concreto é que o pensamento mostra sua real força teórica e profundidade de reflexão (descreveremos esse processo de ascensão em detalhes no Capítulo 7).
Se as características típicas da invariância forem comparadas com essa descrição, pode-se descobrir que a invariância não excede os limites da essência como certa base permanente para as transições feitas entre qualidade e quantidade – ou seja, identidade formal. Na verdade, nas transformações das coisas que alteram bruscamente a sua certeza externa, detecta-se nelas a persistência, ou invariância, que funciona como base comum para todos os estados possíveis e particulares (a conservação de um volume ou peso total quando uma coisa é dividida em partes, e assim por diante). O domínio dos invariantes é o domínio da essência, ao qual se reduz toda a diversidade das suas manifestações. Contudo, esse ainda não é o domínio do conceito real como forma de pensamento teórico, como método de derivar essa diversidade da essência, embora certamente estabelecer a invariância crie as pré-condições para esse pensamento.
Segundo Piaget, o pensamento formal, em primeiro lugar, é reflexivo (é pensamento racional); segundo, invade a área do abstrato e do possível (como explicado acima). Parece que essas são as características do pensamento conceitual, mas não é bem assim. A reflexão em si pode permanecer dentro dos limites da essência. Além disso, a reflexão pode permanecer puramente formal, opondo apenas o imediato e o mediado, sem conectar isso por meio de uma consideração do processo de desenvolvimento de uma coisa.
A reflexão descrita por Piaget tem exatamente esse caráter – permite ao homem desmembrar o estável, o invariante, o essencial de características particulares variadas que parecem estar fundidas em uma certeza de variação puramente quantitativa nesse invariante.
Logo, o mesmo volume pode ser representado por diferentes variantes das relações de comprimento, largura e altura do sólido. A busca, o estabelecimento e a verificação real dos conjuntos possíveis dessas relações ou combinações não são, de modo algum, equivalentes à derivação teórica do diferente do geral como reflexo do processo de desenvolvimento. Encontrar combinações possíveis não revela a origem dos fenômenos particulares, nem sua forma universal, que existe como uma relação real, geneticamente originária.
A interpretação do mentalmente geral como reflexo de uma relação real que é dada pelos sentidos e que engendra toda a diversidade do concreto é estranha à posição de Piaget. O invariante, como o geral, é uma formação abstrato-formal, que se delineia nas coisas por meio de transformações específicas delas.(12)
O nível de pensamento descrito por Piaget como formal não pode ser definido como o nível mais alto de pensamento em geral. Pensamento formal, como descrito em suas obras, é o pensamento que permanece no nível do intelecto, e ainda não alcança a forma conceitual. A característica do intelecto é necessária, é claro, no processo integral do pensamento teórico.(13)s Contudo, se essa característica começa a prevalecer e a tornar-se a força predominante na atividade mental real, o pensamento assume principalmente um carácter classificatório e combinador. Em última análise, pode se converter em atividade que visa a criar diferentes combinações formais aplicando um certo conjunto estrito de regras.(14) A característica da compreensão, aqui, é mantida no mínimo, ou mesmo desaparece completamente (este último é observado, por exemplo, no chamado pensamento de máquina).(15) Quando o pensamento se concentra na busca de variantes da existência de algum invariante, há uma autonomização dos seus aspectos combinatórios intelectuais, uma conversão deles num tipo de atividade relativamente independente.
Algo análogo também é observado na teoria da lógica da psicologia. O estudo primário das condições para a delimitação dos invariantes como base dos julgamentos pode levar a tornar essa forma de pensamento absoluta, se a doutrina da ascensão como método de construção da teoria do sujeito não for aceita. Na nossa opinião, foi exatamente isso que aconteceu nos estudos de Piaget. Ao verificar a formação da reversibilidade, ele identificou com o pensamento em geral apenas aquele tipo (estágio) que permite a construção de julgamentos e conclusões com base em esquemas combinatórios.
A adopção da lógica matemática como o único tipo possível de lógica moderna leva Piaget a um estudo unilateral do pensamento, uma vez que esta lógica apreende apenas aqueles aspectos de um conceito e de um julgamento que são importantes para a construção de uma conclusão formal (veja o Capítulo 2). Esses aspectos são adequadamente descritos por estruturas matemáticas.(16) Assim, em uma de suas próprias obras, ele observa que o escopo de um conceito é determinado por sistemas de classes nos quais há uma conversão que leva a uma estrutura algébrica. Contudo, o conteúdo do conceito é determinado por um sistema de relações em que há uma reciprocidade que conduz a uma estrutura de ordem. Existe uma ligação estreita entre essas estruturas, que é afetada pela ligação entre o âmbito e o conteúdo dos conceitos (PIAGET, 1960), mas o estudo de estruturas como essas não abrange, de modo algum, todas as propriedades da atividade mental em geral e do seu nível teórico em particular.(17)
Consideremos outra questão, que Piaget conecta com as fontes de coincidência entre estruturas de operadores e estruturas matemáticas. Como foi observado, ele enfatiza que na experiência da lógica matemática, não são as propriedades absolutas das coisas que são abstraídas, mas as características que estão relacionadas à execução da ação em si e que não estão presentes no objeto anterior a ela. Assim, um bastão era flexível mesmo antes de a criança dobrá-lo – ele não se tornava flexível porque era dobrado. Ao mesmo tempo, nem uma ordem linear ou uma ordem cíclica de pedras existiam nessas pedras antes que elas fossem arranjadas por uma ação apropriada que lhes conferiu novas características. Essa característica da experiência da lógica matemática serve de base para o caráter dedutivo de toda a matemática - em vez de ser feita com pedras, esta mesma ação pode ser feita em quaisquer outros objetos - em particular, naqueles que são designados pelos símbolos 1, 2, 3 ou X, Y, Z. As propriedades desses objetos ainda dependem das ações e não dos próprios objetos.
Em nossa opinião, a natureza geral dos objetos do tipo de pensamento investigado por Piaget transparece claramente nesses exemplos. Se uma ação introduz alguma nova característica em um objeto (por exemplo, conferir ordem a uma pilha de pedras), isto significa que o objeto aparece para uma pessoa apenas a partir de um aspecto em que quaisquer mudanças não privam o objeto de sua objetividade e que, consequentemente, é indiferente a todas as peculiaridades qualitativas, mas esse é o aspecto quantitativo do objeto em si, suas características espaço-temporais máximas. Logo, não importa quão distintamente elas tenham sido delineadas, independentemente das ações com as quais estejam conectadas - elas ainda são características das coisas em si, formas nas quais elas se movem.
A criança se depara com as propriedades do espaço-tempo muito cedo. Aos 2 ou 3 anos de idade, ela adquire domínio prático de muitas das relações das coisas que dizem respeito a essas propriedades – isto é, especificamente com o aspecto quantitativo da realidade. Essa familiaridade é alcançada por meio de manipulações de objetos. Essas estruturas de operadores (reversibilidade, em particular), constantemente discutidas por Piaget, podem se desenvolver com base nelas [as propriedades]. Contudo, desde o início, eles funcionam como mecanismos no pensamento matemático da criança enquanto ela lida com as características gerais de espaço-tempo das coisas. Aprofundar-se na determinação quantitativa das relações objetais leva, em particular, ao desenvolvimento da classificação e da seriação nas crianças, que são claramente transformações de um caráter especificamente matemático, em vez de estruturas lógicas gerais, como Piaget supõe. A correspondência entre estruturas de operadores e estruturas matemáticas torna-se clara nesse plano – os primeiros são formados, desde o início, como mecanismos mentais para a orientação da criança em relações matemáticas gerais. Deve-se notar novamente que a presença de uma abstração da ação específica, conforme descrita por Piaget, não exclui, por si só, uma base objetiva para estruturas de operadores. As ações lógicas-matemáticas internalizadas que as compõem surgem inicialmente quando a pessoa é orientada para aquelas características reais cuja singularidade consiste em sua indiferença às qualidades concretas das coisas. Em outras palavras, essas ações revelam e estabelecem a determinação quantitativa como tal.(18)
Piaget levanta diretamente um problema central na epistemologia com relação à matemática: “[...] as relações matemáticas são geradas pela atividade da mente ou essa atividade apenas as revela como uma certa realidade externa, que realmente existe? (PIAGET, 1960, p. 10).
Ele não formula sua própria posição de forma inequívoca ao resolvê-la, embora enfatize as fontes empíricas do conhecimento matemático. O ponto de vista realmente adotado por ele em relação à sequência de aparecimento de estruturas de operadores e estruturas matemáticas, conforme descrito acima, nos permite pensar que ele está inclinado a conceber o último como engendrado pela atividade da mente. Contudo, uma solução materialista inequívoca para esse problema requer, em particular, a compreensão das estruturas dos operadores (nas propriedades a eles atribuídas por Piaget) como aquelas que, desde o início da sua formação, são orientadas para relações matemáticas como uma realidade externa que realmente existe.
Na visão geral da teoria do pensamento criada por Piaget, é importante ressaltar que ela, antes de tudo, fundamenta o papel decisivo da atividade objetal como base da inteligência. Em virtude da ação material, uma pessoa vai além dos limites da realidade objetiva imediata nas coisas e destaca suas relações invariantes (essenciais). Certamente, para Piaget, as características dessas relações permanecem no plano dos aspectos racionais do pensamento. Ao mesmo tempo, são seus estudos que mostram que suas estruturas de operadores se desenvolvem por caminhos muito mais complicados do que se supunha anteriormente. Graças a esses estudos, a psicologia moderna deu um grande passo em direção à superação definitiva dos princípios ainda predominantes da teoria empírica (positivista) do pensamento.
A determinação do papel da ação no pensamento como base objeto-sensorial e experimental para ele, levou Piaget perto de revelar as características do pensamento especificamente teórico. Como observado acima, algumas de suas teses se aproximam daquelas formuladas na lógica dialética, mas apenas perto, pois aqui, Piaget chegou a uma situação paradoxal. Na verdade, ele não reconheceu essa lógica como a mais adequada ao estudo do desenvolvimento do pensamento (embora estivesse familiarizado com as teses básicas da dialética). Ele combinou a aspiração de investigar o desenvolvimento do pensamento com um credo que professa um tipo de lógica que é abstraída dos processos de desenvolvimento baseados em conteúdo, e concentra sua atenção nos aspectos intelectuais do pensamento.
Piaget estava interessado nas estruturas lógicas-matemáticas que são comuns, por exemplo, as redes de neurônios e a inteligência formal. Aqui, são estudados principalmente os estágios de internalização dessas estruturas originais, que são pressupostos antes dos dados (por exemplo, até mesmo em nível físico-químico). Durante a internalização ocorre apenas uma purificação distinta deles dentro da atividade do sujeito. Por outras palavras, aqui não se considera o desenvolvimento do conteúdo do pensamento em si, e nem, como consequência disso, as categorias lógicas apropriadas – a tarefa investigativa limita-se a descrever as mudanças sequenciais na forma subjetiva do mesmo conteúdo do operador (estruturas).
De acordo com esta direção da teoria de Piaget, o domínio de um conteúdo matemático concreto ou outro conteúdo cada vez mais complexo não leva à formação de estruturas lógicas, mas, pelo contrário, o desenvolvimento imanente deste último serve de base para o domínio subsequente da disciplina matemática e de outras disciplinas. Gal’perin e El’konin (1967, p. 619) formularam isso da seguinte maneira geral:
[...] A posição típica de Piaget é que o desenvolvimento do pensamento é o desenvolvimento de estruturas de operadores, que a cognição das coisas não leva ao desenvolvimento da lógica, mas, pelo contrário, o desenvolvimento da lógica leva ao desenvolvimento da cognição das coisas [...].
O uso preferencial de Piaget do aparato da lógica matemática o leva a um tratamento altamente unilateral das peculiaridades do pensamento. Flavell (1967, p. 561), por exemplo, toma nota direta dessa circunstância: “No uso de vários modelos lógico-algébricos por Piaget, há algo de uma interpretação que se assemelha a um leito de Procusto”.(19)
Gal’perin e El’konin (1967, p. 600) expressam um ponto de vista semelhante, quando escrevem que não concordam com sua posição, como se “o nível das operações lógico-formais constituísse um nível superior no desenvolvimento do pensamento”.
De fato, Piaget nem sequer aborda o pensamento científico teórico propriamente dito, uma vez que ele é formado, em geral, em uma idade mais tardia do que aquela à qual a investigação se limita ao nível da inteligência formal. Esta característica é sublinhada por Bruner (1966), por exemplo, que salienta que o pensamento dos adultos difere do pensamento dos adolescentes estudados por Piaget. Gal’perin e El’konin (1967, p. 601) notam que, do pensamento do adolescente e do jovem, abre-se apenas uma remota perspectiva de desenvolvimento para o pensamento do “homem maduro” ou da “pessoa altamente experiente”, na “sabedoria de um ancião”, mas é esta última, “e não as operações formais, que constitui o ideal para o desenvolvimento do pensamento”.(20)
Para concluir nossa consideração sobre a teoria de Piaget, vamos nos deter em mais uma questão importante. Embora Piaget tome a atividade objetal do sujeito como base para o intelecto, a base real para as transições de ações para operações ainda é revelada de forma insuficiente em sua teoria.(21) Em particular, por mais estranho que isso possa parecer à primeira vista, para ele, a própria atividade do sujeito, pela qual essas transições deveriam ter sido feitas, sai completamente desse processo de internalização.(22) Piaget descreve-as como coordenações e integrações progressivas de ações, como a formação de seus esquemas gerais, mas tudo isso, em essência, permanece no nível fenomenológico de uma mudança de estágios, sem revelar as verdadeiras razões para tal mudança, sem esclarecer por que e como a própria criança substitui alguns tipos de coordenação por outros.(23) Sem uma resposta a essas questões, o desenvolvimento revela-se meramente uma modificação externa no carácter das ações e das suas formas – as forças motrizes internas desse processo permanecem além dos limites da investigação psicológica, o que, no entanto, é o que aconteceu nas obras de Piaget.
Notas de rodapé:
(1) N. A.: A literatura psicológica contém, atualmente, alguns trabalhos sérios, nos quais são expostos e analisados tanto os dados experimentais da escola de Piaget quanto suas posições teóricas (ver, por exemplo, Lektorskii e Sadovskii [1966]; Orlova [1961], etc.). Estamos considerando apenas os aspectos de sua teoria que estão relacionados com problemas de formação de conceitos em crianças. (retornar ao texto)
(2) N. A.: Piaget (1965, p. 43) observou especialmente que o empirismo e o positivismo, em psicologia, estão relacionados ao reconhecimento de um objeto apenas como independente das ações do sujeito. (retornar ao texto)
(3) N. A.: Como Flavell (1967, p. 252-253) observou, para Piaget a reversibilidade é “o núcleo da cognição, que é formado em um sistema, uma propriedade, em relação ao qual todo o resto é derivado”. (retornar ao texto)
(4) N. A.: Por exemplo, a formação de uma estrutura lógica como a classificação, que contém a inclusão de uma parte no todo, pressupõe uma estrutura algébrica, segundo Piaget (1960, p. 18). (retornar ao texto)
(5) N. A.: O desenvolvimento da seriação como uma estrutura lógica é um processo de descoberta da criança, do tipo de relações que fundamentam uma estrutura ordenada. (retornar ao texto)
(6) N. A.: Voltaremos à questão das fontes de coincidência entre estruturas matemáticas e estruturas operadoras de pensamento um pouco mais adiante. (retornar ao texto)
(7) N. A.: O investigador primeiro estabelece que a criança tem uma boa compreensão do seguinte fato: Todas as contas marrons são de madeira, mas nem todas as contas de madeira são marrons (há algumas contas brancas). (retornar ao texto)
(8) N. A.: Piaget (1965, p. 39) observou: “a psicologia das associações considerava uma imagem mental como uma extensão da percepção e como um elemento de uma ideia, mas o pensamento está ostensivamente incluído na ‘associação de imagens’ umas com as outras e com a percepção”. (retornar ao texto)
(9) N. A.: Essa circunstância funciona claramente numa comparação, por exemplo, das duas declarações seguintes de Piaget (1960, p. 14): “a mente é revelada, em essência, como uma coordenação de ações”, e “[...] Matemática [...] não é uma abstração da experiência física, mas é uma abstração das coordenações gerais de uma ação [...]” (PIAGET, 1965, p. 51). (retornar ao texto)
(10) N. A.: Por exemplo, o conhecido físico Born (1963, p. 283) escreveu: “Invariantes são conceitos nos quais a ciência natural fala da mesma maneira que alguém fala na linguagem comum sobre ‘coisas’, e aos quais confere nomes como se fossem coisas comuns.”. (retornar ao texto)
(11) N. A.: Hegel (1929, p. 192) observou: “O ponto de vista da essência é o ponto de vista da reflexão. Refletimos sobre um objeto, ou (como se costuma dizer) meditamos sobre ele, pois é aqui que não reconhecemos o objeto em sua imediação - desejamos conhecê-lo como mediado.”. (retornar ao texto)
(12) N. A.: Lembramos que essa é a fonte de uma distinção importante entre o essencialmente geral e qualquer outra generalidade formal que seja destacada por comparação. (retornar ao texto)
(13) N. A.: “Em todas as formas de pensamento utilizadas pela ciência moderna”, Kopnin (1963, p. 73) escreveu, “o intelecto morto e a razão agem em uníssono”. (retornar ao texto)
(14) N. A.: “[...] até certo ponto, o reflexo da realidade pelo intelecto é sem vida. ‘A função restante do intelecto é decompor e calcular [...]’. Engels notou uma característica muito importante do pensamento intelectual – a operação de acordo com um esquema rigorosamente especificado, um padrão [...]. Essa característica pode ser designada como ‘automatismo da razão’ (KOPNIN, 1963, p. 69-70). (retornar ao texto)
(15) N. A.: “A característica mais vívida do pensamento intelectual do homem é expressa no chamado pensamento de ‘máquina’, em que o automatismo da razão é reduzido a uma natureza e forma clássica.” (KOPNIN, 1963, p. 168). (retornar ao texto)
(16) N. A.: “Toda forma [de pensamento] é intelectual no sentido de que tem sua própria estrutura rigorosa e permite dentro de si o movimento de acordo com certas regras formais” (KOPNIN, 1963, p. 73). (retornar ao texto)
(17) N. A.: “A lógica matemática, como um ramo da Matemática, investiga os métodos matemáticos que auxiliam no estudo de certas questões da ‘lógica filosófica’”, Carry (1969, p. 17-18) observa, por exemplo. A lógica matemática está relacionada com a análise do pensamento da mesma forma que a geometria está relacionada com a ciência do espaço, mas a geometria, como sabemos, não é a única disciplina que estuda o espaço (há também a física) (CARRY, 1969, p. 18). (retornar ao texto)
(18) N. A.: Atualmente, observa-se uma tendência da matemática como disciplina de alcançar além dos limites das relações espaciais e quantitativas; presume-se que se trata de certas estruturas que expressam explicitamente características qualitativas da realidade (Piaget também aderiu a essa posição). Tal tendência é inteiramente legítima, quando se trata da concepção unilateral da quantidade, como um número e uma figura, que a matemática clássica violou. A tradição dialética na filosofia sempre assumiu a posição de que quantidade e qualidade ocorrem em unidade indissolúvel, girando uma em torno da outra, que as relações quantitativas têm uma distinção qualitativa muito rica, que pode ser estabelecida por conceitos de estruturas apropriadas. Contudo, em qualquer extensão concreta do tema da matemática, a sua categoria principal continua a ser a determinação quantitativa das qualidades da matéria expressas nas formas da sua diversidade espaço-temporal (ver uma análise detalhada desse problema no artigo de Il’enkov [não datado]). (retornar ao texto)
(19) N. T.: O mito grego de Procusto pode ser entendido como um padrão estabelecido que força a adequação de todos. (retornar ao texto)
(20) N. A.: Flavell (1967, p. 571) escreveu: “O sistema de Piaget não só não abrange o desenvolvimento da cognição ao longo de todo o ciclo de vida, como também claramente não dá conta de toda a totalidade dos fenômenos, desde o nascimento até à maturidade, que poderiam ser chamados de ‘cognição’”. (retornar ao texto)
(21) N. A.: Ao analisar as obras de Piaget, Gal’perin e El’konin (1967, p. 607) observaram que a “própria transição para um plano mental e a organização ideal da ação intelectual nesse plano caem fora dessa investigação”. (retornar ao texto)
(22) N. A.: Como mostramos na última seção do Capítulo 4, o conceito de funções numéricas, para Piaget, como uma síntese de classificação e seriação. Contudo, aqui ele não indica a ação real da própria criança, por meio da qual essa síntese pode ocorrer. Consequentemente, é a transição para o número é caracterizada apenas como uma síntese formal e autorrealizável (coordenação) de estruturas. Esse é um exemplo particular da abordagem geral de Piaget a esse problema. (retornar ao texto)
(23) N. A.: Gal’perin e El’konin (1967, p. 604) apontar legitimamente que nas obras de Piaget a questão básica relativa “por que a criança começa a levar em conta aquilo que antes não levava em conta [...] e por que ela não está mais satisfeita com uma explicação que antes o satisfazia completamente” é resolvido de forma insatisfatória. (retornar ao texto)